Entre janeiro de 2020 a abril deste ano, a Prefeitura de Belo Horizonte (MG) liberou a construção de 10.295 novas moradias. Também em abril de 2021 foi registrado que 8.901 pessoas moram nas ruas da capital mineira.
Tais dados são reflexo da disfuncional economia nacional. O primeiro resulta de pesquisa no banco de informações da Secretaria de Política Urbana do Executivo da capital. A quantidade de indivíduos em situação de rua foi apurada pelo grupo Polos de Cidadania da UFMG.
Acessar a moradia no Brasil significa quase que um processo revolucionário
Os números revelam que o problema das pessoas em situação de rua não é a falta de moradia. 50 mil famílias na cidade não têm casa própria. Ao mesmo tempo, existem 64 mil localidades vazias, segundo relatório da Câmara Municipal, de 2020.
Além disso, quem anda pela cidade sabe que a construção civil está a todo vapor. E o segmento não para de anunciar novos empreendimentos. Mas, há um grande problema nisso: quem realmente precisa não será abrigado por essas novas moradias.
Imóveis servem para alimentar especulação
Uma das principais razões para esse cenário é a especulação imobiliária, segundo Tiago Castelo Branco, arquiteto, historiador e professor de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Minas).
Investidores compram muitas moradias e as vendem posteriormente a um preço maior. Enquanto a venda não ocorre, geralmente o proprietário aluga ou deixa vazio. Isso é a especulação.
O professor Tiago desenvolve assessoria técnica às ocupações urbanas como coordenador do projeto de extensão Tecnologia de Urbanização Sustentável e é membro do grupo Produção do Espaço Urbano no Brasil (PEU BR), vinculado ao CNPq.
O agente privado deve ser orientada pelas políticas urbanas priorizando o que é determinado pela Constituição Federal
“A moradia serve para manter a acumulação de capital (riqueza). Acessar a moradia no Brasil significa quase que um processo revolucionário. E isso não é um problema dos atuais governos, é de vários”, opina o arquiteto.
Eduardo Bittencourt, professor de Arquitetura e Urbanismo na mesma universidade, considera um dos maiores problemas da habitação no país o fato de “ser produzida fundamentalmente por uma lógica privada, do lucro. Quem pode pagar, leva”.
Está muito complicado. A gente só depende do dinheiro das balas
“Assim, a gente vai vendo o lado social se perder. É claro que o agente privado não pode ser descartado. Ele tem uma capacidade de produção enorme, mas deve ser orientada pelas políticas urbanas priorizando o que é determinado pela Constituição Federal”, avalia Eduardo, coordenador do projeto de extensão Regularização Fundiária Plena e também membro do grupo PEU BR.
Responsabilidade das prefeituras
A Constituição Federal assegura o direito à moradia a todos, sem distinção de condições econômicas. Para isso, a lei diz que as propriedades devem cumprir uma função social, isto é, abrigar famílias e ou atividades econômicas, por exemplo. Sendo assim, a especulação imobiliária seria inconstitucional.
O docente chama atenção para o artigo 30, inciso 8, que diz: entre as competências dos municípios, uma delas é a promoção adequada do “ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
Em outras palavras, isso quer dizer que as ações habitacionais são responsabilidades das prefeituras e câmaras municipais. Os Estados e a União interviriam apenas para auxílio.
Hoje, porém, o contrário ocorre. O último grande programa de habitação do país, o Minha Casa, Minha Vida era do governo federal. E a Caixa Econômica, banco da União, é o maior financiador de residências no Brasil. Diante disso, a população praticamente não intervém nas políticas habitacionais em razão da distância de Brasília.
“Essa realidade faz com que os financiamentos sejam concedidos a partir dos mesmos critérios, sem se adequar às diferentes realidades dos municípios”, diz Eduardo.
Segundo ele, isso significa que a Caixa Econômica pode estar não provendo moradias para quem realmente precisa, mas sim para quem pode pagar. Dessa maneira a desigualdade tende a aumentar.
Histórias reais
A moradia é base da dignidade humana. Sem ela, as pessoas se tornam vulneráveis. Esse é o caso de Alessandra Fábio de Assis, de 47 anos. Há 34 anos ela mora na rua. Após o falecimento de sua mãe, o padrasto a expulsou de casa aos 13 anos. Desde então, esteve sempre nas ruas, sobretudo de Belo Horizonte.
Sua condição piorou após o desfecho de um relacionamento de quatro anos com um homem.
“Em janeiro de 2020 ele me bateu. Bateu muito. Me deu pauladas. Fui para o médico e lá descobri que o machucado teve efeitos muito grandes. A ponto de a minha perna ter ficado inválida. Aí, o médico disse que seria necessário tirar ela. Então, eu perdi minha perna”, conta.
“Tenho família. Mas ela me largou. Infelizmente eu preciso de ajuda, não estou aposentada. Preciso de ajuda de alguém para comprar a minha prótese (a perna mecânica) ou uma cadeira de rodas elétrica”, suplica Alessandra.
Hoje em dia, ela integra um grupo de 15 pessoas que estão em uma ocupação, chamada Casa Verde. Ela fica na avenida Timbiras, na esquina com a avenida Olegário Maciel, no bairro Lourdes, região Centro-Sul de BH. Após pouco mais de uma década abandonado, o imóvel foi ocupado em novembro de 2020 e as pessoas foram chegando aos poucos.
Mais uma família necessita de lar
No momento em que a reportagem esteve na ocupação, um casal batia à porta. Alessandra Maria Alves e John Clis Cardoso e os dois filhos procuravam um abrigo por ali. Infelizmente a ocupação estava cheia.
Ela perdeu o emprego em 2020. O companheiro é vendedor de balas. A família residia até o dia 15 deste mês em um cômodo alugado no bairro Taquaril, na região Leste.
A perda na renda comprometeu o pagamento e o proprietário solicitou o imóvel. Sem condições para bancar outro aluguel, a alternativa é tentar se encaixarem em alguma ocupação.
“Está muito complicado. A gente só depende do dinheiro das balas. O problema é pagar o aluguel. Tem dia que a gente faz dinheiro e tem dia que não faz. A Urbel [Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte] me disse que poderia ajudar se eu já estivesse na rua. E além disso, eu tenho que trazer eles [os filhos] para a rua, porque não tenho com quem deixar. E por causa disso já me ameaçaram chamar o Conselho Tutelar”, explicou sua situação, Alessandra, de 24 anos, que está grávida.
Recentemente, a reportagem entrou em contato com o casal. Não conseguiram escapar da rua. Moram próximo à Praça da Estação.
Gabriela Cristina Alexandre, de 33 anos também está grávida, e de gêmeos. Ela e seu marido, Marco Túlio, estão na ocupação praticamente desde o início. Eles contam que os ocupantes deram ares novos ao local.
“Antes era tudo sujo, tinha até bicho morto. A única coisa que eu quero é um lar para meus filhos”, pontua Gabriela.
Destinação de terrenos públicos e consórcios poderiam ser solução
Para enfrentar a problemática habitacional na cidade, e até no país, os professores elencam determinadas medidas, algumas já previstas em lei.
Segundo Eduardo Bittencourt o poder público pode utilizar os terrenos de sua propriedade ou adquirir terrenos através dos instrumentos de política urbana. Com isso, poderia revendê-los a um preço mais baixo.
“Por exemplo, ao invés de vender um espaço de terra por R$ 300 mil, poderia se vender por R$ 50 mil. Ou seja, poderia intervir no preço da terra em uma região”.
A Prefeitura de Belo Horizonte possui um fundo habitacional. Conforme a Lei Orçamentária Anual deste ano, R$ 174,3 milhões entrarão nesta poupança, valor que será utilizado em 9 ações. Nenhuma delas são suficientes para garantir imóvel a quem precisa. Elas apenas amenizam o problema do não acesso à casa própria, como a concessão de aluguel por determinado tempo.
Entre as medidas, uma ainda não tem pertinência direta com a habitação: financiamento de obras em ruas e avenidas. Em princípio, isso deveria ser financiado pela Secretaria de Obras e Infraestrutura. Para essa ação estão estimados R$ 38,4 milhões. O dinheiro do fundo seria suficiente para comprar 870 imóveis de R$ 200 mil.
“A prefeitura também poderia fazer um consórcio ou convênio. Ou seja, ela iria adquirir um espaço ou utilizar um terreno de sua propriedade e chamar uma construtora para construir as casas. Uma parte delas poderia ser destinada para quem precisa. A outra parte a construtora poderia vender como quiser”, sugere Eduardo Bittencourt.
“Mas a prefeitura não avança na implementação destes instrumentos presentes no Plano Diretor”, completa.
Por sua vez, Tiago Castelo Branco cita o IPTU Progressivo, contido no Artigo 7° do Estatuto das Cidades. Essa ação é, basicamente, aumentar o IPTU para imóveis não utilizados. Na hipótese de esse imposto ser aplicado e, mesmo assim, em cinco anos o dono manter o local vazio, o poder público pode tomar para si a propriedade. Ela pode ser destinada a quem necessita.
“O grande problema é que essas medidas não são aplicadas por quase nenhuma prefeitura. E nem de BH. Mas está lá no estatuto”, ressalta Tiago. Cabe salientar mais uma vez o dado já apresentado: em Belo Horizonte existem 64 mil imóveis vazios.
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Rafaella Dotta