O Brasil cruzou nesta sexta-feira (08) a marca dos 600 mil mortos por covid-19. Foram mais de duas centenas de mortes registradas nas últimas 24 horas, elevando o total para 600.077, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa. No mesmo dia, o país atingiu a marca de 21.893.752 milhões de casos notificados.
A primeira morte oficial associada à covid-19 no Brasil foi a de uma mulher de 57 anos, em São Paulo, em 12 de março de 2020. Desde então, é como se toda a população de Joinville, a maior cidade de Santa Catarina, tivesse desaparecido.
Apenas um país acumula mais mortes do que o Brasil: os Estados Unidos, que recentemente superaram a marca de 700 mil óbitos por covid-19. Os EUA, no entanto, têm uma população 55% maior que a do Brasil e contam com mecanismos mais eficientes de notificação.
Especialistas também alertam que os números reais de casos e mortes no Brasil são maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da persistente subnotificação. Em junho, quando o Brasil superou a marca de 500 mil mortes oficialmente notificadas, estudos indicavam que o país provavelmente já contava mais de 600 mil óbitos por covid-19.
Desta vez, porém, a nova trágica marca oficial de mortos por covid-19 no Brasil pelo menos ocorre num momento de desaceleração. Apenas 51 dias separaram as marcas de 400 mil e 500 mil mortes notificadas. Já a divisa das 600 mil mortes ocorre 111 dias depois de o país ter superado meio milhão de vítimas.
Após início tumultuado, vacinação avança
Essa desaceleração no ritmo de mortes coincide com o avanço veloz da vacinação no país, que deslanchou apesar da demora do governo federal em comprar imunizantes e da má organização do Ministério da Saúde no início da campanha de vacinação. No momento, 69,78% da população tomou pelo menos uma dose da vacina e 45,5% completaram o esquema vacinal. Mais de 1,9 milhão tomaram uma dose de reforço.
Em 19 de junho, quando o país ultrapassou as 500 mil mortes registradas, 29,61% da população havia tomado pelo menos uma dose e apenas 11,45% haviam completado a imunização.
A média móvel de mortes nos últimos sete dias estava em 451 na quinta-feira – a menor desde 13 de novembro. Quando o Brasil superou a marca de 500 mil mortes, a média móvel estava acima da casa dos 2 mil óbitos. Os números também contrastam com as taxas de abril, o mês mais mortífero da pandemia, quando o país chegou a atingir uma média móvel de 3.125 mortes.
No fim de julho, o Brasil voltou a registrar média móvel de mortes abaixo de mil, após um período de 191 dias seguidos acima dessa marca.
O estado de São Paulo contava no início desta semana com 4.997 internados por covid-19 – menor dos últimos 18 meses e quase cerca de sete vezes menor que o registrado no pico da segunda onda, que teve mais de 31 mil pacientes com a doença. As taxas de ocupação de leitos de UTI também estavam entre as menores desde o início da pandemia, com 31,4% no estado e 39,5% na grande São Paulo.
"Podemos esperar números ainda mais animadores conforme chegarmos em 70 a 80% da população completamente vacinada. Pela primeira vez desde março do ano passado, apesar do esforço contrário e constante do governo federal, temos um horizonte favorável à frente", escreveu nesta semana o biólogo e divulgador científico Átila Iamarino em artigo na Folha de S.Paulo.
Segundo pesquisa Datafolha divulgada em julho, 94% dos brasileiros acima de 16 anos já teriam se vacinado ou que pretendiam se imunizar. Em dezembro de 2020, antes do início da campanha e quando o presidente Jair Bolsonaro fez seguidos ataques explícitos contra os imunizantes, esse percentual chegou ao seu nível mais baixo, 73%. No entanto, em março, com as mortes por covid-19 explodindo e o país superando a marca de 300 mil mortes, a adesão às vacinas já havia saltado para 89%.
Bolsonaro continua a sabotar esforços
A alta adesão à vacinação se impôs apesar do negacionismo e dos ataques regulares de Jair Bolsonaro às vacinas. Num ciclo que se repete desde 2020, o presidente continua a alimentar paranoia sobre os imunizantes, minimizar o número de óbitos e promover aglomerações e drogas ineficazes contra a covid-19, além de mentir sobre o papel do governo federal no combate à pandemia.
Bolsonaro mostrou nos últimos meses que nem mesmo a superação da marca de meio milhão de mortos em junho teve algum impacto em como o Planalto encara a doença. Ele demorou dois dias para expressar algum tipo de condolência sobre a marca de meio milhão de óbitos, e quando o fez logo emendou a fala com declarações defendendo drogas desacreditadas contra a covid-19, como a hidroxicloroquina e a ivermectina, aproveitando ainda a ocasião ainda para ofender uma jornalista.
Na mesma semana em que aquela marca foi batida, Bolsonaro ainda abaixou a máscara contra covid-19 de um menino em evento no Rio Grande do Norte e pediu para que uma menina também baixasse a sua. Nas semanas seguintes, chegou a usar a morte de celebridades idosas como supostos exemplos da ineficiência da Coronovac – a vacina promovida pelo governo de São Paulo, chefiado pelo seu rival João Doria.
Nesta sexta-feira, horas antes da marca de 600 mil mortes ser atingida, Bolsonaro voltou a alimentar paranoia sobre os imunizantes, desencorajando a imunização em jovens de até 20 anos.
"O número de pessoas que morre por covid abaixo de 20 anos, tá, hein, Queiroga, 99,999 alguma coisa não é isso Queiroga? Então por que vacina, meu Deus do céu? Será que é um negocio que estamos vendo em jogo no Brasil e no mundo?", disse Bolsonaro, em evento ao lado do seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
No final de setembro, Bolsonaro chegou a receber dois negacionistas alemães no Planalto para uma entrevista na qual repetiu mentiras e distorções sobre a pandemia, afirmando, por exemplo, que o coronavírus "apenas encurtou a vida delas [vítimas] por alguns dias ou algumas semanas".
Desde o início do ano, Bolsonaro também afirmou repetidamente que a melhor forma de se proteger contra o vírus é ser contaminado, reiterando a tese da imunidade de rebanho pela infecção. "Eu disse para as pessoas não terem medo, que enfrentassem o vírus", disse Bolsonaro aos negacionistas alemães.
No fim de junho, Pedro Hallal, epidemiologista e pesquisador da Universidade Federal de Pelotas, afirmou à CPI que quatro em cada cinco mortes pela doença no país seriam evitáveis, caso o governo federal tivesse adotado outra postura – como, por exemplo, apoiando o uso de máscaras, medidas de distanciamento social, campanhas de orientação e ao mesmo tempo acelerando a aquisição de vacinas.
Naquele momento, o país acumulava 508 mil mortes. Ou seja, de acordo com as estimativas do pesquisador, até 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas até julho. Só a demora na compra de vacinas – que deixou o país para trás de outras nações na vacinação em dezembro e início de janeiro –, teria provocado 95.500 mortes evitáveis, segundo Hallal.
Nesta quinta-feira (7), a Fiocruz destacou em boletim a queda nos números de mortes e casos de covid-19 nas últimas semanas, mas por outro lado apontou que ainda é essencial manter em vigor medidas preventivas para impedir que as taxas de infecção e mortes voltem a aumentar. Entre as medidas citadas pela fundação estão uso de máscaras e distanciamento social, além dos passaportes sanitários - justamente três medidas que Bolsonaro vem combatendo.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) pediu nesta sexta-feira (8) que os gestores do SUS mantenham a obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção facial. "É preciso que estejamos atentos às experiências frustrantes de alguns países que, acreditando ter superado os riscos, suspenderam a obrigatoriedade do uso de máscaras, afrouxaram as medidas de prevenção e, por isso mesmo, tiveram recrudescimento importante do número de casos e de óbitos, obrigando-os a retroceder", disse.
No entanto, Bolsonaro, um adversário do uso de máscaras, vem demonstrando impaciência com a manutenção das regras e chegou a pressionar publicamente o Ministério da Saúde a elaborar um estudo que embase o fim da obrigatoriedade.
Sem mudança de rumo no governo
Enquanto líderes de outros países, como o ex-premiê israelense Benjamin Netanyahu ou a chanceler federal alemã Angela Merkel deram o exemplo ao se vacinar na frente das câmeras ou divulgando o feito, Bolsonaro continua a ser o único chefe de Estado ou de governo do G20 que ainda não se imunizou. Ele afirma, ainda, que não pretende fazê-lo, como se isso fosse um problema exclusivamente seu.
A atitude causou vexame internacional quando Bolsonaro viajou a Nova York para participar da abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas.
Sem possuir uma comprovação de vacinação, ele se viu barrado de áreas internas de restaurantes e foi alvo de críticas do prefeito da cidade. Num gesto de populismo para sua base radical, deixou-se fotografar comendo pizza na calçada com seus ministros.
O desleixo da comitiva com o coronavírus foi escancarado quando três membros da comitiva, incluindo o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, um diplomata do cerimonial e o deputado Eduardo Bolsonaro testaram positivo para covid-19 – no que pareceu uma repetição de uma viagem de Bolsonaro aos EUA em março de 2020, quando duas dezenas de membros da comitiva voltaram doentes.
Bolsonaro ainda usou a tribuna da ONU para defender mais uma vez seu pacote de drogas ineficazes contra a covid-19. "Não entendemos por que muitos países se colocaram contra o tratamento precoce. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos", disse na ocasião. Hoje, o "tratamento precoce" só é defendido mundo afora em círculos conspiracionistas e de extrema direita, além de Bolsonaro e seu círculo.
Queiroga ainda se destacou durante o périplo aos EUA por fazer um gesto obsceno a um grupo de manifestantes antibolsonaristas em Nova York. Em março, sua indicação ao posto de ministro da Saúde foi encarada com algum alívio por secretários estaduais de Saúde e até setores da imprensa, já que, ao contrário do seu antecessor, o general Eduardo Pazuello, ele tinha experiência na área de saúde.
No entanto, Queiroga já deu várias demonstrações de seguir o mesmo comportamento servil de Pazuello. O exemplo mais recente ocorreu em setembro, quando o presidente interveio pessoalmente no Ministério da Saúde para interromper a vacinação de adolescentes, que vinha sendo realizada por estados e municípios. Segundo vários veículos da imprensa brasileira, Bolsonaro tomou a iniciativa após ouvir declarações de jornalistas de extrema direita da Rádio Jovem Pan que regularmente espalham mentiras e alimentam temores infundados sobre vacinas.
O ministro Queiroga, assim como havia ocorrido diversas vezes com seu antecessor Pazuello, aquiesceu às ordens sem base cientifica de Bolsonaro. O episódio exigiu intervenção do Supremo Tribunal Federal, o qual decidiu que estados e municípios têm autonomia para decidir sobre a imunização de adolescentes de 12 a 17 anos.
Diante desse histórico do governo e a persistência das atitudes negacionistas de Bolsonaro,na terça-feira, o relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, declarou que vai indiciar o presidente Jair Bolsonaro e mais 29 indivíduos por ações e omissões durante a pandemia.
Ainda nesta quinta-feira, a CPI aprovou um requerimento para pedir esclarecimentos a Queiroga sobre o motivo de a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ter retirado da pauta a análise de um relatório sobre o "tratamento precoce".
Os senadores suspeitam que tenha sido feito algua pressão para que os técnicos deixassem de avaliar na data prevista o documento, que aponta para a não utilização de cloroquina e ivermectina no tratamento da covid-19.
Incógnita em 2022
O ministro Marcelo Queiroga afirmou nesta semana que o governo federal está considerando para 2022 uma campanha de vacinação contra a covid-19. No entanto, ele não detalhou como o governo está negociando a compra de mais doses para imunizar os brasileiros e qual é o cronograma de entrega das doses.
As falas não foram consideradas tranquilizadores. No mesmo dia, a CPI da Pandemia aprovou um pedido de informações ao Ministério da Saúde sobre o planejamento para vacinação contra a covid-19 em 2022 e para que o órgão justifique sua intenção de descontinuar o uso da CoronaVac no próximo ano. A CPI ainda aprovou um requerimento para que fabricantes de vacina informem sobre tratativas mantidas com o governo para o fornecimento de imunizantes em 2022.
O temor de uma repetição do quadro do fim de 2020 e início de 2021, quando ficou claro que o governo não havia se esforçado para comprar vacinas de grandes laboratórios e em alguns casos até mesmo ignorou ofertas, também foi levantado no fim de agosto, quando o governo enviou o projeto de Orçamento de 2022 ao Congresso. O texto só reservava R$ 3,943 bilhões para a compra de vacinas contra a covid-19 – uma queda de 85% em comparação ao autorizado para 2021 (R$ 27,8 bilhões).
No segundo semestre de 2020, a equipe econômica do governo desdenhou de advertências de uma segunda onda da pandemia, enquanto o Ministério da Saúde, então sob o comando de Pazuello, ignorava ofertas de grandes laboratórios.
Em novembro, pouco mais de um mês antes de o Brasil cruzar a marca de 200 mil mortes, o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, chegou a afirmar explicitamente, sem citar qualquer argumento cientifico, que a probabilidade de segunda onda da doença no país era "baixíssima". Em dezembro, o ministro Paulo Guedes fez afirmações semelhantes, apesar da advertência de cientistas sobre novas ondas mortíferas da doença, que acabaram se concretizando.