O escândalo econômico do momento são os trilhões de dólares mantidos em paraísos fiscais por grandes empresários, rentistas, políticos e personalidades poderosas como o Rei Abdullah da Jordânia, Tony Blair, ex-Primeiro-ministro inglês, Sebastián Piñera, Presidente chileno, e no caso brasileiro o Ministro da Economia, Paulo Guedes, e o Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, dentre outros.
Todos, sem qualquer exceção, reafirmam o mesmo mantra: manter investimento em empresa offshore é legal e não ofende o ordenamento jurídico vigente. No caso específico das autoridades brasileiras ao mantra somam-se dizeres como, “desde que assumi a função pública me afastei das empresas citadas”; “não fiz qualquer aporte ou saque de valores desde então”; “comuniquei o fato à Receita Federal e à Comissão de Ética Pública da Presidência da República”.
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A questão, no entanto, é antecedente: a que servem as offshores e os grandes paraísos fiscais? Qual a relação das remessas de dinheiro para tais paraísos, a miséria e a fome que crescem no mundo e, especificamente, no Brasil?
Um dos pilares do pacto social da modernidade é a contribuição universal mediante tributos. Todos deveriam contribuir, consoante sua capacidade, com a construção de uma sociedade justa e solidária, por meio de pagamento de impostos. Esse pilar da organização socioeconômica capitalista está presente em normas de Direito Internacional e ordenamentos jurídicos nacionais há séculos e procura dar legitimidade – discursiva, pelo menos – ao sistema.
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Afinal, não há como promover desenvolvimento sem infraestrutura, educação sem escolas, saúde sem hospitais, e tudo isso demanda investimentos mediante recursos a serem providos pelo próprio povo. Essa é a lógica, repita-se, do sistema capitalista ocidental ancorado nas chamadas democracias liberais.
Ao longo do tempo e nos diversos países do mundo diferentes sistemas tributários emergiram e se mostraram mais ou menos capazes de promover arrecadação necessária – e nem sempre suficiente – à implementação de políticas públicas dedicadas a induzir crescimento econômico e satisfação de Direitos Sociais.
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Como todo recurso escasso, os orçamentos públicos sempre foram disputados por diversos grupamentos sociais interessados em fazer valer os seus interesses. Os muito ricos há muito entenderam que a disputa pelo orçamento é luta política fundamental à ampliação de suas riquezas e de seu poder. Não é por acaso que se apropriam, ano a ano, dos orçamentos nacionais, sobretudo pela via do endividamento público.
Contemporaneamente, o mundo passa – e isso vem desde a crise financeira de 2008 –, por momento de grande oscilação entre estagnação e recessão econômica, baixa demanda agregada, redução da participação da massa salarial na produção de todas as riquezas globais e consequente aumento das desigualdades socioeconômicas.
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A pandemia, para além dos milhões de mortes causadas pela covid-19, agravou a chamada crise econômica global e ampliou o quadro de desemprego com a perda, só em 2020, segundo a OIT, de 8,8% das horas de trabalho em nível mundial, em relação ao ano de 2019, o que equivale a extinção de 255 milhões de postos de trabalho a tempo completo.
Ainda de acordo com a OIT, estima-se que a perda de renda dos trabalhadores, em 2020, no comparativo com o ano de 2019, tenha sido de 8,3% da massa salarial auferida no anterior, o que correspondeu a US$ 3,7 bilhões de dólares a menos e foi equivalente a 4,4% do PIB mundial.
Mas a despeito da “crise”, os grandes capitalistas ficaram ainda mais ricos e poderosos na última década, especialmente na pandemia. Os vinte maiores bilionários do mundo, em sua imensa maioria homens brancos, acumularam, sozinhos, 1,77 trilhão de dólares em 2020, o que significou um aumento de 24% em relação ao ano de 2019. O 1% mais rico do mundo acumula a mesma riqueza de mais da metade da população mundial
No Brasil, o desemprego alcança mais de 14,4 milhões de pessoas, ou 14,1% da população economicamente ativa. No segundo trimestre de 2021, 1 em cada 4 trabalhadores (28,6% da população economicamente ativa, para ser mais preciso) estava subutilizado e o rendimento médio de todos os trabalhos recuou de R$ 2.750,00 no segundo trimestre de 2020, para R$ 2.508,00 no mesmo período de 2021.
Os que mais sofreram perdas em suas rendas foram os trabalhadores formais; os trabalhadores informais e os trabalhadores por conta própria. Os muito ricos, por outro lado, ficaram ainda mais ricos, seguindo a tendência de acumulação e desigualdade global.
Não por casualidade, mas por causalidade, são estes homens (em sua imensa maioria) e mulheres muito ricos que figuram no rol dos sócios de empresas offshore espalhadas por paraísos fiscais. Esse privilégio foi arquitetado por eles, exclusivamente para eles. Os trabalhadores, despossuídos, não figuram como sócios de empresas dessa natureza pelo simples fato de que sequer têm recursos para isso. Não têm recursos econômicos, jurídicos e políticos para fazê-lo.
Mesmo os trabalhadores privilegiados, aqueles com salários mais altos, não escapam dos seus deveres tributários, posto que, como regra, são tributados na fonte de suas rendas.
Mas por que os muito ricos utilizam esse expediente? Quais as motivações? Primeiro, para não pagar ou pagar menos impostos; segundo, para ocultar patrimônio; terceiro, para proteger parte do patrimônio dos solavancos econômicos e crises cíclicas do capitalismo, notadamente em países de economias periféricas, dependentes e vulneráveis como, por exemplo, a brasileira. Há, por certo, outras razões além dessas, mas estas são as principais.
E como o propósito primordial é não pagar ou pagar menos impostos, acumulando, assim, mais riqueza, os muito ricos ampliam seu poder às custas da ruptura do pacto social e da miséria humana.
Órgãos de imprensa noticiam que o Brasil é o segundo país do mundo com o maior número de bilionários que mantém empresas offshore, ficando atrás apenas da Rússia. Além dos bilionários, outros milionários brasileiros têm cada vez mais aderido a esse expediente, evitando ou reduzindo o pagamento de impostos dentro do país.
É claro que no caso específico do Ministro da Economia e do Presidente do Banco Central, autoridades monetárias e cambiais que tomam decisões que influenciam diretamente a valorização ou a desvalorização do real frente ao dólar a coisa vai além. Há, nestes casos, claro e inequívoco conflito de interesses públicos e privados, ou o patrimônio mantido em paraísos fiscais lastreados em moeda americana deixou de ser deles? Ao final de suas trágicas passagens pelo governo Bolsonaro, incorporarão ou não aos seus conjuntos de ativos os lucros decorrentes de suas próprias decisões à frente da economia brasileira?
Não há espaço para ingenuidade nesse campo. Está claro que as decisões tomadas por ambos tiveram impactos significativos em seus patrimônios e violaram não só o Código de Conduta da Alta Administração Federal, mas a própria Lei 12.813/2013 que estabelece, dentre outras coisas, as situações que configuram conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego público.
Mas o que não se pode deixar de destacar é que o simples fato de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto manterem fortunas em paraísos ficais revela o desprezo de ambos pelo pacto social, pela justiça fiscal e pelo desenvolvimento progressivo de uma sociedade justa e solidária.
São, ambos, representantes fiéis da elite do atraso brasileira. São exemplares de uma elite acumuladora que no grande cassino do capitalismo neoliberal rompe com os princípios e valores da modernidade, que não liga para o flagelo do povo brasileiro e que se protege, cada vez mais, com o Direito e com as armas.
Se é verdade, e é, que o ordenamento jurídico brasileiro admite a remessa de dinheiro para empresas offshore, bastando a comunicação do fato às autoridades fiscais brasileiras, é porque quem legisla, nesses casos, o faz em causa própria. Porque transforma, cada vez mais, o Direito capitalista em ferramenta de poder e concentração de riqueza.
É o próprio capital protegendo os seus interesses, rompendo com o pacto social e com a modernidade, condenando os mais pobres a mais miséria, fome e indignidade. Isso não é só imoral, é ilegal se considerarmos o que diz o texto constitucional. Ou será que admitiremos, de uma vez por todas, que o Direito capitalista, sobretudo o brasileiro, é ferramenta de poder, dominação, expropriação, miséria e fome da maioria? Estamos dispostos a olhar para o Direito capitalista como ele realmente é: meio de realização do poder de poucos em desfavor da vida e da existência de muitos?
Não faltam juristas que, criticamente, reconhecem a funcionalidade do Direito – e das contemporâneas técnicas de desregulamentação – como ferramenta útil aos donos do poder, especialmente em tempos tão sombrios como o que nos toca viver. Mas não é menos verdade – e isso não escapa a estes mesmos estudiosos – que o Direito também é espaço de luta por dignidade e que, nesse contexto, pode significar, em maior ou menor grau, limite ao poder dos chamados “amos do mundo”.
A depender da escolha político-jurídica que se fizer, a conclusão pode ser a reafirmação cínica, egoísta e destrutiva de que manter investimento em empresa offshore não viola o ordenamento jurídico vigente, seja ele o brasileiro, o inglês, o estadunidense ou qual for.
Por outra via, pode significar flagrante ruptura do pacto social, evasão fiscal, promoção da pobreza, recessão, desemprego, fome e indignidade humana. Nesse último caso, à luz do que dispõe o próprio Direito capitalista ocidental do pós-guerra, inclusive o brasileiro, a conclusão a imperar é a de que lucrar às custas do trabalho alheio e remeter dinheiro para paraísos fiscais com o único e exclusivo propósito de não pagar ou pagar menos impostos e não contribuir para o desenvolvimento da sociedade é ilegal e não só imoral ou antiético.
Dá para fazer de conta de que está tudo certo, que é assim mesmo, que não há alternativa, ou dá para agir de maneira a escancarar a realidade, tratar os fatos como eles verdadeiramente são, chamar as coisas pelo nome, enfrentar os poderosos e construir uma outra realidade, mais justa e solidária, em que a remessa de dinheiro para paraísos fiscais sejam claras manifestações de evasão fiscal e não sinônimo de status e proteção patrimonial de alguns poucos privilegiados em detrimento da maioria da população.
Como corretamente descreveu James S. Henry em clássico artigo denominado “The Price of Offshore Revisited”, o buraco em que os bilionários escondem o dinheiro precisa ser revelado e tratado como um dos mais graves problemas do nosso tempo. A desigualdade socioeconômica é mal a ser combatido com urgência, e isso passa, dentre outras coisas, por acabar com a injustiça fiscal que marca o capitalismo de cassino que é o capitalismo financeiro.
Portanto, pouco importa se Paulo Guedes e Roberto Campos Neto repetem, em suas defesas, o mantra da legalidade da remessa de dinheiro para o exterior ou não. O fato é que são, junto com a elite que representam, responsáveis pela tragédia econômica da desigualdade que assola o país. Não só por suas decisões como agentes públicos, mas por suas condutas privadas que espelham a verdadeira lógica do capitalismo financeiro brasileiro: os lucros são privados e os prejuízos são públicos.
O problema é que essa lógica perversa mata. Ela impede ou dificulta sobremaneira o dever do Estado de induzir e promover desenvolvimento econômico e socioambiental que vise a melhorar a vida das pessoas, sobretudo as mais vulneráveis. Ela inviabiliza a realização do bem comum, fragiliza o pacto social, põe em dúvida as instituições e a democracia. É mais do que imoral, é ilegal, ilegítima e precisa ser combatida pelo que é, especialmente se se quiser tratar verdadeiramente de justiça fiscal, desenvolvimento econômico, combate ao desemprego, à miséria e à fome, no âmbito do próprio capitalismo.
Como disse, não há espaço para ingenuidade nesse campo. Não se está a propor superação de um sistema feito para ser assim: injusto, explorador e excludente. Não há condições materiais para isso. Não nesse momento histórico.
O que se deve propor, de imediato, são alguns limites ao poder dos muito ricos taxando-os de maneira mais justa e indispensável a uma melhor distribuição da riqueza. É restabelecer a solidariedade fiscal como ponto de partida da construção da sociedade capitalista escorada na democracia liberal. É dar nome às coisas, é permitir que as riquezas produzidas no Brasil, no caso específico da nossa sociedade, sejam divididas de maneira mais equânime e permitam a melhoria das condições de vida das pessoas. Não é a revolução, é só uma tentativa de dar a um povo empobrecido, que voltou ao mapa da fome, à fila do osso e não tem acesso a bens e serviços como água encanada, saneamento, moradia, segurança, educação, vacina, emprego e renda, um pouco mais de dignidade.
Combater a evasão fiscal e o uso ilegal e ilegítimo de empresas offshore, tributar as grandes fortunas, o lucro, as heranças, são um passo sistêmico nesse sentido. Não resolverão, por si, os problemas, mas são decisões políticas e jurídicas possíveis. O Direito não é e não precisa ser só um instrumento de poder e dominação capitalista, pode e deve ser mais. Por ser espaço de luta, pode ser revolucionário, ou num cenário mais realista, mecanismo de legitimação sistêmica e, ao mesmo tempo, limite aos poderes de quem detém os meios de produção.
Em última análise, pode ser ferramenta que legitima o discurso cínico, egoísta e destrutivo de Guedes e Campos Neto, ou meio de manutenção do sistema com a promoção de direitos econômicos, sociais e ambientais que favoreçam à comunidade. Depende da escolha política que se fizer. As consequências de uma ou outra escolha são bastante previsíveis.
*Ricardo Nunes Mendonça é graduado em Direito pela UFPR. Mestre em Direito pela PUC-PR. Advogado sindical e membro do instituto DECLATRA. Professor de Direito do Trabalho do Centro Universitário do Brasil – UNIBRASIL. Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Regulação no Estado Constitucional – GPTREC.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano