Os golpes de estado no continente africano têm sido um fenômeno constante desde o processo de descolonização. O golpe de força de 5 de setembro em Conakry, capital da República da Guiné, intervém em um país que conheceu apenas três presidentes desde sua independência em 1958: Ahmed Sekou Touré, Lansana Conté e Alpha Condé.
A ex-colônia francesa sofre com um histórico politicamente conturbado e viveu longos períodos ditatoriais. O primeiro presidente democraticamente eleito do país, em 2010, Alpha Condé, líder do partido Assembleia do Povo da Guiné (Rassemblement du peuple de Guinée – RPG), sofreu um golpe de Estado, após manobras constitucionais para se reeleger pela terceira vez consecutiva. O primeiro civil na presidência teve seu mandato interrompido por um golpe realizado pela junta militar National Committee of Rally and Development, liderado pelo coronel Mamady Doumbouya. Logo após sua captura, um pronunciamento foi realizado em todo o país, além do fechamento das fronteiras e a invalidação da constituição.
:: Golpe na República da Guiné: militares detêm presidente e dissolvem governo ::
Como em outras democracias fantasmagóricas na África, os militares estão agindo como reguladores e desbloqueando à força situações políticas paralisadas. O desafio é organizar uma transição pacífica e entregar o poder aos civis o mais rápido possível.
Várias nações africanas promulgaram constituições que proíbem qualquer uso da força para obter o poder. A União Africana (UA) parece seguir esta linha: durante tentativas de golpe em seus países membros, muitas vezes exige um retorno à ordem constitucional ou enfrenta sanções. Em junho, a organização suspendeu o Mali, após um segundo golpe militar no país em nove meses. Na Guiné, o golpe de 5 de setembro foi imediatamente denunciado pelo congolês Félix Tshisekedi, atual presidente da UA, e a UA anunciou sua suspensão de todas as suas atividades e órgãos decisórios, assim como a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Além disso, a organização pan-africana, com sede na capital etíope Addis Abeba, pediu ao Conselho de Segurança da ONU para “aprovar o comunicado final da CEDEAO”. Mesmo assim, não parece que o coronel Mamady Doumbouya tenha sido afetado, uma vez que dissolveu o governo e as instituições. Também aboliu a Constituição adotada por Condé em 2020.
Alguns analistas acreditam que, em certas circunstâncias, um golpe de estado pode ser eticamente justificado, se for para acabar com um regime ditatorial, derrubar um governo não democrático que não garante o bem-estar de seus cidadãos ou expulsar líderes que mudam as leis nacionais. Baseiam-se na "ética utilitarista", desenvolvida no século XVIII pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, segundo a qual um ato ilícito pode ser legítimo se maximizar o bem-estar coletivo. Os golpistas africanos sempre argumentaram que agiram pelo bem do povo. Os recentes golpes de estado na Guiné ou no Mali atendem a esses critérios?
As declarações do coronel golpista Mamady Doumbouya indicam o uso de vários pretextos para justificar o assalto ao poder. Uma delas é o culto à personalidade do ex-residente Alpha Condé, a pobreza e corrupção endêmica, além "da instrumentalização da Justiça e o atropelo dos direitos dos cidadãos". Esses fatores têm motivado cada vez mais o desespero dos jovens africanos, ao ponto de aceitarem golpistas que prometem mudanças radicais, como foi testemunhado nas ruas da Guiné após a tomada do poder, com alguns guineenses exultantes beijando os soldados.
Mas quais serão as implicações dessa onda de retorno ao militarismo na África? Tudo indica que o coronel Doumbouya usará o mesmo manual de golpe aperfeiçoado por Goïta (Mali) e Déby (Chade), repetindo o cronograma de transição de 18 meses e prometendo reescrever a constituição para apaziguar a comunidade internacional. Se os vizinhos da Guiné e parceiros externos aceitarem, isso servirá como um sinal para os soldados ambiciosos em Benin, Costa do Marfim e Níger –citanado apenas alguns candidatos potenciais- de que há consequências limitadas para a tomada do poder. Embora seja difícil provar um efeito de contágio, os golpes na região tendem a ocorrer em ondas.
Para evitar esse cenário, os organismos regionais de África e os parceiros internacionais precisam agir de forma mais decisiva para antecipar e responder a esta tendência alarmante de golpes em evolução na África Ocidental e subsaariana. Até o momento, a comunidade internacional tem sido dócil, como ocorreu na resposta às eleições problemáticas no Benin, ambivalente no combate à corrupção no Mali e desigual quanto aos limites de mandato de A.Condé na Guiné e na Costa do Marfim.
A razão dessa falta de firmeza está ligada à tendência das potências ocidentais (Estados Unidos e Europa) priorizarem o contraterrorismo ou a competição estratégica com a China e a Rússia, em vez da promoção da democracia e dos direitos políticos e liberdades civis. Não parece que essa aposta vá trazer benefícios, a curto e médio prazo, aos africanos. As experiências militares têm mostrado sua ineficácia em atender a resolução dos problemas dos milhões de jovens, um elemento que é aproveitado pelos grupos criminosos e terroristas na região do Sahel. As ambivalências do Ocidente e a incapacidade efetiva da União Africana em impor regras para o respeito ao Estado de direito e processos democráticos terá apenas a contribuir com o retorno da ingerência militar no poder político e todas as consequências que isso acarreta.
A República da Guiné
A República da Guiné tornou-se independente em 1958, livrando-se do domínio francês presente no país desde o século 16. A independência foi conquistada por meio de um referendo, realizado pelo presidente da França Charles de Gaulle.
O governo de Ahmed Sékou Touré durou 26 anos, da posse em 1958 até sua morte em 1984, quando um levante dos militares, liderados por Lansana Conté, levou à criação de uma junta militar para comandar o país, com Conté na posição de presidente.
As primeiras eleições no país foram realizadas em 1993, e Conté foi eleito presidente com 51,7% dos votos. Mesmo com o retorno do poder civil e a constituição de um governo multipartidário, Conté utilizou o governo de forma autoritária. Em 1998, venceu novamente as eleições, garantindo mais 5 anos de poder. Houve, porém, contestação da oposição quanto à legalidade das eleições, com alegações de fraude. Em 2003, Conté novamente ganhou as eleições.
Depois da sua morte, em 2008, a Guiné passou por um período interino marcado por um golpe de Moussa Dadis Camara, que trouxe ainda mais instabilidade e violência e protestos por eleições e democracia. Em 2010, as eleições trouxeram ao poder Alpha Condé, líder do partido opositor Assembleia do Povo da Guiné (Rassemblement du peuple de Guinée – RPG), que iniciou uma série de reformas para trazer estabilidade política e econômica à nação. Apesar da esperança de mudanças pelas vias democráticas, seus mandatos sofreram questionamentos de fraude eleitoral, incapacidade de diminuir os níveis de pobreza e, recentemente, meios duvidosos para manter-se no poder, o que levou à sua queda.
As tendências autoritárias apontadas por opositores do governo de Condé e as manobras constitucionais para sua terceira reeleição acenturam a fragilidade persistente das instituições do país. Com um passado político de luta pela democracia, o ex-presidente guineense não exitou em manipular a constituição de seu país para se perpetuar no poder.
Mesmo com a Guiné possuindo riquíssimas reservas minerais (a maior reserva de bauxita do mundo) e grande capacidade para agricultura comercial, as reformas macroeconômicas que promoveram cerca de 2% a 4% de crescimento anual do PIB não foram suficientes para melhorar as condições de vida da população. O crescimento da economia foi marcado pela retirada de subsídios à população, o que levou a uma piora nos níveis de pobreza.
*Mohammed Nadir, Flávio Thales, Enrique Lima, Kethelyn Santos e Pedro Lagosta são pesquisadores do Observatório de Política Externa e Inserção do Brasil (Opeb) da UFABC.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo