Na América Latina, temos bons ventos soprando a favor da democracia e da autonomia para as mulheres
Por Sonia Coelho*
Neste 28 de setembro, Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Legalização do Aborto, só contabilizamos retrocessos no Brasil, que anda cada vez mais na contramão dos direitos da classe trabalhadora e das mulheres. Essa situação é produto da política ultraneoliberal e racista do governo genocida de Bolsonaro.
Porém, na América Latina, temos bons ventos soprando a favor da democracia e da construção de autonomia para as mulheres. Em dezembro de 2020, a Argentina votou favorável à legalização do aborto no Senado federal. Agora, conseguiremos interromper as mortes, humilhações, dificuldades e medos que as mulheres mais pobres da Argentina países sofriam quando decidiam por um aborto. Ao votar legalizaão do aborto, votou-se afavor do direto das mulheres de decidirem com autonomia e soberania sobre seus corpos se querem ou não serem mães e qual o melhor projeto para suas vidas.
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O México também contabilizou mais uma vitória nesse campo da luta. No último dia 7 de setembro, a Suprema Corte Mexicana baniu a legislação de punição para os casos de aborto e declarou inconstitucional a existência de um prazo para o aborto no caso de gravidez decorrente de estupro. A Cidade do México já contava com legislação favorável ao aborto desde 2007, o que depois se estendeu aos estados de Oaxaca, Hidalgo e Vera Cruz.
O México é um país federado com 32 estados, e muitas mulheres que viviam em estados com legislações restritivas ao aborto viajavam muitas horas para conseguir um aborto na capital mexicana. Agora, todas as mulheres podem recorrer a esse direito. Para garantir o acesso das mulheres mais pobres ao abortamento é necessário mais do que deixar de ser crime. O aborto precisa ser ofertado gratuitamente e de forma segura no sistema de saúde, caso contrário, as mulheres que não podem pagar continuam a fazê-lo em condições precárias.
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Hoje, na América Latina e no Caribe, já contamos com acesso livre ao aborto em Cuba, Guiana Francesa, México, Uruguai e Argentina. Por outro lado, há países em que o aborto é proibido integralmente, como: Honduras, El Salvador, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname. Esses países chegam ao extremo de não salvar a vida da mulher em casos de intercorrências graves durante a gestação. A vida real da pessoa gestante, com sua história e seus projetos, parece valer menos do que uma vida em potencial carregada no ventre. Isso é uma violação grave aos direitos das mulheres e de pessoas que gestam e aos direitos humanos. O intuito é preservar valores conservadores misóginos, impostos principalmente por setores religiosos com o objetivo de controlar nossos corpos.
A hipocrisia gera hemorragia
No Brasil, o governo Bolsonaro e seus aliados no Congresso, que usam a pauta dos valores morais para se eleger, continuam em uma ofensiva sem trégua para desmontar os poucos direitos das mulheres brasileiras, como é o caso do aborto previsto em lei. Quem mais tem sofrido com esses ataques são as meninas, crianças e adolescentes.
Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2020 foram 60.926 casos de estupros, sendo 44.879 estupro de vulnerável, isso é, estupro de crianças e adolescentes de até 14 anos. Esses dados são do período da pandemia, e por isso, podemos ainda supor que sejam subnotificados, já que as crianças e adolescentes estavam mais dentro de casa, fora da escola e de outros espaços onde pudessem falar do problema.
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Muitos desses estupros geram gravidez indesejada. Nesse caso, pode-se recorrer ao aborto legal previsto por lei em caso de gravidez decorrente de estupro. Mas esse direito vem sendo violado constantemente, tanto pelo Estado e pelos serviços de saúde como pelo judiciário.
O governo Bolsonaro e seus aliados têm seguido a estratégia de propor leis para extinguir o direito ao aborto já previsto na legislação, tanto no âmbito federal quanto estadual e municipal. Seus projetos enaltecem o nascituro, isso é, o não nascido, em detrimento das mulheres. Propõem direitos aos estupradores, como já denunciamos no caso do que chamamos de Bolsa Estupro, espécie de bônus para constranger a mulher para que não aborte e para permitir que o estuprador tenha acesso e direitos em relação à criança por nascer.
Foi dramático ver, no ano passado, a situação de uma menina de 10 anos que precisou viajar do Espírito Santo até Pernambuco para ter seu direto assegurado. Mesmo sendo criança, foi perseguida e agredida por adultos conservadores misóginos ligados ao governo Bolsonaro.
Neste mês de setembro, houve outro caso de uma menina de 14 anos que sofreu estupro, teve seu direito negado em uma pequena cidade de Minas Gerais e teve que viajar até Belo Horizonte para acessar seu direito. As assistentes sociais que a atenderam não a protegeram nem facilitaram o exercício do seu direito; ficaram vigiando a menina, com visitas domiciliares, tentando obrigá-la a fazer pré-natal. A notícia apareceu na imprensa porque a juíza compartilhou no WhatsApp a sentença proferida, negando o direito da menina ao abortamento.
Poucos casos chegam pela imprensa, mas podemos imaginar quantos outros casos têm ocorrido no Brasil. Nesse momento de ofensiva conservadora e desmonte do SUS, das normas de proteção, humanização e garantia dos direitos, o movimento feminista segue reafirmando: maternidade e gravidez forçada para criança e adolescente é tortura.
Ao mesmo tempo em que impede crianças, adolescentes e mulheres de exercerem seu direito de abortar, esse governo mantém a Emenda 95, que diminui o teto dos gastos e congela os investimentos com saúde, educação e assistência social. Pelo Brasil adentro, estamos vendo o fechamento de creches e escolas, desmonte e sucateamento da política de assistência. Negar direitos é uma forma de castigar e punir meninas e mulheres e responsabilizá-las pelas violências das quais são vítimas. Essa onda de perseguição e desmonte de normas de humanização dos atendimentos tem patrocinado situações de desrespeito e criminalização das mulheres que chegam aos hospitais em situação de abortamento incompleto. Em uma atividade com mulheres de uma favela, uma das participantes contou que teve um aborto espontâneo e ficou horas no centro de saúde sem atendimento, sendo questionada se havia provocado o aborto. Profissionais de saúde que deveriam acolher, tratar e medicar a mulher de forma urgente têm agido de forma policialesca, quebrando ética e sigilo médico.
A perseguição, desinformação e criminalização do aborto empurram as mulheres, sobretudo as mais pobres e negras, a fazerem abortos em condições inseguras, que podem levá-las a problemas de saúde e até à morte.
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Hoje é possível fazer um aborto seguro com o medicamento Citotec, nome fantasia do Misoprostol, mas sua venda é proibida no Brasil. O acesso clandestino é, muitas vezes, vendido em doses insuficientes, por preços caros e sem informação. Uma política de redução de danos seria as mulheres terem informação e acesso ao uso do Misoprostol,o que diminuiria os abortos inseguros, enquanto travamos a luta para a mudança completa da legislação, para que deixe de ser punitiva e para que os serviços de aborto possam ser ofertados pelo SUS de forma gratuita. A legalização do aborto é um assunto das mulheres e da sociedade como um todo, e não pode se limitar às estratégias nem do conservadorismo, nem do mercado e da indústria farmacêutica.
A criminalização do aborto no Brasil tem a ver com uma questão de classe social e com a imposição moral patriarcal e racista de grupos religiosos, políticos e conservadores que nada têm a ver com a defesa da vida, mas sim com manter submissas as mulheres, seus corpos e sua sexualidade.
Embora essa ofensiva conservadora contra as mulheres não tenha começado agora, ela ganha força com o governo Bolsonaro. Não é só a pressão dos conservadores que estão fora do Estado: atualmente, o Estado é tomado por esses setores que estão desmontando as políticas por dentro, com normas, protocolos, alteração de leis, retirada de profissionais de postos-chave.
Os retrocessos no direito ao aborto no Brasil são mais uma camada dos ataques à democracia, que se iniciaram com o golpe que retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder. As medidas de controle sobre o corpo, a vida a sexualidade das mulheres não é algo isolado, mas é parte de um processo mais amplo de subordinação e usurpação dos povos, da classe trabalhadora, da soberania popular e autonomia das mulheres.
Neste 28 de setembro de 2021, as feministas estarão nas ruas denunciando as violações sobre os direitos das mulheres e exigindo a legalização do aborto no Brasil, o fim do governo Bolsonaro e seu projeto genocida, patriarcal, racista e neoliberal.
*Sonia Coelho é assistente social, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.
**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo