Entre 2003 e 2013, apenas três estrangeiros treinaram times brasileiros
O Brasileirão deste ano bateu recorde de técnicos estrangeiros à frente dos times. Até agora, nove treinadores de outros países passaram pelas casamatas dos clubes. Mas apenas, cinco permanecem trabalhando, comprovando que sua situação pode ser mais tensa e instável de que seus colegas brasileiros.
Entre os estrangeiros, apenas o português Abel Ferreira e a sensação argentina Vovojda do Fortaleza estão no topo da tabela. E ainda assim, o técnico palestrino não deve continuar na equipe, mesmo se vencer a Libertadores. Mais abaixo, no São Paulo, Hernán Crespo ainda vê a zona de rebaixamento por perto e tem seu trabalho contestado. O uruguaio Diego Aguirre treina o Internacional, mas antes dele Eduardo Coudet e Miguel Ángel Ramírez não conseguiram permanecer no cargo. No Bahia e no Atlético, o argentino Dabove e o português Antonio Oliveira, respectivamente, foram substituídos por escolhas mais tradicionais do mercado brasileiro, enquanto apenas o paraguaio Gustavo Florentin parece ir na contramão da tendência, recuperando o Sport no fundo da tabela e de uma crise política interna.
Ainda assim, o número surpreende. Entre 2003 e 2013, apenas três estrangeiros treinaram times brasileiros. A partir de 2014, o número cresce timidamente, mas nunca ultrapassou mais do que quatro clubes. Até que Jorge Jesus e Sampaoli chegaram para o campeonato de 2019. Apesar de serem os dois únicos estrangeiros naquele campeonato, no ano seguinte, sete clubes seguiram o exemplo de Flamengo e Santos buscaram fora das fronteiras seus comandantes.
O treinador brasileiro já enfrenta um cenário hostil. Todo treinador em qualquer lugar do mundo precisa de tempo e continuidade para montar um sistema de jogo e para que ele seja assimilado pelos jogadores. No Brasil, o calendário é sobrecarregado, o que limita o tempo não só da pré-temporada, mas entre as partidas. Além disso, diante de diretorias incompetentes e oportunistas politicamente, é sempre mais fácil demitir um treinador do que um grupo de dirigentes ou reformular o elenco.
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Assim como os jovens treinadores brasileiros, o treinador estrangeiro também sofre com o atraso técnico na mentalidade destes clubes e da CBF. Poucos clubes ainda adotam as análises de dados como ferramentas para análise tática e técnica e muitos dirigentes – e torcedores! - enxergam o técnico como um gestor de vestiário ou um motivador, cofiando que o desempenho dos atletas venha de algum dom divino e que o talento dos craques é suficiente para definir uma partida. A seleção brasileira de 1970 é o exemplo mitológico deste pensamento mágico de que com tantos craques, nem precisava de treinador. Esta ideia ignora que aquela seleção foi inovadora na preparação física, se tornando um modelo estudado mundialmente, e que o sucesso dela dependia também do posicionamento tático de Pelé, Gérson, Tostão e Rivelino com e sem a bola.
A presença de treinadores estrangeiros é importante justamente para oxigenar a cultura tática, permitir o intercâmbio de ideias num esporte que tem regras centenárias, mas que permite inúmeras variações táticas numa mesma partida. Neste sentido, além da menor barreira do idioma, os técnicos argentinos e portugueses trazem vantagens para o nosso campeonato. Os portugueses, mesmo sendo uma força menor no continente europeu, disputam as mesmas competições e tem contato mais rápido com as transformações técnicas do outro lado do Atlântico. Já os argentinos investem em um rigoroso e completo sistema de formação técnica desde a década de 1960 e mesmo assim, convidam com frequência técnicos como Pep Guardiola para conferências para atualizarem seus conceitos.
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Vale lembrar que foi graças a um estrangeiro, o húngaro Dori Kürschner, contratado pelo Flamengo no final da década de 1930, que o futebol brasileiro se modernizou taticamente, adotando o sistema WM, que compreendido e adaptado pelos técnicos brasileiros resultou na forma de jogo das seleções brasileiras campeãs em 1958 e 1962. Mais ousada, a seleção brasileira feminina já tem no seu comando a sueca Pia Sundhage. Quem sabe o Brasileirão deste ano não seja mesmo um marco e vencendo as resistências e o provincianismo, mais técnicos estrangeiros obtenham conquistas no país, mais treinadores brasileiros beneficiem-se pelos avanços táticos e o futebol brasileiro respire novos ares?
*Miguel Stédile é Doutor em História pela UFRGS e editor do Ponto Newsletter.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo