Está previsto para ser votado em caráter de urgência na Assembleia Legislativa de São Paulo nas próximas semanas, o Projeto de Lei 410/2021, de autoria do governador João Doria (PSDB), que impõe ao agricultor familiar a compra do título de domínio dos lotes em assentamentos rurais estaduais.
Com o discurso de que é o melhor para o agricultor familiar, a medida pode significar a regularização da grilagem de terras públicas e o fim da política de assentamentos em São Paulo.
Apresentado no dia 26 de junho, a medida coloca a vida de mais de dez mil famílias dos 140 assentamentos do estado de São Paulo em risco.
Segundo a Associação de Funcionários do Itesp (Afitesp), a obrigatoriedade imposta ao agricultor fará com que eles adquiram uma dívida compulsória com o Estado e, assim, corram o risco de perder as terras, caso não cumpram a extensa lista de exigências.
“A proposta está em nítido desacordo com as Constituições Federal e Estadual que preveem a opção entre o Título de Domínio ou tão somente a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), título gratuito, que garante a segurança jurídica mediante contrato com Estado e permite a sucessão hereditária do título para as futuras gerações”, explica Marcelo Goulart, promotor de justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo.
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Assentamentos em risco e regularização da grilagem
Mais de 150 mil hectares de áreas públicas já destinadas a assentamentos rurais também correm risco com a medida, que é inconstitucional alerta a Afitesp.
Assim, devido a gravidade da proposta, a associação defende a retirada do regime de urgência na tramitação e a realização de amplo debate entre a categoria, assentados, movimentos sociais e toda a sociedade civil para discutir os rumos da política agrária e fundiária no estado de São Paulo.
No entanto, se por um lado, os agricultores de assentamentos estão com seus direitos ameaçados, a grilagem será beneficiada com a proposta. Isso porque o relator especial da Comissão de Constituição, Justiça e Redação, deputado estadual Mauro Bragato (PSDB) incluiu, no dia 2 de setembro, um artigo que altera a Lei nº 4925/85.
A mudança permite a venda do atual estoque de terras públicas (cerca de 450 mil hectares, dos quais 180 mil já foram julgados devolutos) aos fazendeiros que ocupam extensas áreas por meio da grilagem.
“Em um contexto de aumento da fome e do desemprego, as terras públicas deveriam cumprir sua missão de justiça social, de garantia da segurança alimentar e da preservação ambiental e não serem destinadas ao agronegócio, isso significa o fim da política de assentamentos rurais e de democratização do acesso à terra construída há quase 40 anos pelo estado de São Paulo”, alerta a Afitesp.
Confira outros pontos polêmicos do Projeto de Lei listados pela Afitesp:
- O PL prevê que para se tornar proprietário das terras, o assentado deverá fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e registrar o título no Cartório de Imóveis. No entanto, o projeto não prevê que o Estado fará o georreferenciamento e a regularização da matrícula do imóvel, afirma a Afitesp.
- Um levantamento estima que 60% das áreas não estão regularizadas e escrituradas em nome do Estado, porque ainda permanecem em nome dos antigos ocupantes, assim os títulos emitidos não serão passíveis de registro em cartório. Dessa forma, o assentado corre o risco de perder a terra, ao mesmo tempo que o Governo se exime de entregar a propriedade livre e desimpedida.
- As cláusulas presentes no Título de Domínio irão vigorar por 10 anos e somente para os atuais beneficiários. Após esse período, quem adquirir a área titulada não terá obrigação de manter a racional exploração, tampouco cumprir a função social da terra.
“Com a entrada destas áreas no mercado de terras, a tendência é a ocupação irregular, a especulação imobiliária, e a reconcentração destas terras, desvirtuando o objetivo original da lei que é atender a população sem terra e a produção de alimentos”, afirma o presidente da Afitesp, Robson de Oliveira.
Segundo dados da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) os assentamentos comercializaram R$ 300 milhões em produtos agrícolas, somente em 2019.
Outra questão é preservação ambiental, uma vez que a proposta pode oferecer riscos à manutenção das áreas de preservação ambiental inseridas nos assentamentos.
O PL não faz qualquer menção à destinação das áreas de reserva legal, que são demarcadas tendo por base as matrículas dos imóveis em que os assentamentos se encontram, fica a dúvida sobre quem, de fato, será responsável pelos milhares de hectares dessas áreas contidas nos assentamentos estaduais caso o PL seja aprovado”, comenta.
Para a associação, ao invés da proposta que prejudica os assentados, deveria se arrecadar e implantar novos assentamentos rurais nos milhares de hectares de terras já julgadas devolutas em todo o estado de São Paulo e a opção pela implementação da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) dos lotes às famílias agricultoras em assentamentos estaduais.
Em carta aberta, em junho deste ano, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de São Paulo explicou que o projeto é prejudicial para os trabalhadores do campo, pois impõe o título de domínio.
"O PL 410/21 apresentado por Dória à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e o Programa Titula Brasil do Governo Federal, estão impondo o Título de Domínio, que permite venda de lotes e negociatas, como único Título Definitivo, o que é mentira. Defendemos a Titulação de Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, na qual o direito dos assentados, das futuras gerações e de sucessão, está garantido. No CDRU, a terra continua sendo do Estado, mas as famílias assentadas e seus sucessores têm plenos direitos por seu uso.
O Título de Domínio representa a especulação imobiliária sobre as terras da Reforma Agrária, a não garantia da destinação futura para a produção de alimentos, a reconcentração de terras, a destruição ambiental e o fim da existência dos assentamentos como comunidade de direitos à moradia, trabalho, renda, educação, saúde e vida social. Além disso o Título de Domínio vai gerar mais uma dívida para o assentado que vai ter que pagar pelo título, o que é um verdadeiro absurdo pois ao invés do Estado colocar recursos nos assentamentos através de políticas públicas, quer tirar dinheiro do nosso povo. O CDRU ao contrário, é uma forma de titulação definitiva e sem custos para os assentados.", diz a carta.
Edição: Anelize Moreira