Coluna

Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU: críticas, polêmicas e a posição brasileira

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Os pequenos agricultores vêm exigindo uma transformação do sistema alimentar enraizada na proposta de soberania alimentar e nas práticas de agroecologia. - Foto: Leandro Molina
As críticas mais contundentes foram de movimentos sociais ligados à agricultura agroecológica

 

Catarina Bortoletto, Lucas dos Santos Rocha, Pedro Mendes e Olympio Barbanti Jr.

A Cúpula dos Sistemas Alimentares (CSA), que ocorreu na semana passada, nos dias 23 e 24 de setembro, em Nova Iorque, foi a primeira de três importantes conferências internacionais promovidas pelas Nações Unidas (ONU) para tratar da fome, clima e biodiversidade. Sob denúncias de captura pelas corporações agroalimentares, a cúpula ocorreu sob fortes críticas e boicotes, e a posição brasileira apresentou um país muito diferente da realidade.

As polêmicas envolvendo a Cúpula começaram quando Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, nomeou Agnes Kalibata para chefiar o evento. Kalibata é ex-ministra da agricultura de Ruanda e presidente da Aliança para uma Revolução Verde na África (Agra), financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates. Criada em 2006, a Agra tem apoiado a abertura do continente africano para culturas de alta tecnologia e variedades de sementes comerciais de alto rendimento e agricultura intensiva.

Outra polêmica surgiu quando os primeiros documentos preparatórios para a Cúpula mencionaram a agricultura de precisão, coleta de dados e engenharia genética como importantes estratégias para a promoção da segurança alimentar. Essas iniciativas foram apoiadas por grandes empresas de tecnologia e filantropos, mas não fizeram menção à agricultura ecológica ou ao envolvimento da sociedade civil.

Com suspeitas de que as corporações estavam dominando a agenda, surgiu uma enxurrada de críticas à CSA, inclusive dentro da ONU. As críticas mais contundentes foram feitas por movimentos sociais ligados à pequena agricultura baseada na agroecologia, na defesa da soberania alimentar e dos direitos dos povos tradicionais, como La Via Campesina, GRAIN e Civil Society and Indigenous Peoples’ Mechanism (CSM). 

A principal crítica é de que a CSA não teve uma estrutura participativa e foi dominada pelos interesses das corporações do setor agroalimentar, o que, de um lado, exclui a reivindicação dos pequenos agricultores que vêm exigindo uma transformação do sistema alimentar enraizada na proposta de soberania alimentar e nas práticas de agroecologia, e, de outro, fecha os olhos para o impacto dos alimentos ultraprocessados.

No processo preparatório para a Cúpula dos Sistemas Alimentares (CSA), o governo brasileiro promoveu diálogos nacionais para discutir os sistemas alimentares domésticos e definir propostas a serem submetidas à ONU. Foram realizadas, a cargo do Ministério das Relações Exteriores (MRE), quatro videoconferências para discutir as cinco linhas de ação da Cúpula, que resultaram em um “documento de base”.

Os principais pontos abordados pelo documento são a produção e o consumo responsáveis, a segurança alimentar e nutricional, os padrões alimentares e a redução do desperdício de alimentos. Em todo o documento o agronegócio é valorizado como um caso de sucesso que conseguiu conciliar a produção de alimentos em escala capaz de contribuir para a segurança alimentar global “com crescente sustentabilidade social, econômica e ambiental”.

No entanto, não aponta o papel da agropecuária brasileira nas emissões de gases de efeito estufa (GEE). Segundo o pesquisador Mairon Bastos Lima, a agropecuária, por si só, mesmo excluindo as emissões pelo desmatamento, ainda emite mais do que toda a indústria brasileira e  o setor de transporte, somados.

A posição brasileira manifestada pelo MRE foi, em larga medida, produzida em conjunto com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Os documentos de referência levados à Cúpula fazem parte do projeto Diálogos Nacionais. Na consulta realizada com o setor privado, foram apresentadas “soluções transformadoras”, que, na visão do MRE, MAPA e setor privado, poderiam ser replicadas em larga escala no país e no mundo, com objetivo de acelerar a transição global rumo a sistemas alimentares sustentáveis e de implementar os ODS. No escopo de “soluções transformadoras”, o documento se refere à inclusão de programas governamentais, iniciativas empresariais, da sociedade civil e parcerias público-privadas.

Na análise dos documentos do MAPA, é interessante notar alguns posicionamentos do ministério em relação às linhas de ação da CSA. O primeiro a ser discutido destaca como o uso das melhores práticas agrícolas e tecnologias inovadoras na agricultura podem contribuir para o aumento da produtividade e redução do desmatamento.

Contudo, esse argumento é pouco discutido pelo governo em seus documentos, além de ser contraditório com as projeções para 2020 a 2030 contidas no documento Projeções do Agronegócio, elaborado pelo próprio MAPA. Esse estudo prevê a incorporação de mais de 18 milhões de hectares na produção agrícola no Brasil.

De forma geral, o documento mostra um posicionamento favorável ao sistema de produção baseado nas cadeias agroalimentares controladas pelo capital corporativo e presentes em larga escala no Brasil. Esse posicionamento se reflete na narrativa de que eventuais ganhos do sistema agroalimentar corporativo poderiam contrabalançar seus impactos. Essa narrativa também considera positiva para a segurança alimentar e nutricional o consumo global de carne vermelha, além de relativizar  o que chama de “o papel fundamental dos fertilizantes no aumento da produtividade e na redução de pressões sobre os ecossistemas”. Segundo o documento, os sistemas alimentares da agricultura corporativa têm “um papel importante na preservação da biodiversidade, degradação do solo e redução de emissões de GEE”.

Em relação às "soluções transformadoras”, é importante sublinhar que o governo federal apresenta soluções já existentes no Brasil, como os Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Os dois programas são direcionados à agricultura familiar, considerada pelos documentos como prioridades do Governo Brasileiro, no entanto esses programas vêm sendo desmantelados nos últimos anos. Além do corte de recursos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto e essa agenda foi passada para o MAPA.

Outra “solução transformadora”, apresentada pelo MRE à Cúpula, é o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que foi instituído por meio da Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN). Trata-se da Lei Federal nº 11.346 de 2006, com objetivo de implantar e coordenar políticas de promoção e acesso a alimentos saudáveis, fomentar a produção, comercialização e consumo de alimentos da agricultura familiar, para assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada. Assim como o PNAE e o PAA, o SISAN também foi enfraquecido no governo de Jair Bolsonaro.

O presidente, em seu primeiro dia no cargo, retirou do SISAN o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), tornando-o inoperante. A mudança de status do Consea desorganizou em nível nacional a coordenação das políticas voltadas para o combate à fome, justamente no momento em que a taxa da população em extrema pobreza chegou ao maior patamar desde o início da série histórica, em 2012.

No documento também não há detalhamento das "soluções transformadoras” de estímulo à adoção de inovações e tecnologias. Por mais que seja um tema muito reivindicado pelo governo, nota-se a falta de articulação ou embasamento do posicionamento brasileiro na CSA. Essas “soluções transformadoras”, voltadas ao tema de inovação e tecnologia, não apresentam detalhes suficientes para entendermos como elas serão feitas, qual programa ou projeto a qual estariam vinculadas, e muito menos se elas atentam às questões de desigualdade entre os produtores agrícolas.

Dessa maneira, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento pretende garantir que suas ações realmente seguirão a ideia de que aumento de produtividade não está, necessariamente, articulada com aumento do desmatamento e degradação ambiental? Outro ponto a ser destacado é se essas soluções transformadoras, de estímulo à inovação e tecnologia, seriam acessíveis para produtores de alimentos em pequena escala ou se aumentariam as desigualdades estruturais nesse setor?

Outra crítica à posição do Brasil para a CSA é a pouca profundidade do processo de consulta. Foram realizadas quatro videoconferências com participação bastante restrita dos atores interessados da sociedade brasileira. A mesma crítica, aliás, também foi feita por associações da sociedade civil internacional ao processo da CSA.  

Ou seja, as críticas da sociedade civil se direcionam  tanto ao ao Brasil, como à CSA. Portanto, torna-se fundamental que as Cúpulas seguintes sejam cada vez mais democráticas e passem a articular diferentes perspectivas e atores sociais no seio da discussão sobre sistemas alimentares.

A fome e o agravamento das mudanças climáticas precisam ser combatidas com ações políticas concretas, firmadas por decisões democráticas e voltadas à transformação do sistema alimentar global. Esse sistema, dominado por algumas corporações agroalimentares gigantes, só contribui para manter e aumentar a desigualdade social, a destruição ambiental, a crise climática, o desrespeito aos direitos dos trabalhadores e aos direitos humanos, além de se mostrar insuficiente para combater a fome e a desnutrição no mundo. 

 

**O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Anelize Moreira