Disputar, ressignificar, defender a democracia é um desafio que se coloca nesse contexto
Por Euzamara de Carvalho*
A gravidade do atual momento de crise política, econômica, sanitária e socioambiental, agravada pela deflagração da pandemia do covid-19 no Brasil, provocará novas formas de reorganização das relações humanas e sociais.
O contexto de perpetuação da pandemia, com dados alarmantes de mais de 580 mil mortes em nosso país, concomitante aos diferentes fatores da crise que atravessamos, têm causado tamanho impacto no mundo.
Em meio a este cenário, no dia de 7 de setembro, que marca a data emblemática da Independência do Brasil, vimos o agravamento da situação, que aponta a urgência de ressignificação dos sentidos democráticos que orientam nossa convivência no nosso país.
No último dia 7 se fortaleceu a constatação de que o percurso de atuação do chefe de Estado do Brasil tem sido trilhado na direção contrária da carta de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.
Não precisamos ir longe para demonstrar tal afirmação. De acordo com o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, a instituição do Estado Democrático se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
No entanto, o que assistimos neste dia 7 foi uma sequência de atos inconstitucionais praticados pelo então presidente da república federativa do Brasil, com nítido ataque às instituições, às autoridades do sistema de justiça, ao povo brasileiro que historicamente ocupam às ruas nessa data para afirmar a constante luta por direitos.
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Atos desdobrados em ações de violência praticadas pelos seus seguidores contra profissionais de segurança pública, profissionais trabalhadores/as dos meios de comunicação, povos indígenas que se encontram acampados em Brasília, dentre outros.
Neste ambiente de fragilidade democrática, que demanda a defesa intransigente da democracia, se apresenta necessário o resgate do lugar da cidadania dos povos. Não para o seu enquadramento, mas para o estímulo devido a sua pertença a proposta de um Estado Democrático de Direito que possibilite o pleno exercício da cidadania no que corresponde aos seus direitos e deveres.
Na perspectiva de oferecer real sentido à democracia, sendo esta um processo de constante luta por direitos e justiça social numa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Dialogando com Joaquim Herrera Flores: A democracia, entendida a partir de uma estética produtora de singularidades ativas e conscientes, não deve se reduzir ao postulado liberal da “igualdade de poder político” (sufrágio universal, como mecanismo de arrefecimento das lutas contra as desigualdades sociais).
A democracia tem mais a ver com o princípio de “distribuição do poder político”, segundo o qual há que se intervir sobre as desigualdades impostas pelos processos de divisão hierárquico e desigual do fazer humano, para que todas e todos gozem realmente das condições necessárias para debater, participar e decidir conjuntamente. (Flores, 2009)
Disputar, ressignificar, defender a democracia é um desafio que se coloca nesse contexto. Não podemos permitir que o potencial de lutas e de conquistas presentes no espaço da democracia caia no vazio discursivo de grupos autoritários e antidemocráticos que sinalizam se apropriar desse conceito.
Este cenário grave e angustiante sinaliza para a necessária reinvenção de hábitos e de valores numa perspectiva mais solidária e democrática para o fortalecimento dos laços de lutas e de resistências que possibilite a superação das diferentes formas de opressão e de violência que atravessamos.
Fortalecer alianças para atuar em articulação com setores sociais verdadeiramente democráticos, para o enfrentamento e a resistência diante do autoritarismo e descumprimento de leis constitucionais será o caminho.
A conquista do ambiente democrático, bem como a melhoria das condições de vida do povo, não advém tão somente das instituições mas, sim da força popular que denuncia e luta historicamente pela eliminação de todas as formas de opressão da classe trabalhadora do Brasil.
É dessa democracia que estamos falando.
Que a voz do poder popular que clama por um Brasil justo e solidário, livre de mentiras e ataque aos direitos sociais, seja ouvida e concretizada pelas instituições criadas para defender o interesse do povo brasileiro.
*Euzamara de Carvalho é Pesquisadora do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais – IPMDS. Membra da Executiva nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD. Integrante do Coletivo de Direitos Humanos da Via Campesina Brasil.
**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Anelize Moreira