Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou que o Brasil poderia conceder visto humanitário para afegãos que estejam fugindo do Talibã. Mas impôs uma condição: somente os cristãos. O professor de Relações Internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser criticou a declaração, com palavras duras e sem papas na língua.
“É islamofobia com pobre, o Bolsonaro tem islamofobia com os sheiks do Golfo Pérsico? Não, não tem. Islamofobia com islâmico fodido tem, mas com islâmico que tem poder? Ninguém mexe. A elite islâmica do Brasil apoiou o Bolsonaro. Tudo traíra. Islamofobia de pobre, refugiado e que está fodido. Quem tem dinheiro não sofre islamofobia”, disse Nasser.
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Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor lamentou que a tentativa de fuga de afegãos no aeroporto de Cabul tenha sido pouco e mal abordada e analisada pela mídia ocidental, que teria comprado uma narrativa vendida pela imprensa estadunidense.
“Veja bem, houve um grande exagero nessa história toda. Óbvio que foi uma tragédia em Cabul. Mas aquele é um evento, dentro de um contexto maior...O que aconteceu no aeroporto de Cabul foi a retirada dos afegãos que tentavam fugir do Talibã, é isso que ocorreu. Os americanos já tinham saído e sem relato de morte, nem de civil e nem militar. A base de Bagram, base aérea que fica no Afeganistão, estava vazia havia tempos, estava abandonada”, argumenta.
Reginaldo Nasser lançou o livro “A luta contra o terrorismo: Os EUA e os amigos talibãs”, pela Contra Editora. Sobre a publicação, o professor explica faz um “resgate e uma análise do processo histórico do Afeganistão. Para não ficar apenas descritivo, eu hierarquizei alguns temas e tem ali a minha interpretação. O livro começa no pré 11 de setembro de 2001 e vai até o final do governo de Donald Trump.”
Confira na íntegra a entrevista.
Brasil de Fato: O Talibã, em algum momento, chegou a substituir o Estado no Afeganistão?
Reginaldo Nasser: Antes de tudo, temos que entender a organização econômica e social do Afeganistão, esse é o ponto de partida. No Afeganistão, 75% da população é rural, e se organiza em tribos. Isso significa que a autoridade e o poder são muito fragmentados. A imagem mais próxima que nós temos, desse tipo de organização, é do período feudal na Europa. Então, esse líder tribal tem o controle de tudo, da economia às armas, esses líderes têm exército particular.
Investigando melhor, cheguei à conclusão de que, no Afeganistão, não se viabiliza qualquer poder que queira ser centralizado e unificado. Não existe isso, se o Talibã decidir fazer isso, vai cair. Como o Talibã conhece bem a região, sabe que terá que fazer acordo com esses líderes tribais. O Talibã, aliás, nunca dominou todo esses territórios, eles sempre fizeram bons acordos com os líderes tribais. Quando os EUA invadiu, em 2001, uma parte desses líderes tribais ficaram contra os Talibãs.
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Então, isso aqui que você perguntou é meia verdade, se tornou um jargão repetido no mundo. Eu dou o exemplo das drogas. Quando o Talibã era governo, reprimiu, as plantações de papoulas. Durante a guerra, para fazer uma imagem internacional, para mostrar como os EUA estava reprimindo a população, o Talibã liberou o plantio. Nos livros que li e nos relatos, não encontrei nada muito próximo a dizer que o Talibã substitui o Estado. Não avaliaria por aí, mas de toda forma, é importante dizer que o Talibã faz parte da sociedade afegã.
Como o senhor viu a saída americana do Afeganistão?
Eu ainda estou para entender direito o que aconteceu. Mas veja bem, houve um grande exagero nessa história toda. Óbvio que foi uma tragédia em Cabul. Mas aquele é um evento, dentro de um contexto maior. O pessoal do Trump, que iniciou as negociações, sentou em Doha e fez um acordo, de forma oportunista começou a atacar o Biden. Uma parte do Partido Democrata, também.
Então, a imprensa americana criticou a retirada das tropas e aqui, no Brasil, a imprensa foi só repetindo as críticas, e a direita e a esquerda também foram por aí. Quando começa o ano de 2021, os EUA tinha, no Afeganistão, no máximo 3.500 homens. Olha, 3.500 homens segura o Talibã? Óbvio que não. O Biden (desde o começo do ano) começa a cortar recursos e sair, e o Talibã avançando.
No livro, eu falo da retirada dos EUA, e eu entreguei o livro no começo de agosto. O que aconteceu no aeroporto de Cabul é diferente, foi a retirada dos afegãos que tentavam fugir do Talibã, é isso que ocorreu. Os americanos já tinham saído e sem relato de morte, nem de civil e nem militar. A base de Bagram, base aérea que fica no Afeganistão, estava vazia tinha tempo, estava abandonada.
Todas essas guerras, no Afeganistão e no Iraque, foram bastante terceirizadas, chegaram a ter 100 mil contratados, que não são fuzileiros navais, são civis ou militares
No início do ano, tinham 17 mil contratados no Afeganistão, e em abril caiu para 4.000 ou 5.000. Essa redução foi qualitativa, porque era o pessoal que cuidava da Força Aérea, isso permitiu o avanço do Talibã nas cidades, porque o meio rural já estava completamente tomado.
A dúvida era se teria batalha quando o Talibã chegasse nas cidades, não aconteceu nada. Estava tudo previsto, a velocidade que acelerou, mas estava previsto. Foi muito exagero. Olharam Cabul como se fosse o Afeganistão. A imprensa ocidental tomou isso como modelo, entendendo o que acontece em Cabul como se fosse todo o Afeganistão.
Agora, sob a tutela do Talibã, qual deve ser a relação do Afeganistão com os vizinhos?
O Afeganistão não está conectado ao Oriente Médio. O Talibã nunca se pronunciou sobre a Palestina, então com Israel não há nada. O Talibã nunca atacou alguém além da fronteira. Ao contrário da Al Qaeda, o Talibã nunca incomodou fora do Afeganistão. Quem colocou o Afeganistão no cenário foi a Al Qaeda e lá atrás a Jihad, porque a União Soviética estava lá. Mas não há conexão com o Iraque, por exemplo, ou nenhum outro país do Oriente Médio.
Quem quer fazer a conexão é o Estado Islâmico, um braço no Irã e na Síria, na verdade, que quer fazer essa conexão e, inclusive, acusa o Talibã de traição aos muçulmanos. Doutrinariamente, eu diria que o Estado Islâmico tem mais coerência, porque a ideia deles é que a comunidade islâmica está acima das nações. Então, não interessa ter poder no Afeganistão, porque o Estado Islâmico não reconhece a existência das nações. Quem quer levar e conectar o Oriente Médio é o Estado Islâmico.
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Diante da péssima repercussão da invasão americana em solo afegão, o senhor acha que eles conseguirão justificar novas investidas bélicas em outros países?
O pós-II Guerra Mundial trouxe o fato de que a possibilidade de qualquer grande potência entrar em guerra com outra grande potência é quase impossível. Vão ficar disputando, mas a possibilidade de uma guerra é miníma. Agora, a capacidade dos EUA de fazer isso é imensa.
Os EUA não foram derrotados nesse episódio do Afeganistão. Morreram apenas 2.500 mil americanos em 20 anos, isso é pouco
Quantas pessoas morrem no Brasil por ano? O que a sociedade americana fez? Passeata? Nada. Quando se fala do Vietnã, também não houve derrota militar. Os EUA poderiam ganhar. Mas, lá dentro dos EUA, pediram a volta para casa, morreram 54 mil americanos, atingiu a classe média. Enquanto estava morrendo negro e índio, eles não se preocupavam.
A questão agora é que o presidente Joe Biden e os democratas estão agindo dentro dos EUA, é uma batalha fodida para taxar grandes corporações. Olha só, o Iraque está arrebentado, a Síria, o Líbano e a Palestina, também. Isso é ruim para os EUA? Alguém disse que os EUA querem aliados. Sim, é o ideal. Mas se eles tiverem aliados, não têm inimigos. Quem é o Iraque hoje? Ninguém. Era o Estado mais poderoso na região. Quem tem poder na região? O Irã.
Os EUA não vão entrar em guerra com o Irã. Mas os EUA vão fazer pequenas ações em outros lugares do mundo. Há uma especulação, não já, de que vão para a África, com a justificativa de busca por petróleo. Mas eu acho que o Oriente Médio nunca sairá do radar, até por conta de Israel. Eles vão para algum lugar, é uma máquina, você acha que eles vão desligar a máquina?
::O que esperar sobre as relações entre EUA e Irã com a gestão de Joe Biden?::
Bolsonaro disse que pode oferecer visto humanitário aos afegãos que fugirem do Talibã. Mas somente aos cristãos. É islamofobia?
Sem dúvida nenhuma, isso aí é para agradar o setor evangélico e continuar com o mote de extrema direita dele. Islamofobia entre aspas, minha veia marxista não deixa. É islamofobia com pobre, o Bolsonaro tem islamofobia com os sheiks do Golfo Pérsico? Não, não tem. Islamofobia com islâmico pobre tem, mas com islâmico que tem poder, ninguém mexe com eles. A elite islâmica do Brasil apoiou o Bolsonaro. Islamofobia de pobre, refugiado e que está fodido, quem tem dinheiro não sofre islamofobia.
Edição: Vinícius Segalla