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Salloma Salomão: "Construção de hospitais em áreas nobres mostrou quem é prioridade no Brasil"

Aos 60 anos, produtor cultural e professor universitário, está lançando livro de memórias sobre sua trajetória

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Produtor cultural e professor universitário, Salloma Salomão é o convidado do BDF Entrevista desta semana - Reprodução/ Arquivo Pessoal
O Brasil nunca havia experimentado um governo conservador, racista, que armasse a classe média

O professor universitário e produtor cultural Salomão Jovino da Silva, ou Salloma Salomão, como é mais conhecido nos espaços das artes e educação de São Paulo, está lançando um livro de memórias, em comemoração aos seus 60 anos,  e sua atuação como um pensador da cultura negra no Brasil. 

“Pretos, Prussianos, índios e Caipiras: Culturas, identidades, memórias e invisibilidades históricas nos arredores da cidade de São Paulo nos séculos XVIII ao XXI" (Aruanda Mundi), remonta à sua trajetória e de sua família, de Minas Gerais até a zona sul da capital paulista, mas, para isso, revisita as árvores genealógicas de negros e negras trazidos como escravos do continente africano pelos colonizadores, retiradas do primeiro censo do Império brasileiro, em 1872.

Convidado desta semana no BDF Entrevista, Salloma Salomão fala sobre sua história, os símbolos da cidade onde nasceu e da alfabetização digital, que tem sido uma aliada contra o racismo estrutural brasileiro.

“A norma seria isso (o livro “Abecê da liberdade: A história de Luiz Gama, o menino que quebrou correntes com palavras”, tirado de circulação pela Companhia das Letrinhas) passar batido, mas a alfabetização digital dos mais jovens tem vindo junto com a alfabetização racial. Você começa a ler de outra forma esses conteúdos e começa a desnaturalizá-los e ao desnaturalizar, você convida outras pessoas a também fazê-lo”, comenta Salomão.

O escritor lembra também que a pandemia exacerbou a desigualdade no Brasil e expôs ainda mais o racismo estrutural do país: “O Estado, ao invés de fazer hospitais de campanha nas pontas da cidade, fez na área nobre. O que significa isso? Significa uma escolha política, sobre quem salvar, quem priorizar no atendimento”. 

Confira a entrevista na íntegra:

Queria começar esse papo contigo falando sobre teu novo livro, em pré-venda. É um livro que remonta a sua história diretamente relacionada com a identidade negra e o racismo da cidade. Como esse racismo lhe atingiu durante esse tempo, inclusive durante esse tempo de pesquisa desse material?

Bom, eu começo do presente, começo falando do impacto na minha vida da pandemia e de uma trajetória de vida. É um livro autobiográfico. Estou formulando hipóteses sobre o deslocamento da minha família de Minas Gerais para a periferia da zona sul de São Paulo e como isso está articulado com a história da cidade de São Paulo, do estado de São Paulo e desse país escravagista que é o Brasil.

Estou tentando compreender a minha própria trajetória, ao mesmo tempo que tento compreender a trajetória do meu grupo familiar, do meu grupo social básico, minha família, eu, meus irmãos, meus pais. 

Evoco a memória de uma negra, uma mulher negra de origem africana, nascida no Brasil, chamada Jovina Maria, que eu encontrei em um documento do censo de 1832, o primeiro censo do império, em Minas Gerais. E a partir da árvore dessa mulher, Jovina Maria, é que eu vou destrinchar uma história de vida que chega até mim, e talvez até aos meus netos.

Eu eu sou um homem negro. Pelo tom da minha pele, pelo meu cabelo, pelo meu traço físico, você percebe que eu sou um homem negro. Eu tenho três netos, eu tenho quatro filhos, eu tenho uma companheira, uma mulher branca de origem operária, eu tive nove irmãos e uma parte dessa irmandade desapareceu, foi morrendo ao longo do tempo. 

Então eu pergunto, `por que meu irmão Abraão morreu com problemas decorrentes do alcoolismo em 1983, sem ter concluído o ensino fundamental? Isso não é natural, isso é um processo histórico, eu faço essa pergunta. Por que meu irmão morreu tão novo?` No livro eu faço essa pergunta, mas eu poderia perguntar porque que uma certa família de banqueiro tinha um filho que, em 1970, era um homem de uns 40, 50 anos e era o ministro da economia. Ele era alcoólatra também. 

Por que o meu irmão morreu e ele não? Por que ele envelheceu? E ele é nome de rua e o meu irmão não? Então a minha pergunta é sobre memória, desmemória, sobre apagamento, sobre importância, como é que se constrói a importância de um homem branco chamado Simonsen? 

Você começa o livro com a questão da pandemia e tua relação com ela. Ela, que foi trazida ao Brasil por viajantes brancos e ricos, pessoas de classe média, média alta que estavam circulando pelo mundo e voltaram ao Brasil com o vírus. E quem mais foi atingido por essa pandemia foram os negros. Talvez, de alguma maneira, essa história seja contada e recontada inúmeras vezes no Brasil?

Nós começamos a compreender o que a pandemia trazia pra gente como eu, que não tenho uma condição miserável, mas eu sou um homem pobre, eu nasci na classe pobre e continuo sendo pobre, eu dependo de salário, portanto eu sou um trabalhador, mas começamos a ver, a partir de um dado momento, talvez no começo do ano, a incidência da pandemia tendo o mapa da cidade e vendo o seu impacto.

E vimos também a ação do poder público, do Estado. Ao invés de fazer hospitais de campanha nas pontas da cidade fez na área nobre. O que significa isso? Significa uma escolha política, sobre quem salvar, quem priorizar no atendimento. Você pode dizer, “ah Salomão, aí não há nenhuma novidade”. 

Mas há sim. Uma coisa é acompanhar uma política durante quatro anos de governo, dentro de mais ou menos uma economia funcionando, as instituições funcionando. A outra coisa é você estar no meio de um processo que você desconhece, que é a pandemia, com um agravante que é um governo o qual o Brasil nunca experimentou. 

O Brasil nunca experimentou um governo conservador, de extrema direita, racista, que entregasse armas pra classe média branca se proteger. O Exército, desde 1824, quando ele é instituído, jamais deixou a população se armar e esse era um critério básico do Exército Brasileiro. Houve uma mudança de mentalidade dentro das forças de segurança pública.

Essa alteração foi muito radical no meio da pandemia, a polícia do Rio de Janeiro entrou numa comunidade (Jacarezinho) e matou vinte e sete homens negros. Essa matança é recorrente, mas durante uma proibição feita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e durante uma pandemia, as pessoas estão trancadas dentro de casa, as famílias estão acuadas com medo, com medo do vírus, com medo da polícia, mas a polícia vai e mata. 

Você entende que houve um desarranjo e um padrão que é ruim? É um desarranjo para pior. Nós pobres, via de regra, a gente sobrevive. Nós temos sobrevivido, os pobres sobrevivem no Brasil desde quando se criou uma distinção entre a classe colonial, os povos originários e os negros escravizados. Nós não podemos pensar isso em termos de classe, mas eram duas, dois estamentos ou três estamentos sociais. Os povos originários e os negros desterrados têm sobrevivido, nós sobrevivemos mas tem sido uma luta desigual.

No teu livro você também investiga a cidade, como foi se formando ao longo do tempo e sobre os símbolos desta cidade. Recentemente, nós vimos a estátua do Borba Gato incendiada em São Paulo, um dos símbolos da cidade. Por que você acha que a queima da representação de um bandeirante escravizador, violento com as populações tradicionais, gera comoção como gerou em parte das pessoas? O empresariado inclusive se predispôs a fazer o resgate da estátua, inclusive? 

O Borba Gato entra em uma chave da identidade paulista regional, que é Santo Amaro. Santo Amaro era uma cidade até a altura do começo do governo [Getúlio] Vargas e ela é destituída dessa condição de cidade pra se transformar em um bairro, para que o interventor da cidade de São Paulo tivesse também controle sobre Santo Amaro, que estava desenvolvendo uma indústria, estava se desenvolvendo uma industrialização da região onde hoje é a Nações Unidas. A região de Nações Unidas, que é a parte baixa de Santo Amaro-Centro.

Santo Amaro é um pequeno aclive, a partir de um córrego, o córrego Jurubatuba, e esse senhor chamado [Julio] Guerra era um paulistano da Glória, um santamarense juramentado, que se transformou num construtor de estátuas horríveis, muito mal feitas, antiquadas, feias, não são modernistas, elas são uma espécie...uma coisa horrenda.

É muito diferente do [Victor] Brecheret, por exemplo. A gente pode criticar o Victor Brecheret com aquela estátua na frente da Assembleia [Legislativa de São Paulo], mas aquele monumento tem outro design, digamos assim, ela é modernista de fato. Ele é moderno e tem uma ideia de um Brasil branco, negro, indígena que está nascendo naquela canoa de pedra, os brancos, os pretos e os indígenas. Os brancos estão nos cavalos, os pretos e os indígenas estão no chão, mas ambos estão empurrando aquela canoa, entende? 

É diferente de você erguer um busto de um matador de índio. É muito diferente, é antiquado, é ultrapassado, mas passa como uma memória de Santo Amaro e ele é o guardião de Santo Amaro, ele está na ponta da cidade de Santo Amaro, do passado, no bairro do Brooklyn, protegendo a branquitude santamarense, que não tem mais nada, ela só tem essa memória de uma glória do passado.

Mas está ali, a gente passa por ali, eu passo desde criança. A gente vê outros monumentos feitos por esse senhor em Santo Amaro, mas é a construção da memória de uma elite local, porque o Borba Gato vivia nessa região e ele abriu uma estrada que passa inclusive por Itapecerica, que é onde eu resido. 

Nós temos sido tolerantes em excesso com uma espécie de algo que eu posso chamar de opressão simbólica, tanto faz aquela estátua ali, mas ela no fundo nos demonstra que essa cidade não tem apreço por nós. 

E aí entra um elemento que eu tenho achado muito interessante na juventude. O Paulo Freire já falava que não dá pra pensar política sem beleza, a política sem estética. Aquela coisa horrível estava ali e a juventude, com a sua percepção de que a política precisa da beleza, criou um espetáculo público, mas depende do olhar, depende da ideologia vigente, a ideologia, de olhar aquilo que é um bem público feito com meu dinheiro, mas ninguém me perguntou se esse bem público me representa, assim como não devem ter perguntado quando se fez aquela estátua.

Então a queima é parte de uma prática política da juventude, que pega um objeto de opressão e performa sobre. Mas o símbolo de queimar é antigo, é um símbolo da expansão do cristianismo, mas nós revertemos isso. Nós que temos sido vítimas do cristianismo, do bandeirantismo, da memória da elite branca, pegamos aquele objeto e revertemos como um entendimento porque aí é quando o alarde e o debate sobre memória, história, monumento público, memória pública vem à tona. 

Como educador, imagino que já tenha se deparado por diversas vezes com conteúdos didáticos desconexos da realidade do Brasil. Recentemente, a Companhia das Letrinhas retirou do seu catálogo um livro que romantizava o Navio Negreiro, a escravidão no Brasil, mas ainda ela foi alvo de algumas críticas. A uma normalização do ensino escravocrata no Brasil, mesmo entre os educadores?

Não, ao contrário, há um olhar atento dos educadores de uma maneira geral e o uso cada vez mais bem elaborado e crítico da rede para desnaturalizar o racismo que está posto, não é o racismo na Educação, é o racismo no mundo editorial, das grandes editoras paulistas tocada por gente muito bem formada e informada. 

Mas, via de regra, as grandes editoras trabalham dentro de um circuito de produtores de conteúdos, das relações interpessoais de uma classe média especializada branca, paulista. Então o cara [José Roberto Torero] provavelmente estava durão, precisando de um dinheiro e alguém falou: “cara, por que você não escreve um livro aí sobre o Luiz Gama? Vai sair um filme sobre ele, tem vários intelectuais negros e não negros que escreveram sobre ele, por exemplo, tem o Osvaldo Faustino, pega o livro do Faustino, dá uma olhada, escreve um livrinho aí pra nós”. 

E o cara, que está acostumado a fazer isso, era jornalista e tal, perdeu o emprego, porque o jornalismo desapareceu quase, os jornalistas só fazem release, deve ter pensado “é uma oportunidade de ganhar algum”. Escreveu e aí publicou e achou que ninguém ia ler. Pode ser que alguns leram ou não criticamente, e o primeiro que leu criticamente falou, “olha tem problema aqui. Pessoal, tem problema aqui”.

A norma seria isso passar batido, mas a alfabetização digital dos mais jovens tem vindo junto com a alfabetização racial. O que é a alfabetização racial? O racismo é a nossa negação. Nós não existimos e quando nós existimos nós somos desimportantes. O que a alfabetização racial diz? Olha você é indígena, você é negro, você é negra, você é descendente de uma civilização, você não é um ser desimportante.

O racismo organiza o entendimento da sociedade. Você é imerso em um processo de alfabetização digital e de alfabetização racial, simultânea. Você começa a ler de outra forma esses conteúdos e começa a desnaturalizá-los e ao desnaturalizar você convida outras pessoas a também fazê-lo.

Eu conversei recentemente com a escritora Conceição Evaristo e a questionei sobre a tentativa de ingresso na Academia Brasileira de Letras. Ela comenta que esse foi um movimento de fora pra dentro da Academia e que isso, provavelmente, chocou os “imortais”. Agora a gente tem Daniel Munduruku, que também está fazendo essa tentativa de ingressar na Academia Brasileira de Letras. Ingressar em um espaço como esse, mesmo sabendo do reconhecido talento de ambos, Conceição e Daniel, é importante para quebrar essa hegemonia de fora pra dentro? 

É um assunto bastante complexo. Nós não temos uma perspectiva revolucionária, é importante dizer isso. Quando você não tem uma perspectiva de transformação radical da sociedade, é necessário pensar em reformas. A sociedade brasileira tem feito reformas de cima pra baixo.

Nós nunca sequer tivemos uma reforma feita a partir das bases da sociedade. Então eu acho, eu penso, eu entendo que essa estratégia tem a ver com essa perspectiva que é uma perspectiva bastante presente na sociedade brasileira, como uma espécie de utopia dos pobres, uma utopia dos negros, uma utopia das mulheres, uma utopia das pessoas sexualmente discriminadas, que é ter uma reforma na sociedade onde se instale e se instaure o mínimo de equidade.

A gente pode criticar essa visão, a gente pode achar que essa visão é inadequada, uma visão assimilacionista, integracionista, reformista, entretanto a lição desse reformismo tem sido dada pelas próprias instituições políticas, que às vezes nascem com cabedal de pensamento revolucionário, mas quando chega ao poder é no máximo reformista.

Eu entendo essa estratégia, ela inclusive me parece boa, mostra uma instituição, mostra o quanto essa instituição é conservadora, como por exemplo, as universidades públicas, isso tem sido uma constante. Os intelectuais negros, desde o retorno do exílio, tem mostrado como as universidades públicas são reacionárias e brancocéfalas, e aí quando pressionam, quando mostram publicamente essa branquitude institucional, a instituição é obrigada a fazer uma reforma.

Então, obrigar essa instituição, que foi criada e ampliada por um homem negro, que era o Machado de Assis, mas que vai se tornando brancocéfala ao longo do século até só ter homens e brancos - começaram a ingressar mulheres - e agora mulheres negras reivindicam cadeira, e agora um homem indígena reivindica a cadeira...Enquanto nós não tivermos uma perspectiva de ruptura revolucionária, nós precisamos empreender reformas, isso pra mim é compreensível.

Edição: Isa Chedid