A nuvem de poeira gigante e avermelhada que se formou no interior de São Paulo e Minas Gerais neste domingo (26) acionou mais uma vez o alerta para a crise hídrica atual, que atinge todo o país.
A combinação entre a seca na região sudeste e a ventania forte de quase 100km/h que precedeu pancadas de chuvas em algumas regiões causou a nuvem de poeira, que, em alguns lugares, chegou a inviabilizar o trânsito nas rodovias.
O fenômeno ocorre paralelamente à crise energética que, por sua vez, vem causando preocupação para os possíveis apagões. Isso não é mera coincidência. A seca que culminou na nuvem é a mesma que contribuiu para os reservatórios das regiões sudeste e centro-oeste chegarem a níveis escassos.
Segundo a economista Clarice Ferraz, pesquisadora do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GEE/UFRJ), tais reservatórios devem atingir a média de 10% no meio de outubro. Como afirmou o próprio ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque, a crise hídrica atual é a pior em 91 anos.
Nesse cenário, o risco de apagão é considerado alto, e em algumas regiões já houve inclusive o racionamento de termelétricas para compensar a baixa energia gerada pelas hidrelétricas. Mas como e porque chegamos até aqui? O que poderia ter sido feito?
Em entrevista ao Brasil de Fato, Roberto Kishinami, coordenador do portfólio de Energia Elétrica do Instituto Clima e Sociedade (ICS), explica que a situação, por ser previsível, poderia ter sido atenuada por políticas de eficiência energética, mas que até o momento não foram realizadas.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Como o senhor analisa esse cenário de crise energética? Desde quando essa situação vem se tornando uma preocupação para aqueles que estudam o setor de energia?
Roberto Kishinami: Nós temos um conjunto de reservatórios hidrelétricos, com a maior parte concentrada no sudeste e centro-oeste. O que a gente verifica desde 2012 é que a cada estação chuvosa a gente não consegue mais retornar ao mesmo nível que tinha nos reservatórios no período anterior. Isso é uma indicação de que alguma mudança está acontecendo no regime hidrológico.
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Existem duas causas até agora que são as mais prováveis. Uma é a mudança no regime hídrico, particularmente na região do centro-oeste e sudeste com a mudança do clima global. Os modelos de cenários climáticos globais rodados pelo mundo, em centros de pesquisas, indicam que o modelo de chuvas, uma parte no Brasil, vai diminuir com o aumento da temperatura global média.
E tem um outro fator, desta vez local, que é o desmatamento. Na medida em que aumenta o desmatamento na Amazônia e particularmente no Cerrado há a redução de água chegando nesses reservatórios. No caso da Amazônia os rios voadores.
No caso do Cerrado, é uma redução mesmo por desmatamento. Na hora em que se retira a vegetação da margem de rios, a água que chega em um determinada estação, em vez de ser reservada por meio naturais no solo, escoa direto para o rio e vai em direção ao mar. Com isso, há a perda da capacidade de armazenamento.
Como o senhor falou, esse cenário vem sendo observado desde 2012. Porque até agora não se pensou em uma matriz energética que não fosse dependente do sistema de chuvas?
Especificamente nesse governo a gente tem um problema que é o negacionismo. Embora agora o governo esteja preocupado em recuperar a imagem do país e está até admitindo que existe mudança do clima, na verdade desde o início o governo agiu contra esse reconhecimento.
E, na outra parte, ele vai na direção errada, porque a única alternativa, na concepção negacionista, é colocar mais termelétricas dentro do sistema. Termelétricas são muito caras. O que está se fazendo é encarecer o custo da energia, além de piorar o quadro de mudança do clima.
O que deveria ter sido feito... A única maneira de atuar de forma mais consequente é trabalhar tanto no lado da oferta quanto no lado da demanda. Já deveria ter um programa que incrementasse bastante o aumento de eficiência energética para as pessoas poderem produzir as mesmas coisas com menos energia. E, no caso mais extremo, tem que racionar a energia.
O que o senhor quer dizer com um programa de eficiência energética?
Por exemplo, o principal consumidor em residências é o ar condicionado, que é extremamente ineficiente no Brasil se comparado com o que tem disponível no mercado e em outros países. Então poderia ter um programa grande para eliminar o ar condicionado ineficiente e forçar a colocação de equipamentos mais eficientes.
O consumo residencial é importante, porque consome 31% de toda a eletricidade. Depois vem a indústria que hoje gira em torno de 28%. E dentro de indústrias, principalmente nas médias e pequenas indústrias, também podem ter um aumento grande de eficiência.
Poderia ter um programa oficial em que linhas de crédito, tanto privadas quanto do próprio banco de desenvolvimento, o BNDES, estariam voltados para aumentar a eficiência energética em alguns setores escolhidos, em que você então concentra esforços nacionais para aumentar a eficiência, que é um fator de competitividade.
Produzir mais com menos energia significa ter um país em que os custos de produção vão caindo e torna o país ainda mais competitivo frente às coisas importadas, com possibilidade inclusive de exportar produtos. É um tipo de política que falta, porque não há uma visão propriamente científica, baseada em dados. É puro achismo, é porque um presidente acha isso, não gosta do horário de verão e então elimina o horário de verão.
O horário de verão, inclusive, é fruto dessa política negacionista?
O horário de verão acompanhado de uma campanha para usar melhor o ar condicionado teria um impacto grande. A gente poderia reduzir alguma coisa como 2% do consumo total.
E porque a energia proveniente das termelétricas? Porque não outras fontes energéticas como a eólica?
Todos os empreendimentos eólicos que estão entrando agora em alteração foram leiloados e contratados no governo anterior. O que esse governo fez foi contratar um monte de térmicas muito caras.
A térmica mais barata que a gente tem vende energia em torno de R$ 400 por megawatt-hora (MWh) que é quatro vezes o custo da energia de uma eólica ou mesmo solar que está em torno de R$ 120. A mais cara das termelétricas custa R$ 2.400. Se você compara R$ 2.400 com R$ 100 é óbvio qual seria o caminho.
Na verdade teria que se apressar a entrada em operação de eólicas e solares que já estão contratadas e para as quais faltam linhas de transmissão para colocar em operação. Pode contratar rapidamente a instalação de reforço em linhas transmissão ou até novas linhas de transmissão, coisa que leva um ano e teria uma solução já vindo para 2022 facilmente.
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Ao invés disso, o que está se fazendo é contratar térmicas. Em dezembro agora vai ter um leilão para térmicas que entrarão em operação em 2026. O argumento é a crise hídrica, mas óbvio que não é uma solução porque em 2026 a gente já superou essa crise hídrica ou o país já foi com a crise.
Isso mostra quais interesses estão sendo privilegiados pelo governo federal.
Não é um governo que tenha grandes planos baseados em dados, em ciência. São interesses menores, que tem a ver com um ou outro empreendimento. Não há problema em ter interesses. Todos os empreendimentos representam interesses, estão à busca de lucro. Isso é legítimo dentro da sociedade. Agora o que não pode é o governo não olhar qual é o interesse maior da sociedade, ficar sujeito a esse jogo pequeno.
É o que aconteceu na privatização da Eletrobras. Aquilo, por exemplo, de colocar 8 mil mega-watts de térmicas a gás dentro de uma definição de que essas térmicas a gás devem ser instaladas em lugares que não têm gás.
Qual é a lógica disso? E aí você vai descobrir que onde não tem gás também não tem linha de transmissão e não tem consumo suficiente para consumir a energia daquela térmica. Está fazendo os consumidores de energia elétrica pagarem por isso.
Edição: Anelize Moreira