Assuntos relacionados as vacinas estão, talvez como nunca antes, presentes nas conversas cotidianas da população brasileira desde que a pandemia de covid-19 se espalhou pelo planeta.
É justamente nesse contexto, no entanto, que a cobertura vacinal referente a outras doenças sofre uma queda tão grande que alcança os patamares da década de 1980. O alarmante dado foi divulgado pela Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde no início deste mês.
Entre as imunizações que despencaram está a da hepatite B. A cobertura que chegava a 79% em 2019 passou para 63,5% no intervalo de apenas um ano. Já a vacina BCG, que previne contra a tuberculose, foi aplicada em 3 milhões de pessoas em 2015 e, no ano passado, em 2,1 milhões.
Apesar da queda na cobertura vacinal ter se agravado com a pandemia de coronavírus, essa não é a sua única causa. As outras razões que podem explicar esse quadro e também as perspectivas para revertê-lo são alguns dos temas conversados com a Dra. Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Brasil de Fato: Os dados apresentados sobre a queda na cobertura vacinal são preocupantes. Para a poliomielite, por exemplo, uma doença grave que causa paralisia, a cobertura era de 98% em 2015 e caiu para 76% em 2020. Você pode esmiuçar esse cenário?
Dra. Flávia Bravo: O Programa Nacional de Imunizações (PNI) é - ou era – a instância que estabelece as estratégias, os calendários de vacinação e também a logística da distribuição de vacinas.
O PNI foi criado em 1973 e foi se solidificando aos poucos, num país do tamanho do nosso, com um trabalho muito sério, inclusive de comunicação com o qual conquistou a confiança da população.
Cada vacina que foi introduzida no Programa, o foi com cuidado, com bons estudos de risco e eficácia e com suficiência de doses para atingir todo mundo igual em qualquer município que você esteja.
Para realmente reduzir a carga da doença, reduzir a mortalidade e etc., é preciso ter cobertura vacinal. Para algumas vacinas a meta é de 90% e para a maioria é de 95%. Da década de 1980 até 2015, nós vínhamos conseguindo isso.
Algumas pessoas poderiam ver esses dados como uma consequência unicamente da pandemia de coronavírus. Talvez as pessoas tenham ido menos aos postos de saúde em busca de proteção de outras doenças, por exemplo. Mas os dados mostram que realmente essa queda da cobertura vacinal já estava em curso desde 2015. Quais as suas principais causas?
A pandemia foi um fator adicional a outras múltiplas causas para a queda na cobertura. Quais são as causas? Primeira: o sucesso do programa. As pessoas pararam de temer as doenças. A gente não via mais paralisia infantil, sarampo, coqueluche. Quando a gente teve esse surto de sarampo teve que ter um treinamento para o diagnóstico até para os médicos jovens, que não viam mais sarampo.
Um paradoxo, né Dra. Flávia? O próprio sucesso das vacinas coloca em risco o sucesso das vacinas.
É um paradoxo. Mas aí o que você tem que fazer? Que é o outro fator. É trabalhar isso: lembrar a população que a única doença realmente erradicada do planeta graças à vacinação foi a varíola. Então há necessidade de manter cobertura para a gente se manter livre dessas doenças.
Para conseguir isso é necessária uma boa comunicação com a população. Nós tínhamos o Zé Gotinha que a geração de jovens ou de crianças atual nem sabe quem é, alguns eu já ouvi dizer que tem até medo da figura. E ele era um herói nacional. Tinha a campanha do sujismundo – quem é velho vai se lembrar!
A falta de medo; a piora na comunicação; o crescimento da complexidade do próprio programa e dos calendários; a dificuldade de acesso e disponibilidade; o crescimento da população.
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O tema imunização não faz parte de grade séria de nenhuma escola de medicina ou de enfermagem. Houve modificações também do próprio grupo técnico que trabalha nas salas de vacinação. Hoje em dia a gente utiliza muito essas ONGs ou funcionário que é contratado sem ser concursado. E numa situação que vem sendo piorada de falta de mão de obra.
Tanto o sucateamento quanto esse movimento de privatizações, de trazer Organizações Sociais para dentro Sistema de Saúde, também estão relacionados?
Exatamente. Então o que a gente viu foi essa deterioração, por diversos motivos, de um sistema que funcionava bem e que foi piorando a ponto da gente chegar na situação que chegamos em 2020, em que absolutamente nenhuma vacina atingiu meta.
Em 2021 pelos últimos dados que vi, as coberturas estão abaixo de 50% em todas as regiões. Em algumas regiões está pior que em outras, ou seja, pior: sem homogeneidade.
As desigualdades geográficas, de raça, de classe, também aparecem nesses dados. A segunda dose da tríplice viral, por exemplo, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola, alcançou menos de 50% de cobertura em todos os Estados do Norte neste ano.
Por que você acha que está com transmissão ativa no Ceará nesse momento, que estava controlado? A cobertura parou e a doença volta.
O que precisa ser feito para que, ainda mergulhado nesse contexto pandêmico, o Brasil volte aos níveis de cobertura vacinal que tinha antes?
É preciso fazer renascer o Programa Nacional de Imunizações. O Programa foi sucateado, não tem um coordenador nacional há dois meses. As ações precisam ser integradas e planejadas por quem entende.
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Nós temos técnicos experientes. São 48 anos de PNI e que tivemos sucesso na maior parte desse período. Hoje em dia está difícil porque a impressão que temos é que o Programa não está conseguindo trabalhar.
Depende de planejamento, comunicação, logística, informações de qualidade. É possível reverter? É. Se a gente conseguir resgatar o papel do PNI, utilizar a expertise desses técnicos que estão lá, houver a vontade política de resgate dessas coberturas e aproveitar o que o passado já nos ensinou.
Edição: Anelize Moreira