Igualdade de gênero, combate ao racismo, preservação ambiental e tudo mais que se relaciona com a evolução e emancipação humana faz parte do repertório de partidos e de movimentos progressistas, como os sindicatos e o movimento estudantil. São pautas que se aprimoram ao longo do tempo de acordo com as prioridades que o momento histórico exige. Assim, secretarias especiais e organizações paralelas convivem e complementam a luta central contra a exploração e pela dignidade do trabalhador.
Nos últimos anos, entretanto, o ativismo social com base em traços específicos de identidade parece distanciar-se e, mais do que isso, querer se sobrepor ao eixo em torno do qual a esquerda tradicional se apoia: a luta de classes. Hoje a pauta identitária interdita o debate político e seu discurso sectário e conceitual se afasta do diálogo popular.
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Este fenômeno que parece ter surgido de movimentos como o Occupy Wall Street, o Me too e o Black Lives Matter, vem de muito antes. As sementes desta militância puramente identitária germinaram no Pós Guerra, se desenvolveram nos movimentos americanos e europeus da década de 1960 e se consolidaram com o fim da Guerra Fria.
No artigo “Moral do mercado: quando os direitos humanos cobrem a economia neoliberal”, o articulista Graham Holton comenta como a economia liberal se apropriou da concepção moderna dos direitos humanos, que está na raiz desse ativismo civil e individualista. Ao comentar o livro “The Morals of the Market: Human Rights and the Rise of Neoliberalism”, publicado em 2019, pela Verso Books (sem tradução para o português), de Jessica Whyte, ele afirma que “pensadores neoliberais usaram os direitos humanos para desafiar o socialismo, a social democracia e o planejamento estatal”.
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Holton aponta o início da Guerra Fria, em 1947, como um marco e afirma que já naquela época a então URSS denunciou a hipocrisia dos EUA que sustentava um discurso baseado nos direitos humanos como a “linguagem moral do mercado competitivo”, mas mantinha em seu território a segregação racial no Sul (o apartheid estava em alta), a falta de direito das mulheres, as numerosas invasões a Países estrangeiros e as más condições oferecidas aos trabalhadores e aos povos indígenas. Soma-se à hipocrisia deste discurso pretensamente humanitário o fato de os EUA ter sido o único país do mundo a fazer uso da bomba atômica, jogando-a nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto de 1945.
Na década de 1960, no auge da Guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis, movimentos pacifistas e movimentos estudantis deram o contorno de uma “nova esquerda”. Para o jornalista José Carlos Ruy aquele contexto foi o prenúncio do neoliberalismo que viria nas décadas seguintes. Ele cita Eric Hobsbawn ao dizer que “assumia-se tacitamente que o mundo consistia em vários bilhões de seres humanos definidos pela busca de desejo individual” (Hobsbawn: 1995). Como exemplo da nova esquerda Ruy aborda a trajetória do ativista Jerry Rubin. Ex-líder estudantil, Rubin liderou alguns dos primeiros protestos contra a Guerra do Vietnã e foi fundador do Youth International Party (Partido Internacional da Juventude). “Menos de duas décadas depois ele tornou-se um capitalista de sucesso, investidor da Apple Computers e teórico dos yuppies individualistas dos anos 80. Passou então a defender que a criação de riquezas é a verdadeira revolução americana”, conclui.
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Com o fim da Guerra Fria na década de 1990 e a aparente hegemonia do neoliberalismo, os americanos impuseram sua ideologia como verdade universal. Esta ideologia baseada no individualismo, na alienação e na despolitização passou a bombardear diuturnamente o cidadão comum e isso reverberou de forma acentuada no Brasil.
Simultaneamente, a economia de mercado acirrava o desemprego e desencadeava um processo de precarização das relações de trabalho, acelerando a desarticulação entre os trabalhadores. Massificou-se o fenômeno da terceirização ao passo que diminuiu a proteção do Estado e o trabalhador se viu cada vez mais oprimido pela insegurança financeira e pela ameaça do desemprego.
Com a classe trabalhadora estrategicamente cindida, setores progressistas, sobretudo da classe média, passaram a perder protagonismo entre o operariado e a dar cada vez mais espaço a um ativismo segmentado, muitas vezes com base na busca por uma suposta essência individual vendida pelo novo capitalismo. Passaram a adquirir um caráter mais liberal, que na aparência se expressa como liberdade individual, mas na essência traz também o sentido do livre mercado.
No artigo “A falsa dicotomia entre pautas identitárias e economia”, a cientista política Tatiana Vargas Maia afirma que “a nova agenda política que emerge no século XXI, focada em questões étnico-raciais e de gênero pulveriza as questões políticas e sociais em pautas identitárias parciais e específicas”. Ela aponta que a crítica que esse debate suscita é a de que “o foco na pauta identitária, sobretudo por partidos e movimentos sociais de esquerda, provoca uma fragmentação do campo político, o que leva a um paradoxal enfraquecimento desse campo”. E rebate essas críticas dizendo que “a distinção entre economia e identidade é um binarismo popular que simplifica e falsifica a discussão a respeito da cidadania contemporânea” e que os movimentos identitários são “alguns dos movimentos políticos mais efervescentes e democráticos das últimas décadas, como o movimento negro e o movimento feminista, que vêm oxigenando a política e a sociedade brasileira de forma interessante e necessária”.
Mas a crítica que deve ser feita ao ativismo puramente identitário não é apenas que ele pulveriza as questões políticas e sociais e fragmenta o campo progressista.
Os problemas são mais profundos e estão mais ligados ao conteúdo do que à forma. Para resumir, podemos levantar que, em primeiro lugar, esse discurso que se considera mais evoluído que um mero “binarismo popular” se distancia da realidade do povo trabalhador, preso a urgências como emprego, renda e sobrevivência.
Em segundo lugar, como colocado por Graham Holton, o ideal de sociedade desenhado pelo liberalismo no pós guerra e imposto como farol e como verdade pelos americanos, é comumente usado para atacar regimes fora do capitalismo, sobretudo países socialistas como Cuba e China. Isso fica claro em um trecho do artigo “A guerra contra a China substituirá a Guerra ao Terror?”, de Thomas L. Friedman, que coloca valores americanos liberais como “valores universais”. O trecho diz: "Não há dúvida de que a melhor maneira de os Estados Unidos contrabalançarem a China é fazer aquilo que a potência asiática mais odeia: confrontá-la com uma ampla coalizão transnacional, baseada em valores universais compartilhados, como o estado de direito, o livre comércio, os direitos humanos e os padrões básicos de contabilidade".
Em terceiro lugar a concepção identitária desprovida de uma base classista renega o fato de que a esquerda tradicional sempre se propôs a tratar de qualquer questão que diz respeito à evolução humana e à evolução social, como as questões de gênero, racial, além da questão ambiental. Mas o faz a partir da ideia da superação da exploração capitalista.
E, em quarto lugar, a pauta identitária comumente aponta para soluções estéticas ao invés de enfrentar as raízes dos problemas.
O efeito rebote que isso tem causado é assustador. É notório que nas eleições americanas de 2016 trabalhadores afetados pela crise de 2008 viabilizaram a vitória do empresário de extrema direita Donald Trump. A mesma linha de raciocínio pode se aplicar à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018, lembrando que a chapa que o confrontou foi fortemente influenciada pela pauta identitária.
Em 2020, mesmo com sua derrota, Trump conquistou uma votação expressiva entre negros e latinos. No artigo "Voto de não brancos em Trump revela armadilha do identitarismo", a jornalista Maria Cristina Fernandes mostra que o perfil antissocial de Trump não impediu “que ele tivesse, em relação à eleição de 2016, uma votação proporcionalmente maior entre latinos, negros e asiáticos. Foi a melhor votação republicana entre os não brancos dos últimos 60 anos”, mesmo depois da comoção mundial provocada pela morte de George Floyd e de todo o vigor do Black Lives Matter.
Isso mostra que o identitarismo tem uma receptividade maior entre a classe média dos centros urbanos, com maior poder de consumo, mas afasta o povo que acaba encontrando acolhimento em políticos simplórios que vendem soluções fáceis como Trump e Bolsonaro.
Dissociar a luta de classes do ativismo social faz com que os militantes não se identifiquem como trabalhadores, criando uma barreira entre uma militância seleta que se vê como “vanguarda” e o povo.
Mas para ser vanguardista e revolucionária a esquerda deve ser crítica a esse discurso liberal e tomar cuidado com as fronteiras tênues entre ele e as chamadas pautas identitárias. Deve considerar o povo oprimido e a classe trabalhadora. Não dividir esse povo entre mulheres, negros, indígenas, homossexuais etc. As questões raciais, ambientais e de gênero só são revolucionárias quando abordadas a partir da raiz das desigualdades e das injustiças históricas. Este é um caminho mais complexo e que encontra grande resistência, uma vez que abala as estruturas sociais. Mas é o que diferencia a esquerda progressista da direita liberal.
*Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo