Quando todo mundo buscava respostas, Freire nos ensinou que é tempo de perguntar
Por Lauro Carvalho*, Olívia Carolino** e Stella Paterniani***
Nesse mês de setembro, a primavera chega com o esperançar em torno das celebrações do centenário do educador Paulo Freire, nascido em 19 de setembro de 1921. São muitas as iniciativas que reivindicam Paulo Freire em um momento de tamanho obscurantismo no Brasil. Ano passado celebramos o centenário de Celso Furtado e Florestan Fernandes, nos permitindo reencontrar com verdadeiros patrimônios do povo brasileiro.
Nesse sentido, o Instituto Tricontinental, em parceria com as escolas nacionais Florestan Fernandes (ENFF) e Paulo Freire (ENPF), construíram uma edição especial de sua recém lançada Revista Estudos do Sul Global (RESG), dedicada à temática: Cem anos de Paulo Freire: um projeto de esperança.
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Foi uma grata satisfação receber e poder apresentar um conjunto de 25 textos com reflexões profundas e necessárias sobre o legado do pensador brasileiro, vinculando-o aos desafios da educação popular nos tempos atuais. Pela inquietude e radicalidade de suas ideias na construção de um projeto emancipador, essa edição da revista reafirma o compromisso com a educação popular, um dos fundamentos da concepção pedagógica capaz de movimentar a luta política no Brasil e no mundo .
A convite da equipe editorial, recebemos valorosas contribuições de Isabela Camini, Esther Pérez e Oscar Jara, intelectuais de Nuestra América comprometidos com a proposta pedagógica de Paulo Freire e com o trabalho da sistematização de experiências, que ousaram refletir sobre a atualidade de seu pensamento diante do cenário da pandemia de Covid-19.
Além destes, a revista ainda traz uma série de outros artigos que debatem o papel dos meios de comunicação em tempos de desinformação e manipulação; as experiências formativas da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Levante Popular da Juventude e de cursinhos populares; o objetivo da ciência hegemônica a serviço do capitalismo e o papel de uma “ciência popular”; a importância de métodos alternativos de solução de conflitos no judiciário como instrumento pedagógico de construção de autonomias; as transformações no mundo do trabalho e a constituição do proletariado no contexto atual do neoliberalismo; além de reflexões sobre as trajetórias e encontros entre Frantz Fanon e Paulo Freire e educação e luta popular no Sul Global.
Nesta edição, contamos também com um precioso trabalho produzido por artistas nacionais e internacionais a partir da chamada Esperançar, 100 anos de Paulo Freire, cujas ilustrações demonstram que as ideias de Freire ainda são fundamentais para nossa prática militante.
Ao receber tantas reflexões sobre práticas e experiências, perguntamo-nos o porquê Paulo Freire é tão perigoso. Ensaiamos uma reflexão sobre a pedagogia da pergunta: por meio dela, Freire aponta para um projeto emancipador de sociedade.
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Uma indagação une economistas da tradição crítica brasileira, como Furtado, por exemplo, com o educador Paulo Freire: por que nossa formação social e econômica é vazia de um projeto nacional comprometido com o desenvolvimento do nosso povo? Ao sermos um país de formação nacional inacabada, temos um desenvolvimento econômico dependente e uma democracia asfixiada, ambos vazios da questão nacional. Sob este ponto cabe uma dimensão da contribuição de Freire, buscando compreender a participação do povo como o protagonista dessa construção nacional ainda a ser realizada.
Quando o povo entra na história mobilizado por temas de conteúdo democrático e nacional, essa participação é explosiva. Por isso a construção de força social vinculada a uma estratégia de Revolução Brasileira e a um projeto de país é tão central no Projeto Popular.
O Projeto Popular é portador dessas aspirações de longa duração histórica e expressa a necessidade do povo desenvolver seu real potencial, ao entrar na história da construção nacional. Expressa a possibilidade de um desenvolvimento nacional e soberano que supere a condição de nação inacabada.
O projeto popular se caracteriza pela afirmação de que a política não é um privilégio e sim o lugar de exercício de poder do povo, o protagonista dos processos de transformação. Por isso a preocupação com a organização da classe trabalhadora é o interesse declarado de um programa político para o país.
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O país de Freire
O Brasil é um país em que a história é contada da perspectiva da classe dominante, de uma elite branca e escravocrata, que renunciou a um projeto de país democrático e soberano. Freire nos ensinou algo de muito valor: ver a história pela ótica dos oprimidos ou dos condenados da terra, nos termos de Fanon, e a colocar a perspectiva de projeto de Brasil no horizonte da luta popular.
As aspirações populares de longa duração histórica e as tarefas não realizadas no processo de Independência reaparecem transmitidas em épocas posteriores: apresentaram-se nas crises dos anos de 1930, 1960 e 1980, quando emergiram projetos de país que pensaram as contradições a partir do povo. Esses projetos de natureza popular e democratizante foram derrotados por projetos que davam uma resposta antinacional, antidemocrática e antipopular às crises.
Freire nasce na década de 1920, quando ocorre uma inflexão na economia brasileira com a transição do modelo de desenvolvimento Agrário Exportador (baseado no latifúndio, monocultura, exportação e trabalho escravo) para o Modelo de Industrialização dependente. O período da década de 1930 foi uma das profundas recessões da economia brasileira.
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A resposta da classe dominante à recessão desse período foi a política desenvolvimentista baseada no Processo de Industrialização por Substituição de Importações (PSI). Essa política, diante de uma situação externa adversa (crise mundial no período entre guerras), passou a produzir internamente o que antes era importado pela renda do café. Nesse processo, o “projeto burguês” deslocou o debate da “modernização” para uma discussão puramente técnica, e reduziu o “desenvolvimentismo” à “industrialismo”.
Por outro lado, a década de 1920 também foi marcada por profundos movimentos de aspirações do povo brasileiro de se constituir como tal e afirmar sua existência enquanto povo – nação. Entre eles o Tenentismo e a Primeira Semana de Arte Moderna, que se propôs a repensar o povo, o Brasil e seus símbolos. Sem falar de 1922, data da fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB). Nesse período, a questão nacional na perspectiva popular é traduzida por meio da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que representou a disputa de projetos de sociedade.
O desenvolvimentismo que vigorou de 1930 a 1980 gerou elevadas taxas de crescimento econômico, mas não desenvolvimento. O país se modernizou e cresceu a despeito de seu povo.
A problemática da Formação da Nação passa a ser abordada por autores como Celso Furtado, Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, Rui Mauro Marini, Décio Saes, Heleieth Saffioti, cada qual com seu recorte e referências, deslocando o problema da superestrutura (Estado e Cultura) para a problemática da formação social e econômica do Brasil. Ao propiciar esse deslocamento, pudemos compreender que ao longo dos séculos de colonização se constituíram as bases e os fundamentos de uma nacionalidade brasileira, do povo brasileiro. Essa nacionalidade se constitui na falta de uma base material para o desenvolvimento dessa nação. O outro lado da moeda dessa questão é a perspectiva Freiriana de como fazer com que o povo seja o protagonista dessa construção nacional interrompida, o que ele chamou de “despertar da consciência nacional”, como anuncia em Educação como Prática da Liberdade.
Impasse entre dois projetos
Numa primeira aproximação poderíamos dizer que a crise em 1963 foi uma crise de esgotamento do modelo do PSI e do populismo. O projeto de desenvolvimento econômico capitalista em 1964 se deparou com um impasse entre dois projetos de sociedade: um de ruptura, que previa uma aliança da burguesia interna com setores populares com as Reformas de Base, com o objetivo de superar os gargalos estruturais do desenvolvimento capitalista periférico; e outro que brindava a aliança da burguesia interna com o imperialismo e o latifúndio, coroando o desenvolvimento capitalista sob a determinação do capital monopolista.
O golpe em 1964 significa, de um lado, a escolha da burguesia em se associar ao imperialismo de forma subordinada e, por outro lado, a derrota do caminho pacífico para as reformas, à medida que a situação se torna militarizada diante do ascenso das classes populares. A alfabetização em massa inspirou o Plano Nacional de Alfabetização, que foi arquivado e nunca mais retomado depois do golpe de 1964. Inicialmente, a experiência de Freire foi financiada pela Aliança para o Progresso, do governo dos Estados Unidos, que acreditava que a alfabetização era um caminho para combater o avanço do comunismo. A heresia cometida por Freire no Plano Nacional de Alfabetização era o direito ao voto. Na época, apenas quem sabia ler e escrever poderia votar. Ou seja, Paulo Freire estava formando leitores e eleitores críticos. Freire comete a ousadia de afirmar que a leitura de mundo precede a leitura das palavras, sem renunciar a necessidade da alfabetização em um país que a palavra é um privilégio e um exercício de poder.
A classe dominante respondeu a crise com ditadura e com o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), modelo de desenvolvimento econômico dependente e associado. O PAEG ergueu a ossatura do Estado brasileiro ao aprofundar o modelo dependente e associado ao capital estrangeiro, fortalecer os grandes oligopólios e desnacionalizar a economia. A luta popular, empurrada para clandestinidade, respondeu a crise com grupos que lutaram contra a ditadura militar (1964-1985). Nesse contexto, no ano de 1963, sob a condução de Freire, realizou-se uma experiência que viria a ser um verdadeiro abalo sísmico nesse impasse que esteve colocado nos anos de 1960. O processo de alfabetização de 300 adultos que aprenderam a ler e escrever em menos de 40 horas, na cidade de Angicos (RN), por meio da metodologia do aprendizado que levava em conta os fonemas de palavras que faziam parte do cotidiano dos trabalhadores. As experiências de alfabetização nas quais Freire se empenhou eram mais que decodificar símbolos para uma leitura estática da realidade; ele contribuiu em alfabetizar politicamente os sujeitos oprimidos por meio da problematização da realidade, a partir da vida concreta daqueles que estavam inseridos nas experiências. Freire provocou um debate amplo sobre a sociedade, buscando compreender e encontrar soluções para a melhoria das condições sociais dos sujeitos, enxergando na educação um dos meios para garantir a libertação dos oprimidos.
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Estratégia Democrático Popular
A crise dos anos de 1980 projeta a Estratégia Democrático Popular, quando novamente há um embate de disputa de projetos na sociedade durante outra crise econômica, com a ruptura do financiamento externo e a mobilização da sociedade em torno da redemocratização. Estávamos diante de um cenário de crise econômica com ascenso da luta popular, forjando uma relação dialética entre o quadro político em diálogo com o povo. Esse exercício deu origem a uma concepção de educação popular inspirada na pedagogia de Paulo Freire e na Teologia da Libertação como práticas de trabalho popular, e na ideologia leninista como conteúdo revolucionário. Do caldo político desse tripé surgem as Comunidades Eclesiais de Base das Igrejas cristãs; a abrangente rede de movimentos populares e sociais despontados nos anos 1970; o sindicalismo combativo; e, na década de 1980, a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT); a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais (ANAMPOS), a Central de Movimentos Populares (CMP); o Partidos dos Trabalhadores (PT); e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A Pedagogia do Oprimido (1987) dá voz “aos esfarrapados do mundo e aos que nele se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”.
A classe dominante no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) teve força para conduzir a ofensiva neoliberal nos marcos da democracia com a promessa de abertura e modernização econômica. Enquadrado nas condições do Fundo Monetátio Internacional (FMI), o país estava refém dos “círculos de segurança” que aprisiona a realidade. Nas palavras de Freire, “o radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em ‘círculos de segurança’, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-as melhor, melhor poder transformá-la”. Com essa inspiração, a pergunta nos anos de 1990 foi: “qual Brasil que queremos?”; rompe-se o “medo da liberdade” e passa-se a instigar o nascedouro do Campo Político do Projeto Popular para o Brasil.
Freire falece em setembro de 1997, momento em que a luta de massas no Brasil está em descenso, cujas marcas podem ser sintetizadas na greve dos petroleiros de 1995 e no protagonismo e resistência do MST, deslocando o epicentro da luta de classes para o campo. Freire não chegou a vivenciar o cenário latino-americano no início dos anos 2000, marcado pela reação popular aos efeitos nocivos do neoliberalismo e que levou ao governo um conjunto de experiências progressistas, que vão desde a revolução bolivariana às experiências neodesenvolvimentistas. Esse período foi marcado por uma luta internacionalista e anti-imperialista de resistência ao “pacote” de renúncia ao desenvolvimento soberano sintetizado na proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
A heresia de Freire
Quando todo mundo buscava respostas, Freire nos ensinou que é tempo de perguntar. E ao perguntar, fazer a denúncia e o anúncio de uma nova sociedade. Desse modo, entendemos que práticas de educação popular são históricas. É necessário presumir uma posição diante da realidade, partir do reconhecimento da nossa condição de nação subdesenvolvida e compreender as práticas educativas historicamente nascidas dentro dessa condição. A proposta de uma pedagogia dos oprimidos reconhece o papel importante que os mecanismos de legitimação ideológica e cultural desempenham na reprodução do sistema de dominação. Ao entender a práxis social como uma unidade entre reflexão e ação, assume que seu papel é contribuir para o desenvolvimento da criticidade dos sujeitos - individuais e coletivos. Esse é o processo de formação que denominamos de "conscientização".
Freire relaciona a pedagogia da pergunta ao processo de conscientização. Paulo Freire nos ensina que não há mobilização sem prévia conscientização. Por isso, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social compreende esse processo também como a produção de uma “ciência popular” a serviço da transformação. Seguimos os passos do andarilho da utopia perguntando e buscando saber formular as perguntas.
*Lauro Carvalho, pesquisador do Observatório das Juventudes em Periferias Urbanas, é doutorando em Ciências Sociais na Unicamp e militante do Levante Popular da Juventude.
**Olívia Carolino Pires, pesquisadora, é militante da Organização Consulta Popular e integra a coordenação do Projeto Brasil Popular.
***Stella Paterniani, pesquisadora do Observatório das juventudes em periferias urbanas, é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília.
****O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é uma instituição internacional, orientada pelos movimentos populares e políticos da Ásia, Africa e América Latina, que tem como objetivo promover o pensamento crítico por meio de uma perspectiva emancipatória em prol das aspirações dos povos. Leia outras colunas.
*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo