Para o crítico musical Hugo Sukman, “a música de Itamar Assumpção explode originalidade”. “Ele revela um mundo que, por incrível que pareça, dada a riqueza da música brasileira, não havia sido nos mostrado”, aponta. Segundo Sukman, a produção de Itamar se fia nas experiências do “negro urbano, de classe média”.
“Ele faz isso dentro da tradição da canção brasileira”, diz. A denúncia ao racismo, que surge em “Cabelo Duro”, “Pretobras” e outras, é “feita com altivez”.
Itamar é a voz de uma população que ascendeu socialmente e chegou à universidade. Ele fala de igual pra igual. Nesse sentido, o comparo ao Gilberto Gil, observa Sukman.
Para celebrar o legado atemporal de Itamar Assumpção, selecionamos 10 músicas deste artista único.
“Laranja Madura” (samba, 1967) – Ataulfo Alves
O mineiro Ataulfo Alves, filho de um violeiro, sanfoneiro e repentista da Zona da Mata do estado, foi leiteiro, condutor de bois, carregador de malas, engraxate, marceneiro e lavrador, além do mais frequentava a escola, antes de se tornar um dos mais conhecidos compositores populares do Brasil.
Não espanta, portanto, que Ataulfo tenha recolhido uma expressão popular, um ditado, para colocar em sua música.
“Laranja madura, na beira de estrada, tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”, exemplifica em versos a decantada desconfiança mineira. Pois foi na escola da vida que Ataulfo formou seu caráter social e artístico. A música foi lançada em 1967 por Ataulfo com as suas “Pastoras”, outra tradição de Minas, e regravada por Noite Ilustrada e Itamar Assumpção.
“Negra Melodia” (reggae, 1977) – Jards Macalé e Wally Salomão
Jards Macalé e Wally Salomão escreveram “Negra Melodia” pensando em Luiz Melodia, amigo de ambos. A música é uma exaltação bem ao estilo da dupla, e também ao feitio do homenageado. Prepondera a mistura de influências e a miscigenação de linguagens que formou a própria sociedade brasileira. Não por acaso, o idioma português se mescla ao inglês em determinadas passagens da letra.
Lançada por Jards Macalé em 1977, no álbum “Contrastes”, ela só recebeu a voz de Luiz Melodia em 2005, em dueto com Macalé. Antes, foi regravada por Itamar Assumpção, Margareth Menezes e Lenine, até dar nome ao disco lançado por Zezé Motta em 2011, dedicado ao repertório de Luiz Melodia e Jards Macalé. O ritmo de reggae se abre a fusões.
“Nego Dito” (vanguarda, 1980) – Itamar Assumpção
São raros os artistas de vanguarda que não se valem de uma sólida formação pautada na tradição. O pintor Wassily Kandinsky, inventor do abstracionismo nas artes plásticas, baseava suas criações no folclore, nos rituais xamânicos dos índios de sua região e nos contos de fada.
Qualquer semelhança com a música de vanguarda proposta por Itamar Assumpção em terras tupiniquins não é mera coincidência. Sua obra está recheada de referências desse tipo, por exemplo, nas canções “Sutil” (“muita areia para o meu caminhãozinho”) e “Aprendiz de Feiticeiro”. Mas é em “Nego Dito”, lançada no álbum de estreia, em 1980, que Itamar tece este encontro da maneira mais radical. A expressão popular pinçada não poderia ser outra do que “mato a cobra e mostro o pau”.
“Amanticida” (vanguarda, 1981) – Itamar Assumpção e Marta Rosa Amoroso
A atmosfera cinza e poluída da cidade de São Paulo foi o ambiente que influiu decisivamente na estética proposta pela chamada Vanguarda Paulista, surgida em meio aos anos 1980 que consagravam o colorido das bandas de rock nacionais.
Numa linguagem que misturava quadrinhos, teatro, rap e música urbana, a palavra destilada com o veneno lento das horas era uma das armas de Itamar Assumpção e sua banda Isca de Polícia. Na parceria com Marta Rosa Amoroso, de 1981, cria-se uma história assustadora: “Fera, bruxa, madrasta, amanticida/Homem, mulher/Amada que mata amante”.
“Já Deu Pra Sentir” (vanguarda, 1987) – Itamar Assumpção
Companheiro de geração, Arrigo Barnabé não apenas conviveu com Itamar Assumpção, que tocou e participou de arranjos do disco “Clara Crocodilo” (1980), como morou, durante mais de dois anos, com o amigo em São Paulo.
“Antes de estourar com a Vanguarda Paulista e ficar conhecido, a gente fez muitos shows juntos”, conta.
Arrigo foi um dos músicos mais próximos de Itamar. Em dueto, eles gravaram “Já Deu pra Sentir”, no disco “Suspeito”, em 1987, que, ao lado de “Noite Torta”, Arrigo considera “o auge de Itamar na composição”. “As duas são muito bem-resolvidas em termos de letra e canção”, elogia Arrigo. Os dois se conheceram em Londrina, no interior do Paraná.
“Mal Menor” (vanguarda, 1988) – Itamar Assumpção
Poderia ser um bolero ao gosto de Nelson Gonçalves ou Angela Maria, bebericando na tradição da música popular brasileira, não fosse a música escrita por Itamar Assumpção, que transforma “Mal Menor” em mais uma peça de vanguarda do seu repertório.
“Minha flor de trigo/ Meu licor de figo/ Diga aonde irás que é pra lá que eu sigo/ Pra tudo conte comigo”, anuncia o galante eu-lírico da canção.
Perspicaz, Itamar lança frases de profunda compreensão da vida como quem fala aquilo que existe de mais banal na face da Terra:
“Sofrer é antigo/ Por isso que digo/ Basta estar vivo/ Para correr perigo”. A música foi lançada por Itamar no álbum “Intercontinental! Quem Diria! Era Só o Que Faltava!!!”, em 1988, e mereceu uma regravação do sempre atento, e companheiro de vanguarda, Arrigo Barnabé, em 1992, em seu CD “Façanhas”.
“Dor Elegante” (balada, 1998) – Paulo Leminski e Itamar Assumpção
O sempre atento e performático Itamar Assumpção, um dos principais nomes da “Vanguarda Paulista” que invadiu o cenário cultural brasileiro unindo música a teatro e outras inovações mais, foi outro a buscar em Paulo Leminski combustível para a sua arte. Em 1998, no álbum “Pretobrás”, Itamar transformou o poema “Dor elegante”, em canção, ao receber a letra.
Diga-se de passagem, essa “transformação” é, quase sempre, apenas a colocação de instrumentos musicais e voz, pois, melodia e métrica quase sempre são presentes em todas as composições de Paulo.
Numa das mais sensíveis e delicadas criações de Paulo Leminski, o autor versa com sabedoria e singeleza sobre o valor da vida, e a histórica e até barroca capacidade de, a partir do martírio, nascer a beleza.
“Vida de Artista” (vanguarda, 1998) – Itamar Assumpção
Os dois primeiros álbuns da carreira de Itamar Assumpção ganharam, em 2019, reedições em vinil: tanto “Beleléu, Leléu, Eu” (1980) quanto “Às Próprias Custas S. A.” (1981), que trazia em seu título uma das muitas críticas e ironias lançadas por Itamar em suas composições.
“O meu pai foi um pioneiro da música independente, numa época em que isso não era comum. Todo esse cenário de hoje, inclusive do rap, deve muito às lutas que ele travou”, observa a cantora e compositora Anelis Assumpção, que se ressente da falta de reconhecimento ao legado do pai.
“A música brasileira é ingrata”, reclama. Para tentar amenizar os efeitos desse desprezo à memória, ela prepara um site, em formato de museu virtual, com todo o acervo do progenitor. “Itamar é um documento artístico e cultural do país”, define Anelis. Essas questões inerentes ao fazer cultural e artístico no Brasil aparecem em “Vida de Artista”, de 1998.
“Aprendiz de Feiticeiro” (vanguarda paulista, 1999) – Itamar Assumpção
Tido e havido, com méritos, como um dos mais originais e criativos artistas da música brasileira, Itamar Assumpção experimentava no palco as facetas de cantor e ator com a mesma facilidade usada para distribuir sua obra. Compositor de mão cheia incumbiu a Cássia Eller o desafio de lançar a canção “Aprendiz de Feiticeiro”, em 1999.
Na peça o autor busca retratar as desditas da existência com um olhar arguto e audacioso, misturando, como de seu feitio e da vanguarda paulista, sotaques, emblemas e territórios.
Dois anos mais tarde, Cássia teria outra experiência com universo místico, ao regravar, para o especial do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a música “A Cuca Te Pega”, também registrada por Angela Ro Ro. Com a voz capaz de encantos de outro mundo…
“Anteontem” (vanguarda, 2003) – Itamar Assumpção
Itamar Assumpção lutava contra um câncer de estômago que o mataria quando realizou o seu último show, em 2003. Nessa apresentação, o músico recebeu no palco a multiartista Elke Maravilha, que o auxiliou a cantar.
“Anteontem”, num dueto que dialogava com a morte. A música foi composta por Itamar numa de suas internações, e, não por acaso, tinha o subtítulo jocoso de “Melô da UTI”.
Lançada apenas após sua morte, a canção aparece no álbum “Pretobrás III: Devia Ser Proibido”, de 2010, e mantém o espírito de vanguarda que conduziu toda a carreira de Itamar. “Foi me visitar a morte/ Mesmo sedado senti…”, entoa.
*Bônus
“Dodói” (vanguarda, 2007) – Luiz Tatit e Itamar Assumpção
Todas as cadeiras do pequeno Teatro Marília, em Belo Horizonte, estavam ocupadas quando Zélia Duncan estreou na cidade, em 2012, o espetáculo “Totatiando”, em homenagem a Luiz Tatit. Ao interpretar a música “Dodói”, parceria de Tatit e Itamar Assumpção (1949-2003), a cantora não resistiu.
“No universo do teatro, estou autorizada a não controlar esse tipo de emoção diante do público. Não conseguiria se não fosse verdadeiro, até porque não tenho essa técnica”, observa Zélia, explicando as lágrimas daquela ocasião.
“Dodói” foi lançada por Tatit em 2007. A canção, uma das últimas de Itamar, não chegou a ser gravada pelo autor dos melancólicos versos, que descreviam sua agonia na batalha contra o câncer de intestino: “Eu ando tão dodói/ Mas tão dodói/ Que quando ando dói/ Quando não ando dói/ Meu corpo todo dói/ (…) Até meu dom dói/ Pois quando canto/ Não importa o tom dói”, resume o artista.