A investigação Pandora Papers movimentou as notícias durante a semana e o foco se voltou para a América Latina. Além de abrigar vários países considerados paraísos fiscais pelas baixas ou quase nulas taxas para transações financeiras, como é o caso das Ilhas Virgens Britânicas, Bahamas e Curaçao, a região também concentra 11 das 35 autoridades citadas no caso.
O vazamento, realizado pelo mesmo coletivo que em 2014 publicou o Panamá Papers, inclui cerca de 11,9 milhões de documentos sobre 29 mil empresas fantasmas. Entre os funcionários públicos que figuram como proprietários de negócios ocultos também foram indicados presidentes no exercício do cargo.
Apesar da maioria dos países não considerar um delito possuir uma empresa offshore ou contas no exterior, desde que os valores sejam declarados, a evasão de impostos no país de origem enquanto se exerce um cargo na administração pública é questionável, tanto do ponto de vista ético, como pelo desfalque que gera aos cofres do Estado.
“É um aparato transnacional não só de empresas, mas de governos, que governam associados a essas empresas, privilegiando essas empresas, com seus negócios, em detrimento de uma agenda pública de justiça social, aumento de emprego, distribuição de renda. Os Estados e a sociedade civil participativa precisam buscar mecanismos para evitar esse tipo de ações”, analisa a cientista política Ana Prestes.
Assim como no Brasil, onde o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, deverão prestar esclarecimentos ao Congresso, em países vizinhos processos similares também foram abertos.
Equador
O presidente Guillermo Lasso tem seu nome relacionado com 14 empresas offshore, no Panamá e nos Estados Unidos, das quais 11 estariam inativas. A legislação equatoriana, aprovada em 2017 durante o mandato de Rafael Correa, proíbe candidatos ou servidores públicos de serem donos de propriedades em paraísos fiscais. A comissão de fiscalização da Assembleia Nacional equatoriana irá investigar as contas do mandatário, que aceitou levantar seu sigilo bancário.
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Em nota, Lasso assegura que seu patrimônio foi adquirido após anos de trabalho em bancos públicos e privados do seu país. “Toda minha receita foi declarada, pagando impostos correspondentes no Equador, sou um dos maiores contribuintes a título pessoal no nosso país”, afirmou. O presidente equatoriano também solicitou à Controladoria Geral da República que revise sua declaração jurada de bens. Segundo o Serviço de Rendas Internas (SRI), Lasso teria um patrimônio de US$ 174 milhões (R$ 936 milhões).
A los ecuatorianos, en relación a Pandora Papers.
— Guillermo Lasso (@LassoGuillermo) October 4, 2021
Cumplo con lo expuesto en la ley, todos mis ingresos han sido declarados y he pagado los impuestos correspondientes en Ecuador. Siempre con transparencia y frontalidad ante el pueblo ecuatoriano. pic.twitter.com/1oN5nuXNpj
A relação do ex-banqueiro com paraísos fiscais é antiga. Reportagens investigativas de 2017 já apontavam que ele estava vinculado à criação de 49 companhias ocultas. Entre 1999 e 2000, Lasso aumentou sua fortuna declarada de US$ 1 milhão para US$ 31 milhões (cerca de R$ 167 milhões).
Chile
O presidente chileno Sebastián Piñera, que deixará o cargo neste ano, também aparece no Pandora Papers.
Piñera teria vendido suas ações do projeto mineiro Dominga, em 2010, numa operação de US$ 138 milhões (cerca de R$ 745 milhões). O valor total foi pago em quatro parcelas nas Ilhas Virgens Britânicas, sendo que o último depósito estaria condicionado à suspensão do título de unidade de preservação ambiental na zona onde a mineradora pretendia extrair cobre e ferro.
O caso da venda das ações do projeto mineiro Dominga já tinha vindo à tona em 2017, mas foi encerrado por falta de provas. As ações vendidas estavam registradas no nome dos filhos do presidente, portanto a defesa alegou que o chefe de Estado nunca foi informado sobre a operação.
No entanto, quatros anos depois da venda, o Serviço de Avaliação Ambiental mudou sua decisão sobre a área de preservação, dando luz verde para o projeto Dominga, na região de Coquimbo, norte do país.
O Ministério Público anunciou que irá investigar se houve delito tributário, tráfico de influência ou negociação incompatível de Piñera durante sua gestão presidencial.
Em comunicado, a assessoria do presidente chileno assegura que há 12 anos ele não é proprietário de qualquer empresa offshore e que desde 2018 seus bens são geridos por administradoras de fundos, “o que implica que o mandatário não conheça os investimentos realizados.”
Comunicado de Prensa referente a publicación periodística del 3 de octubre de 2021 pic.twitter.com/TiLVAzTAOJ
— Prensa Presidencia de Chile (@presidencia_cl) October 3, 2021
Em 2017, Piñera declarou possuir um patrimônio de US$ 2,7 bilhões (cerca de R$ 14 bilhões).
“Com tanto dinheiro, por que essas pessoas vem governar um Estado? Se dizem que é algo tão penoso, sacrificante ser funcionário público. É certo que tem algum tipo de interesse. Então se eles estão ocupando esses postos no Estado é porque tem algum tipo de privilégio ou acesso a informações privilegiadas que vão ajudar nos seus negócios”, defende a cientista política Ana Prestes.
República Dominicana
O presidente Luis Abinader foi apontado como sócio de duas empresas panamenhas (Littlecot Inc. e Padreso SA), criadas antes de que ele assumisse o mais importante cargo do Executivo do país.
Assim como seu homólogo chileno, Abinader declara não saber detalhes sobre seus investimentos, que seriam administrados por terceiros desde 2020, quando decidiu concorrer à presidência. “São consultores que contratamos para comprar empresas nessa jurisdição. Serve para facilitar transações comerciais com clientes e reduzir travas administrativas”, declarou.
O opositor Partido da Liberação Dominicana (PLD) acusa o presidente de “sequestrar os organismos de controle” e diz que ele “desconhece a transparência”, destacando que as duas empresas panamenhas não aparecem na declaração jurada de bens do mandatário. O PLD tenta abrir uma investigação no Parlamento, mas precisa da maioria qualificada para levar adiante um processo contra Abinader, que possui a maioria das 32 cadeiras.
Colômbia
A vice-presidenta colombiana, Marta Lucía Ramírez, assim como a ministra de Transporte, Ángela María Orozco, e o chefe da Direção de Impostos e Aduanas Nacionais (Dian), Lisandro Junco Riveira, são mencionadas na investigação jornalística.
Ramírez e seus familiares figuram como sócios da Global Securities Management Corporation, nas Ilhas Virgens Britânicas. O fundador da empresa, Gustavo Hernández Frieri, foi preso em 2021 por lavagem de dinheiro que havia sido desviado da Petróleos de Venezuela S.A (Pdvsa). A vice-presidenta disse que não pode ser implicada no caso, porque vendeu suas ações em 2018.
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A ministra de Transporte aparece como sócia da mesma corporação, mas afirma que vendeu sua parte em 2012.
Já o diretor da DIAN possui empresas offshore ativas nos Estados Unidos, com uma conta no Citibank de Miami com cerca de US$ 10 mil (R$ 54 mil). Riveira afirmou que a empresa se tratava de uma operação familiar que não se concretizou e que a sociedade segue ativa como forma de poupança para ele e sua esposa.
O presidente Iván Duque respondeu ao caso dizendo que não é um delito possuir contas no exterior desde que estejam declaradas.
No total, 588 colombianos estão relacionados com os Pandora Papers, incluindo os dois ex-presidentes César Gaviria (1990-1994) e Andrés Pastrana (1998 -2002).
De acordo com levantamentos independentes, a Colômbia deixa de arrecadar anualmente cerca de US$11,7 bilhões (aproximadamente R$ 63 bilhões), equivalente a 18% da receita tributária, por evasão fiscal de grandes empresários.
Negócio transnacional
A lista de ex-presidentes latino-americanos citados na investigação ainda inclui três ex-chefes de Estado do Panamá, dois de El Salvador, o hondurenho Porfirio Lobo Sosa, o paraguaio Horacio Cartes e o peruano Pedro Pablo Kuczynski.
Segundo a rede Tax Justice, cerca de US$ 427 bilhões (R$ 2,3 trilhões) foram perdidos em 2020 pela evasão fiscal de grandes empresários. Somente no Brasil, a cifra estimada é de US$14,9 bilhões (cerca de R$ 80 bilhões).
A Oxfam também indica que 9 a cada 10 empresas da lista das 200 maiores multinacionais do mundo possuem contas em paraísos fiscais. Em 2015, os 20 maiores bancos europeus declaram possuir cerca de 25% dos seus fundos em territórios livres de impostos.
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Para a cientista política Ana Prestes, a ascensão de governos conservadores através de golpes de Estado, perseguição político-judicial e instrumentalização dos organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), fazem parte de uma articulação internacional entre personagens políticos e empresários.
“Foi uma elite econômica neoliberal, associada às oligarquias vigentes no nosso continente, aliadas ao imperialismo, que começaram a recuperar seus postos no mando do Estado. Isso mostra como a integração latino-americana é necessária, inclusive para criar mecanismos de controle do capital externo na nossa região para proteção das nossas populações”, conclui Prestes.
Edição: Thales Schmidt