A esquerda tem que aprender a se proteger de si mesma
Se a paciência é amarga, os seus resultados são doces (Sabedoria popular árabe)
Confia, mas reserva-te. Mais vale agradecer com a verdade, que ofender com a lisonja (Sabedoria popular portuguesa)
Devemos conversar na militância sobre os excessos de confiança, por um lado, e desconfiança, por outro. No limite, suas formas extremas degeneram em adulação ou difamação. A luta política pode ser dura. Faz parte. Mas deve ser feita com paciência. Não vale tudo. Há limites que não podem ser transgredidos. Bajulação e calúnia não são aceitáveis. Métodos indignos devem ser proibidos.
Há pessoas com qualidades excepcionais que, pela coragem, inteligência e caráter merecem honesta admiração e elogio. Mas não há semideuses. Todos somos, de verdade, na boa, imperfeitos. Basta saber mais, ou ver mais de perto. A lisonja, mais conhecida como “passar o pano”, deve ser banida das fileiras da esquerda. Da mesma forma, as diferenças de opinião e disputa de posição que mantemos com as ideias de outros não justifica nunca o desrespeito ou desqualificação dos outros.
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A ligeireza de acreditar fácil demais é uma forma de inocência. Trata-se de uma postura ingênua diante da avalanche de informação manipulada ou até de desinformação e fake news. Mais grave quando, por fascínio, envolve a idealização de alguém. Até certo grau, não é uma limitação ou defeito grave. Ao contrário, estar aberto a confiar nos outros, até provas em contrário, é um traço benigno e simpático de personalidade.
Há até alguma elegância autêntica em uma atitude desarmada. Entusiasmos espontâneos são normais quando nos impressionamos com camaradas que fazem grandes feitos. Mas a luta política e social ficou tão, impiedosamente, cruel que o excesso de credulidade é perigoso. Facilita o deslumbramento, uma vulnerabilidade diante de manobras ardilosas dos inimigos de classe.
Não é possível um ativismo regular sem algum grau de paixão. Mas o compromisso com a luta dos explorados e oprimidos e a aposta socialista deve ser maior do que a lealdade pessoal às lideranças. Os “cultos às personalidades”, que atingiram formas grotescas em algumas experiências históricas, foram um traço de primitivismo político.
A desconfiança não é, tampouco, uma deformação de caráter. Uma atitude crítica sobre as informações disponíveis, ou sobre as pessoas é sinal de maturidade. Mas, em excesso, é uma postura de suspeita permanente e, no limite, paranoia. Uma mentalidade paranoica é vulnerável a teorias de conspiração e mania de perseguição. Uma militância consistente não é compatível nem com o “encantamento” deslumbrado nem com o “delírio” persecutório.
Cultivar reservas críticas é necessário, e até saudável. O desafio é preservar a mente aberta para o debate de ideias, e o senso de proporções. A “personalização” dos debates é quase inevitável, mas é bom lembrar sempre que as pessoas são maiores que as propostas das quais discordamos.
Debates de ideias são úteis, legítimos e produtivos, mesmo quando amargos, por três razões: (a) porque as pessoas mudam de ideias, ainda que isso exija um tempo, às vezes, mais tempo do que seria razoável, mas mudam; (b) porque a força dos argumentos deve ser muito mais importante do que o juízo que fazemos dos outros; (c) porque a única forma de manter a confiança pessoal entre os camaradas é ser honesto sobre o que pensamos sobre as ideias em discussão.
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Mentalidades paranoicas envenenam qualquer discussão porque se apoiam em premissas que foram “reveladas” a alguns, e mesmo não podendo ser provadas, podem ser “lógicas”. Uma hipótese conspiratória pode ter coerência interna e ser, completamente, falsa. Elas estimulam fantasias delirantes que semeiam a desconfiança de todos contra todos.
A força de uma “teoria de conspiração”, habilidosamente, formulada é que, sem qualquer esforço de comprovação ela pode ser convincente. Acusações sem provas são calúnias. Algumas campanhas de difamação ficaram registradas em pedra na história da esquerda, e não podem ser esquecidas. Lenin foi vítima de denúncias, a partir de março/abril de 1917 e, de forma ainda mais abjeta, depois das jornadas de julho, de ser um “agente alemão” infiltrado com a liberação da passagem do “trem blindado” em negociações “secretas” pelo Império do Kaiser. Leon Trotsky foi denunciado como espião nazifascista e os trotskistas como agentes do imperialismo, em acordos “secretos” durante décadas. É uma tristeza que estes métodos não tenham sido erradicados pela raiz como ervas daninhas.
A esquerda tem que aprender a se proteger de si mesma. Nenhuma corrente e nenhuma liderança é infalível, mas todos merecem ser respeitadas. Não praticamos adulação, nem toleramos difamação.
*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSOL e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo