A própria forma de jogar capoeira era como ele era: aquela coisa leve, tranquila, 'relax'
O dia 8 de outubro de 2018 ficou marcado pela intolerância. Foi naquela noite que um apoiador do então candidato à presidência Jair Bolsonaro assassinou Mestre Moa do Katendê, após uma discussão em um bar por causa de política.
Desse modo abrupto, foi encerrada uma carreira de mais de 40 anos dedicados às muitas vertentes da cultura baiana: capoeira, dança afro, música, afoxé.
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O cantor Lazzo Matumbi ainda era adolescente quando conheceu Moa. Uma professora da escola onde Lazzo estudava resolveu montar um grupo folclórico, e Moa foi convidado a participar.
“A própria forma dele jogar capoeira era como ele era: aquela coisa leve, tranquila, relax, sem muita agonia no gingado. Isso traduz o capoeirista, a personalidade dele, e mostra exatamente a pessoa que é. E daí em diante a gente começou essa amizade que durou o resto da vida”, lembra.
Moa e Lazzo iriam se reencontrar anos depois, quando acontecia um ressurgimento dos afoxés. Criados logo após a abolição da escravidão, esses grupos foram muito perseguidos e tiveram altos e baixos ao longo do século 20.
Nos anos 1950, uma inovação tecnológica quase acaba com as agremiações, como explica o pesquisador e gestor cultural Chicco Assis, autor de uma tese de mestrado sobre os afoxés de Salvador.
Sempre que estava aqui na Bahia, ele fortalecia em tudo
“Quando o trio elétrico surge, o movimento das batucadas, das agremiações que vinham ganhando força, meio que é silenciado ou negligenciado. Então a gente pode perceber entre a década de 50 e a década de 60, um declínio dos afoxés”, afirma.
Nos anos 1970, alguns acontecimentos trazem os afoxés de volta à tona. Gilberto Gil, recém-chegado do exílio, faz uma música em homenagem ao afoxé Filhos de Gandhy e dá nova força ao grupo.
Em 1974, é criado o Ilê Aiyê, primeiro bloco afro de Salvador. Foi para o Ilê que Mestre Moa compôs a música que ficaria conhecida como “Badauê”.
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E Badauê foi o nome do afoxé que Moa fundou logo em seguida. Em depoimento à TVE da Bahia gravado em 2009, ele falou sobre o nascimento do grupo.
“O Badauê é toda uma história que começa também comigo, da minha trajetória como capoeirista, como dançarino, como integrante de vários grupos folclóricos, como Oxum, Viva Bahia, que me leva pro exterior. Então eu acumulei essa bagagem, mais o fato de eu ser ogã do terreiro da minha tia”, explica.
O Badauê levou às ruas o ijexá, ritmo que vem dos terreiros de candomblé. É o que explica Lazzo Matumbi.
“Tinha uma frase do Badauê que era muito interessante: ‘Nós somos o candomblé de rua’. Ou seja: trazemos essa manifestação que existe dentro dos candomblés, da adoração da nossa ancestralidade através da nossa espiritualidade, do respeito ao outro ser humano. Vinha como uma lição de humanidade: ‘olha, se você discrimina, nós estamos aqui para agregar, para aceitar todos e todas’. E o Badauê tinha isso”, destaca.
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No Badauê, todo mundo podia desfilar: homens, mulheres, negros e brancos. E o grupo inovou ao misturar o ijexá com ritmos como reggae, afrobeat e música cubana, como aponta Chicco Assis.
Era um conciliador, um bom educador, não só para os filhos como para seus alunos crianças, adultos, jovens, idosos
“Eu sempre penso muito nesse mito Sankofa: de olhar pra trás pra pensar e projetar o futuro. Enquanto os afoxés cantavam canções apenas da liturgia do candomblé, apenas em iorubá, o Badauê trazia uma força de canções em português, canções que contavam a beleza que era sair no Badauê. Cantando as belezas do bairro, cantando os amores”, afirma.
A musicalidade do bloco logo chamou a atenção de artistas como Gil, Moraes Moreira e Caetano Veloso, que gravou uma composição de Moa no disco Cinema Transcendental, de 1979.
Moa, o andarilho
A arte de Moa o levou para São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, e também para a Europa. Por onde ele passava, deixava discípulos na capoeira e no afoxé. Em casa não foi diferente. Os filhos de Moa também aprenderam com o pai, como lembra uma das filhas, Somonair, que é professora de dança.
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“Sempre que estava aqui na Bahia, ele fortalecia em tudo também, era um conciliador, um bom educador, não só para os filhos como para seus alunos crianças, adultos, jovens, idosos e todos aqueles que o acolheram, e todos aqueles que o abraçaram, e todos aqueles que o amaram”, destaca.
O fim trágico de Moa interrompeu uma trajetória que ainda tinha bastante estrada pela frente. Os amigos lembram que Moa tinha muitos planos, e que queria continuar fazendo aquilo em que era mestre: ensinar. É assim que Lazzo se lembra do parceiro.
“Ele fazia esse papel, como muitos outros negros fazem, de aquilombar-se para ajudar. Usando uma frase do samba do Recôncavo: ‘aprender a ler pra ensinar os camaradas’. Era bem isso o que ele fazia”.
“Meu pai me botou no caminho que é o caminho da cultura, o caminho da educação, o caminho do legado. Que sempre será lembrado. Axé, axé, axé”, ressalta.
Edição: Daniel Lamir e Douglas Matos