A alfabetização é um processo histórico que não se resume ao desenho e memorização das letras
Como lembra o sociólogo brasileiro e defensor dos Direitos Humanos, Betinho, “quem tem fome, tem pressa” e foi neste sentido que as políticas de solidariedade tomaram ainda mais concretude nas lutas populares durante a pandemia.
Com o passar do tempo e o florescer das diversas possibilidades de trabalho de base, reafirmamos a importância e atualidade dos princípios educativos sistematizados pelo filósofo e educador brasileiro, Paulo Freire, principalmente neste ano do seu centenário.
Ele atuou em diversas realidades e a necessidade de uma alfabetização popular para o povo brasileiro foi uma de suas principais bandeiras de luta. Bandeira que nos inspira até hoje e que suas perspectivas podem ser observadas em várias experiências da Campanha Periferia Viva, inclusive na formação de agentes populares de alimentos.
Histórico
A fome e a covid-19 tornaram as condições de vida cada vez mais difíceis nas periferias do Brasil e, por isso, diversas ações de distribuição de alimentos foram organizadas pela Escola Nacional Paulo Freire ao longo de todo ano de 2020 e adentrando 2021, junto a diversos sindicatos, às entidades civis e trabalhadoras(es) voluntárias(os), nos bairros São Savério e Boqueirão, na cidade de São Paulo.
No início, a aproximação com os dois territórios teve a pandemia como o argumento principal, já que a chegada do novo coronavírus e a falta de um governo capaz de superá-la impactava diretamente as populações mais empobrecidas.
A partir das ações de distribuição de alimentos, foram articuladas as formações de agentes populares de saúde com as famílias beneficiárias. Com o objetivo de colocar em prática o que já era um clamor da população no período pandêmico, esta experiência formativa e organizativa foi feita com um grupo de pessoas dos bairros.
Leia também: Brasil passa dos 21 milhões de casos acumulados de covid-19 desde o início da pandemia
Na medida em que os sintomas da covid-19 iam se agravando, mais distantes do povo ficavam as medidas do governo de Jair Bolsonaro. Tanto o auxílio emergencial como a vacina chegaram em marcha lenta, quase parando.
Os agentes populares de saúde que foram formados assumiram com as suas comunidades a tarefa educativa de disseminação de informações sobre os principais cuidados com a saúde para evitar a doença que já ceifou quase 600 mil vidas no país.
Estes passos iniciais do trabalho de base junto nos territórios abriram portas, janelas, olhos e ouvidos para novos desafios. A questão da fome foi se colocando como um problema cada vez mais gritante e urgente. Um desafio que exige ações bem mais profundas e prolongadas. Ações estruturais que transformem os sistema de produção alimentar no Brasil.
Transformação
Daí, veio a pergunta: Que tipos de ações podemos desenvolver na comunidade para entendermos as raízes da fome e nos ajudar a enfrentá-la? Basicamente, foi esta a pergunta norteadora dos principais debates e principais reflexões na comunidade São Savério.
Nesta nova frente de trabalho de base envolveu-se a Escola Álvaro de Souza Lima que tem espaços bons e amplos para encontros formativos e para o cultivo de hortas comunitárias. Ela se localiza no bairro e acolhe as crianças e jovens de muitas famílias beneficiárias das ações de distribuição de alimentos.
A partir do conhecimento sobre a realidade social que já tínhamos acumulado e a formação dos agentes populares de saúde foi feito um convite para a organização e formação de um novo grupo de pessoas como agentes populares de alimentos.
A proposta desta nova organização e formação na comunidade tem como foco a situação da fome que se manifesta em diferentes níveis entre os moradores. Há os que diariamente não têm garantias do que comer e os que têm acesso basicamente aos alimentos de baixa qualidade nutricional, os alimentos ultraprocessados, mais conhecidos como ‘industrializados’.
Em cada encontro realizado tinha um tempo para prática coletiva do grupo em dois espaços importantes: a horta e a cozinha. No espaço do trabalho na horta conseguimos cultivar a terra e realizar plantios de mudas e sementes hortícolas que fazem parte do cardápio alimentar do povo brasileiro. Como foram quatro encontros, foi possível constatar a transformação da natureza pelo trabalho na terra e pela terra. Brotou comida saudável do chão cultivado.
De outra maneira, estes momentos formativos trazem à memória a origem camponesa que identifica muita gente que mora nos bairros urbanos. A diversidade cultural e social do povo brasileiro tem suas raízes no campo, no cultivo da terra, nos seus hábitos alimentares.
Outro espaço formativo de nossos encontros foi a cozinha. A preparação coletiva dos alimentos, o aproveitamento de alimentos que normalmente são jogados fora, o estudo da importância nutricional de cada tipo de alimento consumido por nós.
Foram vários os aspectos refletidos e temperados nas panelas de preparação dos almoços. Em ambas experiências, bebemos muito das perspectivas de Paulo Freire sobre a alfabetização.
Paulo Freire
A alfabetização é um processo histórico que não se resume ao desenho e memorização das letras. É preciso ler as letras e ler o mundo. E os oprimidos leem o mundo diferente dos opressores. Por isso, é fundamental no processo alfabetizador que os oprimidos digam “a sua palavra”.
A formação dos agentes populares de alimentos se insere neste método de alfabetização popular, desenvolvido por Paulo Freire, a partir da realidade de vida do povo.
Nestes tempos, essa realidade direciona mais para questões como o combate da fome, a necessidade de uma alimentação saudável e de uma reforma agrária popular, porque existe um analfabetismo produzido intencionalmente para emudecer as reivindicações do povo sobre esses temas.
O mutismo é uma marca de nossa formação colonial que se manifesta de muitas maneiras e a fome é uma delas.
A multiplicação destes processos alfabetizadores sobre os alimentos traz para a mesa a importância e atualidade de Paulo Freire. Viva aos cem anos do nascimento do patrono da educação brasileira! Freire vive em nós!
*Flávio José Vivian é graduado em Filosofia e Teologia e compõe a Coordenação Geral da Escola Nacional Paulo Freire.
**O Periferia Viva nasce como resposta ao governo genocida com sua política de morte que nos deixou a própria sorte em uma pandemia. A ideia é conectar iniciativas, campanhas e demandas da sociedade que podem contribuir e fortalecer essa rede de solidariedade. Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Anelize Moreira