Em um contexto em que a crise climática força nossas sociedades a rever os modelos de produção e consumo, a cooperação, os pactos e os acordos comerciais internacionais desempenham um papel decisivo em vias de alcançar as metas propostas pelo IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU).
O relatório destaca, por exemplo que devemos tomar medidas imediatas para limitar o aquecimento do planeta a 1,5°C ou 2°C para evitar catástrofes ambientais.
O tema ganha certo nível de complexidade ao pensar como os países devem adotar posturas e normas para cumprir metas como a redução de emissão de carbono, dadas as grandes assimetrias econômicas que existem, por exemplo, entre países que integram o Mercosul e a União Europeia (UE).
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Desafios para a cooperação global diante da crise climática
Esta semana, especialistas se reuniram para debater sobre o assunto em uma mesa virtual promovida pelo Observatório de Regionalismos.
Como destacaram os expoentes europeus, a UE foi pioneira na taxonomia ambiental para a regulação de finanças sustentáveis e busca ser líder em políticas ambientais.
Em grande parte, as conquistas do bloco se explicam pela força dos partidos verdes e movimentos de justiça climática, que culminaram no chamado Pacto Verde, uma proposta da UE em tornar-se a primeira zona climaticamente neutra até 2050.
Sua incidência sobre os acordos com outros países pode servir, consequentemente, como modelo, como defende o especialista em relações internacionais José Antonio Sanahuja, diretor da Fundação Carolina, em Madri.
“Nessas conexões entre comércio e sustentabilidade, é imprescindível estabelecer uma taxa às importações de carbono nas fronteiras exteriores da União. Isso também é um estímulo para que sistemas similares sejam estabelecidos em outros países ou, inclusive, em escala global”, ressalta. “Já se considera a possibilidade desse ser o elemento singular mais importante para alcançar a neutralidade climática”, diz Sanahuja.
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Segundo o especialista em relações internacionais, há um incentivo por parte do bloco para que EUA e China também integrem o mecanismo, ressaltando que este último seria um país especialmente afetado pela taxa de emissões de carbono. A China financia 70% das plantas de carbono do mundo, segundo dados do Instituto Nacional de Financiamento Verde, divulgado pela Bloomberg.
Esta semana, na Assembleia da ONU, o presidente chinês Xi Jinping anunciou que o país suspenderá a participação em investimentos em usinas de carbono fora do país. A vice-presidenta de clima e economia do Instituto de Recursos Mundiais, Helen Mountford, afirmou que a decisão seria um ponto de inflexão histórico importante em entrevista à agência AFP.
“A promessa da China mostra que se está apagando a mangueira do financiamento público internacional para o carbono”, afirmou.
Nesse sentido, María Eva Carballera, oficial da Comissão Europeia, entidade responsável por estabelecer as regras dos acordos comerciais, destaca que os acordos comerciais são oportunidades para garantir, por exemplo, que metas do Acordo de Paris sejam cumpridas, mesmo que os países envolvidos na negociação não sejam integrantes do Acordo.
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“A política comercial é um instrumento para promover nossa ação climática”, afirma Carballera, que chefia a unidade de gestão das relações comerciais entre a UE e a América Latina.
“Temos acordos com todos os países da região, menos Bolívia e Venezuela. Para nós, é uma grande oportunidade porque é um mercado muito protegido, sempre foi, e é uma oportunidade também para a região porque o acordo é uma possibilidade de reformar suas economias e introduzir uma plataforma para seguir com a nossa política de desenvolvimento sustentável.”
A outra faceta do planeta: acordos comerciais
A UE busca ser uma liderança em acordos climáticos e, com seus acordos, ampliar sua influência em outras regiões, mas o acordo comercial sem resolução há 20 anos com o Mercosul entra em cena como um contraste a políticas relacionadas ao clima.
Mariana Vázquez, professora em integração regional e política internacional da Universidade de Buenos Aires e ex-funcionária do Mercosul, pontuou que, ainda diante um tema impostergável como a crise climática, não se deve desconsiderar o problema das assimetrias entre as regiões para encarar um acordo dessa magnitude.
“Enquanto a dimensão geopolítica e o sistema multilateral do comércio se transformaram nesses 20 anos, as assimetrias e dificuldades estruturais na América Latina e o Caribe aumentaram”, destaca Vázquez. “As mudanças políticas na Argentina, com a chegada de Mauricio Macri à presidência, e no Brasil, com Michel Temer e Jair Bolsonaro, explicam o avanço do acordo com a UE em 2019.”
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Para a professora, o acordo aprofunda o lugar dos países da América Latina e o Caribe como exportadores de matéria-prima, algo que chama de “primarização”. “Há uma retroalimentação viciosa à medida em que a primarização se vincula com o aumento dos laços comerciais com sócios extrarregionais, para onde o bloco exporta produtos primários, principalmente a China.”
Segundo a Cepal, em 2020 as exportações da região latino-americana foram de 70,8%, cifra que, como pontua Vázquez, é a mais alta desde a criação do Mercosul. Isso se explica pela recuperação acelerada da China, maior parceiro comercial do bloco, durante o primeiro ano da pandemia de covid-19.
Acordos ambientais como um novo protecionismo?
A ex-funcionária do Mercosul integra, com o Observatório do Sul Global, uma equipe de pesquisa que tem se debruçado sobre os muitos estudos que se fizeram ao longo dessas duas décadas sobre o acordo entre UE e o Mercosul. O projeto avaliou 35 estudos de diferentes metodologias, incluindo os encomendados pela própria Comissão Europeia.
“Estamos realizando um estudo específico de impacto na província de Buenos Aires, a mais importante do país em níveis econômicos, industrialização, emprego etc. Há um consenso sobre o que se aprofundaria com o acordo: ruptura de cadeias regionais, maior primarização, perda de emprego, maior dependência produtiva e tecnológica, deterioração do dinamismo e, em consequência, maior vulnerabilidade externa”, enumera.
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“Sem negar a relevância da crise ambiental e a necessidade imperiosa de buscar uma resposta cooperativa global a respeito, o marco dos acordos verdes terminariam inscrevendo novas normas que, cedo ou tarde, vão ser incorporadas na estrutura jurídica multilateral, ainda que hoje não seja o caso”, alerta Vázquez.
“Isso levaria a cenários de maior protecionismo, neste caso verde, maior expulsão de mercado, dependência tecnológica para países da periferia. Isso pode fazer com que o desenvolvimento dessas geografias, além do próprio crescimento econômico, inclusão social, instabilidade de regimes democráticos”, conclui.
A esse respeito, Sanahuja concorda. “A forma que produzimos, comercializamos e as exigências na UE estão mudando. O grande debate e o desafio é: como evitar que isso se torne um fator de protecionismo em uma geração de normas técnicas que dificultem o comércio.”
No sentido da cooperação global, a defesa da democracia aparece como um aspecto transversal. “Forças de extrema direita questionam o que chamam de globalismo, seja Bolsonaro no Brasil, a Vox na Espanha ou o Orbán na Hungria.
O ataque ao globalismo é um ataque às normas multilaterais que expandem nossos horizontes de progresso em termos de igualdade de gênero, migração, meio ambiente, direitos humanos. Compartilhamos esse problema, que diz respeito à saúde da nossa democracia e a impugnação da mudança climática.”
Edição: Arturo Hartmann