O professor Ismar Soares, do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (USP), recorda as palavras de um garoto de cerca de 10 anos quando perguntado sobre o que sonhava para o futuro. A criança participava do projeto de extensão “Educom.rádio”, que nasceu em 2001, desenvolvendo trabalhos de educação e comunicação com o público infantil.
“Quando eu crescer quero ser Paulo Freire”, lembra o docente, um dos fundadores do curso de Licenciatura em Educomunicação da USP, ao se referir às palavras do menino.
“Ele estava entendendo tudo. Ele tinha no imaginário dele um revolucionário. Ele queria ser o revolucionário. Certamente ele não queria ser a imagem do velhinho que estava ali, ele estava querendo a imagem de um líder e ele queria ser aquele líder. E isso se multiplica. Crianças que querem ser Paulo Freire se multiplicam. Nós necessitamos dar espaço para essas crianças”, ressalta.
Neste domingo, dia 19 de setembro, comemorou-se os 100 anos do nascimento do educador, filósofo e patrono da educação brasileira, Paulo Freire.
Sua vida foi fundamentalmente dedicada à educação e à alfabetização, mas para além disso, Freire foi responsável por criar um método revolucionário que ultrapassa a filosofia e a pedagogia.
Baseado na construção de uma visão crítica, na dialética, na intrínseca aproximação com a realidade dos educandos e no diálogo entre teoria e prática, Paulo Freire, durante os seus 75 anos de vida construiu, juntamente com os movimentos sociais do Brasil e do mundo, formas de romper e superar barreiras educacionais de dominação dos povos.
O que é Educomunicação?
Uma das áreas enraizadas nos postulados freireanos é a Educomunicação, um campo de estudo e prática voltado para o diálogo entre as áreas da comunicação e da educação.
O seu desenvolvimento parte de processos que possuem como base a educação midiática, a gestão democrática da mídia, a produção de conteúdos educativos e o uso de diversas formas de mídia em processos de ensino-aprendizado. Tudo isso visando um maior enraizamento da democracia e a ampliação da participação popular nos processos comunicativos.
“A construção do conceito, que posteriormente foi denominado como 'Educomunicação', inicialmente não tinha um nome especial, mas ganhava a designação de educação popular, comunicação alternativa, mobilização pela democratização da comunicação”, como explica Soares.
Com uma raiz histórica nos movimentos sociais latino-americanos, a Educomunicação tem conquistado espaço e voz tanto no Brasil, quanto internacionalmente. E muitas de suas estruturas teóricas e métodos práticos se baseiam nos pilares da práxis de Paulo Freire.
Juntamente com as ideias e práticas de latino-americanos como as do comunicador popular e radialista Mário Kaplún, os ideais freireanos constituem estruturalmente a educomunicação.
Para o Professor Ismar Soares, a obra de Paulo Freire e a educomunicação nasceram simultaneamente.
“A contribuição de Freire foi justamente a de permitir que as pessoas envolvidas com comunicação e educação, numa perspectiva libertária, refletissem sobre sua prática. Então Paulo Freire não foi um teórico que apareceu e escreveu uma grande obra e deixou um grande legado e a partir disso as pessoas se inspiraram nele. Ele foi alguém que, junto com o movimento social, foi construindo práticas, analisando práticas e possibilitando com que as pessoas refletissem sobre suas práticas”.
O professor ainda afirma que Paulo Freire transformou todo o educomunicador em um filósofo, pois este sujeito deve partir do processo de uma reflexão dialética sobre a práxis.
“Quando os articulistas internacionais, os pesquisadores internacionais, ao lerem Paulo Freire e ao observarem o movimento educomunicativo, descobriram que havia uma conexão entre o pensamento freireano e a ação educomunicativa. Então não era simplesmente um projeto de educação para a mídia voltado para os meios. Mas era um movimento em torno do processo comunicativo libertário, a partir da perspectiva de transformação social profunda proposta por Freire”.
Um exemplo dessa transformação está acontecendo na vida do jovem Ricardo Boa Sorte, que mora em Lençóis, na Chapada Diamantina, na Bahia.
Ele participa das ações educomunicativas da chamada TiVi Griô, uma WebTV e Cineclube baseada em princípios pedagógicos. Além disso, Ricardo participa de formações que favorecem processos reflexivos sobre identidades, territorialidades e ancestralidades.
Assim, o artista e educomunicador afirma que as práticas educomunicativas favorecem, por exemplo, identificar o colonialismo nos dias atuais, além da busca de mais conhecimentos na área.
"Acabou trazendo coisas críticas também relacionadas à exploração, por exemplo. Foi quando fechou a exploração do diamante, que veio a exploração do turismo, que é outro tipo de exploração. Quem são os garimpeiros de hoje? Quem são os coronéis de hoje? Como se dá essa relação de trabalho entre empregado e empregador, patrão e funcionário? Enfim, mas é isso. Me despertou para pesquisar mais. Estar mais junto com essa galera aí que está estudando comunicação. Ler mais livros sobre".
Protagonismo dos oprimidos
A busca por uma mudança no colonialismo pode ser vista por várias perspectivas freireanas, uma delas é a cultura do silêncio. Neste postulado, o patrono da educação teoriza, por exemplo, que um colonizador vai impor suas histórias e narrativas diante de um colonizado, silenciado.
Por isso, o comunicólogo Kaká Nascimento, que mora em Campina Grande, na Paraíba, defende a educomunicação como forma de 'barulhamentos' para protagonizar as pessoas oprimidas.
“A prática freireana converte o silêncio no direito de falar, no direito de comunicar. A gente fala sobre como as ações educomunicativas, sobretudo as proporcionadas pelo meio popular, o campo popular, as organizações sociais, cumprem um papel a de desconstruir essa sociedade do silêncio, que foi uma imposição das minorias de alta classe em relação às maiorias populares”.
E partindo da ideia de que todo este processo, tanto da educação quanto da comunicação, vive uma disputa constante de projetos de dominação versus libertação, falamos também sobre a possibilidade de combate às fake news com base na educação midiática desde a infância e sobre o mundo que queremos para o futuro.
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Para Ismar, “a Educomunicação é a principal arma no ataque às fake news. Tem a formação das novas gerações numa perspectiva de receber este mundo sob uma ética da verdade, do direito à expressão, a ética de ecossistemas abertos e anti-ditatoriais”.
“Nós sempre entendemos que as crianças no ensino infantil, os pré-adolescentes vão receber conhecimento. Mas esses bebês, essas crianças, esses adolescentes são os donos da terra. Nós adultos estamos deixando uma terra para eles. Ou não. As crianças necessitam dizer que país eles querem para elas. Isto é, a mobilização das crianças em favor de uma cultura de paz, em favor de uma cultura de desenvolvimento, em favor de uma mobilização nacional, é necessário que seja feita”.
As propostas libertadoras encontram resistência ainda hoje, assim como o próprio Paulo Freire teve que se exilar durante a ditadura militar. Durante a entrevista ao Brasil de Fato, por exemplo, o professor Ismar se recordou de matérias publicadas na mídia hegemônica, as quais culpam Paulo Freire pelo atraso da educação nacional.
“O mundo liberal foi contestado por Paulo Freire ainda em um momento em que o termo neoliberal nem era usado. Então a filosofia freireana, ela, politicamente, se contrapõe ao liberalismo como ele é concebido. Portanto, ele tem uma perspectiva política. Isso não há dúvida. Então Paulo Freire teve uma opção política. E no caso, os que não comungam com essa posição política veem em Freire um ideólogo que é preciso tirar fora da visão das crianças, da visão de quem possa ser influenciado por ele. E no caso, estamos sim, frente a um embate. É um embate dos que pensam a educação, a vida social, a cultura numa perspectiva privatista e celetista e os que estão defendendo uma vida social de maior qualidade para todos”.
Edição: Anelize Moreira