O economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e especialista na política tributária brasileira, disse que a reforma do Imposto de Renda que tramita no Congresso Nacional vai na contramão do que é feito por potências capitalistas, como os Estados Unidos, e contraria recomendações de organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Fagnani comentou o projeto de reforma tributária à luz da revelação, feita pelo Pandora Papers, de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, têm offshores (empresas abertas em paraíso fiscal).
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Segundo o economista, o Ministério da Economia desfigurou sugestões feitas pela Receita Federal no projeto original da reforma tributária que poderiam afetar o dinheiro mantido por brasileiros em offshores. Fagnani citou três pontos reduziriam brechas para a evasão fiscal.
"O próprio Guedes, em uma palestra, deixou claro que não [queria alterações nesse sentido], [disse que] isso daí vai dar muita confusão e que era melhor não mexer com isso. Depois, o relator do projeto rapidamente tirou esses itens. Claramente, teve uma participação decisiva do Ministério da Economia."
"Acho que o Guedes não leu o projeto da Receita ou não entendeu inicialmente, mas a partir do momento que ele entendeu, o ministro da Fazenda vetou. Isso é, no mínimo, suspeito porque seria uma medida que certamente iria aumentar a tributação sobre os recursos que ele mantém nesses paraísos fiscais", afirmou.
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Fagnani apontou ainda que a mudança na tributação de pessoas jurídicas é central para o projeto que quer "transformar o Brasil um paraíso fiscal".
"No caso das pessoas jurídicas, eles querem reduzir a tributação de 15% para 2.5%. Depois, a última proposta subiu para 5%. O que isso quer dizer? Quer dizer que você não precisa nem mais colocar dinheiro fora do Brasil, porque mesmo aqui no Brasil você passa a não tributar nada. É uma medida antiparaíso fiscal porque transforma o Brasil no próprio paraíso fiscal", declarou o economista.
Brasil de Fato: É possível estabelecer uma relação entre a revelação das offshores de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto e a reforma tributária que o governo tenta aprovar no Congresso?
Eduardo Fagnani: A relação é direta pelo seguinte: a proposta original da reforma do Imposto de Renda, que foi elaborada em parte pela Receita Federal do Brasil, apontava corretamente algumas medidas que eram para reduzir essas brechas fiscais que dão espaço para a elisão e a evasão fiscal especificamente nos paraísos fiscais. Na elisão, ao contrário da sonegação, você usa brechas legais para fazer seu planejamento tributário e pagar menos tributo.
A Receita, por exemplo, propôs a tributação do ganho de capital na transferência de ativos brasileiros no exterior, que estão ou em países normais, enfim ou paraísos fiscais. Uma outra medida era que os capitais que estão fora do país passem a ser tributados pelo valor do mercado porque normalmente você tem um valor de custo. Outra medida era a tributação automática de lucro de empresas controladas por pessoas físicas brasileiras em paraísos fiscais. Portanto, existiam pelo menos três medidas que eram para tributar o dinheiro que estava em paraíso fiscal. Essa era a proposta original.
Logo em seguida, o próprio Guedes em uma palestra deixou claro que não [queria alterações nesse sentido], [disse que] isso daí vai dar muita confusão e que era melhor não mexer com isso. Depois, o relator do projeto rapidamente tirou esses itens. Claramente, teve uma participação decisiva do Ministério da Economia. Acho que o Guedes não leu o projeto da Receita ou não entendeu inicialmente, mas a partir do momento que ele entendeu, o ministro da Fazenda vetou. Isso é, no mínimo, suspeito porque seria uma medida que certamente iria aumentar a tributação sobre os recursos que ele mantém nesses paraísos fiscais.
Você chegou a brincar que Guedes queria tornar o Brasil um "paraíso fiscal". Esse projeto já é evidente na reforma do Imposto de Renda? Ou esse objetivo apenas ficará mais claro nos outros pedaços da reforma que ainda devem ser apresentados pelo governo?
A ideia de transformar o Brasil num paraíso fiscal é evidente na reforma do Imposto de Renda. Parafraseando Chico Buarque, que tem aquela música que "esse país ainda vai cumprir o seu ideal, vai se tornar um imenso Portugal", eu diria que "nós vamos nos tornar um imenso paraíso fiscal". Como? Com essa reforma do Imposto de Renda que está em tramitação no Senado.
Como e por que isso pode acontecer já a partir da aprovação da Reforma do Imposto de Renda no Congresso Nacional?
É importante situar um pouco essa questão. Qual é o problema tributário no Brasil? O problema tributário no Brasil é que nós taxamos muito o consumo e pouco a renda. A tributação sobre a renda no Brasil é de 18%, enquanto que nos Estados Unidos, por exemplo, é 50% de tudo que é arrecadado. Por isso, em primeiro lugar, nós tributamos pouco a renda, a renda das pessoas físicas e a renda das pessoas jurídicas. Para compensar essa baixa tributação da renda da pessoa física e jurídica, nós temos um sistema tributário que tributa muito o consumo. Quando se fala que a carga tributária no Brasil é alta, ela é alta para os pobres, porque o pobre que consome e esse tributo tem um peso muito maior na renda do pobre do que na renda de um rico, que, inclusive, consome uma parte muito pequena do que ele ganha.
Portanto, o que se esperaria de uma reforma do imposto de renda? Que ampliasse a participação do imposto de renda na carga tributária total. Como eu disse, no Brasil é 18% e nos Estados Unidos, 50%. Porém, a reforma do Guedes, na contramão do mundo, está reduzindo a participação do Imposto de Renda na carga tributária total. Vai na contramão de governos liberais de países capitalistas centrais, como os Estados Unidos. Por isso, o Brasil é um pária também na questão tributária, pois enquanto o mundo, enquanto FMI, enquanto o Banco Mundial, enquanto a OCDE recomendam que se amplie a tributação sobre os mais ricos, sobre renda, sobre patrimônio, sobre riqueza, o Brasil, que tem um dos sistemas mais injustos do mundo, vai reduzir a participação relativo ao Imposto de Renda na carga tributária total.
Quais são os principais pontos da reforma do Imposto de Renda que o governo federal defende?
A proposta do relator, no caso das pessoas físicas, não altera a alíquota máxima do Imposto de Renda, de 27,5%. Na média dos outros países, a alíquota máxima é 40%, 45% ou 50%. Isso faz com que uma pessoa que ganha R $6.000 e uma pessoa que ganha R $600 mil reais paguem a mesma alíquota de 27,5%, o que é uma obscenidade na comparação internacional. O Brasil é um dos dois ou três países do mundo que não tributa a distribuição de lucros e dividendos. O sujeito é sócio de um grande banco, recebe R $10 milhões de distribuição de lucros e dividendos. Esses R $10 milhões de reais vem para a pessoa física e esse valor não é tributado. A renda dos super-ricos no Brasil, em grande parte, não é de salário. Em geral, são lucros e dividendos. O governo pretende corrigir isso, mas como? Em vez de fazer uma alíquota progressiva, em que quem recebe R $20 mil de lucro paga, por exemplo, uma alíquota de 4% e quem recebe 1 milhão ou 2 milhões paga 40%, eles vão fazer uma alíquota linear, em que todo mundo paga os mesmos 20%. E, além disso, vão isentar quem tem dividendos de até R$ 20 mil por mês. Ou seja, alguém que receba R $20 mil de lucro por mês em um ano, tem R $240 mil por ano isentos de tributação. Isso é um absurdo do ponto de vista do princípio da equidade que diz que a tributação tem que ser progressiva e de acordo com a capacidade de cada indivíduo.
Qual aspecto da reforma nos permite dizer que a intenção é fazer do Brasil um paraíso fiscal?
No caso das pessoas jurídicas, eles querem reduzir a tributação de 15% para 2.5%. Depois, a última proposta subiu para 5%. O que isso quer dizer? Quer dizer que você não precisa nem mais colocar dinheiro fora do Brasil, porque mesmo aqui no Brasil você passa a não tributar nada. É uma medida antiparaíso fiscal porque transforma o Brasil no próprio paraíso fiscal.
Como o senhor recebe o argumento utilizado por economistas liberais de que a taxação dos mais ricos incentiva a fuga de capitais do Brasil?
Muito se fala que se você tem as grandes fortunas vai ter uma fuga de capital, que o pessoal vai pra fora do país, que vai colocar dinheiro em em paraíso fiscal. Mentira. Por que é mentira? Porque o dinheiro já está no paraíso fiscal. O dinheiro já foi para o paraíso fiscal. Pode fazer o imposto sobre grande fortuna que ninguém vai pagar porque o dinheiro mesmo já está lá fora, tá certo? Ninguém vai colocar uma fazenda em um navio e levar para fora, nem uma casa em um navio botar pra fora. O dinheiro já está lá, tá certo? Esse relatório dos jornalistas investigativos escancara os empresários que se dizem patriotas, que se embalam na bandeira verde e amarela para falar contra a corrupção, que dizem que o Brasil está acima de todos, gente da mídia, dono da Prevent Senior, empresários envolvidos na CPI, donos dos meios de comunicação… Essas contas todas que foram reveladas, inclusive a do ministro da Economia e a do presidente do Banco Central, mostram que os recursos já estão no exterior. A investigação mostra a falácia desse argumento de que se houvesse um imposto sobre riqueza haveria uma fuga de capital. Não haveria fuga de capital, pois ela já ocorreu.
Como o senhor enxerga a repercussão da mídia ao tema das offshores de Guedes e Campos Neto?
A grande imprensa tem divulgado uma ideia de que ter dinheiro em paraíso fiscal não é ilegal. De fato, não é ilegal. Porém, se você tem um dinheiro que é legal, que tem origem, que tem fonte, por que que você coloca numa conta secreta que ninguém sabe a autoria dele? É, no mínimo, suspeito. Outro fato é que o dinheiro no paraíso fiscal pode não ser ilegal com as regras frouxas que nós temos. O que a Receita Federal quis fazer foi exatamente isso, tributar as pessoas que têm que declarar o recurso que elas têm fora do Brasil. A Receita Federal tentou fazer isso agora na Reforma Tributária do Imposto de Renda, mas imediatamente isso foi vetado pelo ministro da Economia e pelo Congresso.
Outro dado interessante é o seguinte: quem tem recurso no exterior pode aplicar no Brasil, no mercado financeiro, por exemplo, na Bolsa de Valores. A empresa, se quiser, aplicar na Bolsa de São Paulo, e ganhar o investimento na bolsa, o recurso volta para o paraíso fiscal sem tributação, é isento de tributação. Aqui no Brasil, quem está no país e quer aplicar na bolsa, paga um pouco de imposto de renda. Pouco, mas paga. Porém, quem tem o dinheiro lá fora e aplica no mercado financeiro do Brasil, não paga nenhum imposto. Enfim, esse é o quadro que nós temos. Daqui a pouco, nem precisa ir para um paraíso fiscal, porque aqui as alíquotas são absolutamente baixas na comparação internacional.
Relator entrega texto
O senador Roberto Rocha (PSDB-MA) apresentou, nessa terça-feira (5), relatório à Proposta de Emenda à Constituição do Senado que trata da reforma tributária (PEC 110/2019). A apresentação foi feita no gabinete do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e teve participação do ministro da Economia, Paulo Guedes, do presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, do secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, e do presidente do Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), Rafael Fonteles.
"Esta reforma está há 30 anos sendo aguardada. Nós estamos aqui em um dia histórico: governo federal, governos estaduais, governos municipais, setor produtivo, agricultura, indústria, comércio, serviços e o Fisco apoiam nossa proposta", afirmou Roberto Rocha antes de garantir que não haverá aumento da carga tributária.
Roberto Rocha explicou que seu relatório prevê a “unificação da base tributária do consumo”, com criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Dual, ou seja, um IVA para a União (unificação de IPI, PIS e Cofins), chamado de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e um IVA para estados e municípios (unificação de ICMS e ISS), o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Segundo o senador, o mesmo sistema é adotado no Canadá e na Índia e vai aumentar a base de contribuintes e diminuir a carga tributária ao longo do tempo.
Edição: Vivian Virissimo