A ideia da semente como mercadoria é bem recente se comparada com a história da agricultura
O que levaria um casal a viajar mais de 10 mil quilômetros de bicicleta pela América do Sul? Essa foi a jornada feita por Manoel Inácio e Ivânia de Alencar, que moram no interior cearense.
A decisão foi tomada quando o casal de agricultores se deparou com a falta de sementes crioulas para cultivar alimentos de forma saudável e com autonomia. Ou seja, não encontraram as espécies naturais, mantidas pela sabedoria camponesa e de populações tradicionais na terra.
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Manoel e Ivânia conquistaram o direito à terra na década de 1990 no assentamento Barra do Leme, em Pentecoste (CE). Mantendo o sonho por uma terra livre de venenos e transgênicos, recusaram as variedades de sementes modificadas em laboratórios.
Cientes da impossibilidade de multiplicar as sementes - que são estéreis para manter direitos de uso das empresas - e da dependência de governos para comprá-las, Manoel e Ivânia partiram na busca das sementes crioulas pelas redondezas.
O meio de transporte disponível para o casal sempre foi a bicicleta. Além disso, ambos destacam a sustentabilidade das pedaladas para o meio ambiente e os custos de vida.
Nem mesmo os deslocamentos em duas rodas por Pentecoste e por municípios vizinhos resultaram no resgate ideal das "sementes naturais" tão desejadas. É a partir da insistência que as buscas e articulações foram se enraizando para distâncias cada vez maiores.
Em 2006, a maior dessas rotas foi definida e chegou a âmbito internacional. O trajeto coletando e distribuindo sementes ultrapassou os 10 mil quilômetros.
"Atravessamos o Brasil, iniciando pelo Ceará. Seguimos pela Paraíba, Pernambuco, Bahia, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Depois entramos no Paraguai, seguimos pela Argentina e voltamos pelo Uruguai. Entramos no Brasil de volta pelo Rio Grande do Sul, mais precisamente por Aceguá, na Rodovia de acesso a Bagé (RS)", detalha Manoel.
O esforço foi feito pela consciência de processos amplos que ameaçam a agricultura camponesa para além do seu próprio território.
"Não tinha sementes para reproduzir. Estávamos dependentes do mercado. A chamada Revolução Verde é o princípio do Agronegócio. Assim some a cultura, o saber de lidar com a terra. Já não é mais agricultura, é o agronegócio, vem aplanar todas as terras e plantar seus monocultivos", explica o agricultor.
Sementes e culturas industriais
Por isso, a viagem de Manoel foi além do aspecto quantitativo das sementes. Ao lado da companheira, ele lembra que o deslocamento internacional também teve o papel de dialogar e fomentar as mudanças no aspecto cultural dos patrimônios genéticos de comunidades camponesas e tradicionais.
O marco dessa mudança acontece no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento da chamada Revolução Verde, que empurra novos paradigmas tecnológicos para o campo.
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É nesse período que programas e ações governamentais incentivam a produção de novas culturas alimentares no país "do café e da cana" em grandes extensões de terra. Por outro lado, esse olhar comercial para a agricultura desconsiderou os saberes e os territórios de uma diversidade de povos que já produziam de forma tradicional e sustentável.
O agrônomo Gabriel Fernandes, assessor técnico do Centro de Tecnologias Alternativas (CTA) da Zona da Mata de Minas Gerais, destaca que apesar de recente na história da agricultura, os impactos da Revolução Verde são preocupantes no aspecto ambiental, social e econômico.
É a partir dos novos paradigmas de produção que surgem debates como mudanças climáticas, aumento da fome e concentração de renda e de terras.
"A ideia da semente como mercadoria, como um bem que se compra na agropecuária é bem recente se comparado com toda a história da agricultura. Então foi depois da Segunda Guerra Mundial, com o início da Revolução Verde, que a gente foi vendo essa aproximação grande de empresas, das instituições de pesquisa, no sentido de coletar recursos genéticos que no geral estavam com as comunidades camponesas, comunidades tradicionais, e iniciar os programas de melhoramento genético", salienta o agrônomo.
Melhoramento para quem?
Apesar do uso do termo "melhoramento" por parte das grandes empresas do agronegócio, o próprio Gabriel lista uma série de desafios no processo tecnológico das sementes em laboratórios. O olhar comercial para as espécies acaba atropelando as perspectivas de bem biológico e cultural, por exemplo, durante os cerca de 12 mil anos da agricultura.
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As dificuldades encontradas por Manoel e Ivânia podem servir de exemplo para outras famílias que estão no campo. Gabriel ressalta que a constituição das leis e os direcionamentos de centros de pesquisas de muitos países ampliam esse distanciamento das sementes na perspectiva camponesa e tradicional.
"Há um conjunto de legislações no país que garantem o direito de propriedade para empresas e setores de pesquisas que desenvolvem as sementes sobre as novas variedades [em laboratório] que vão ser desenvolvidas. Então o direito da comunidade camponesa e da comunidade tradicional de produzir, selecionar, guardar e multiplicar suas sementes foi transferido para os setores que fizeram o melhoramento genético, na medida em que a agricultura industrial avançou com base em técnicas da agricultura convencional", ressalta Fernandes.
Impacto na mesa
Na conversa com o Brasil de Fato, Manoel Inácio e Gabriel Fernandes destacaram preocupações também com a soberania alimentar no planeta a partir das sementes crioulas que estão desaparecendo.
Um exemplo do desafio é a chamado como erosão genética, que significa justamente a perda de espécies, e consequentemente, da própria diversidade de alimentos para a população.
Na perspectiva do lucro, "semente boa" é aquela que impacta positivamente na balança comercial. Assim, patrimônios genéticos importantes de diversas culturas podem sumir dos pratos se não forem interessantes para as grandes indústrias alimentares.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a população mundial basicamente é dependente apenas de milho, arroz, feijão e trigo.
Gabriel Fernandes afirma que o modelo agroindustrial tem responsabilidade nessa erosão genética.
"Tivemos uma diversidade de espécies e variedades que em algum momento da história que já foi parte da nossa dieta. Essa seria uma alimentação muito mais diversa e nutritiva, com os alimentos fornecendo a energia que precisamos. Mas na medida em que a agricultura foi montada nessa ideia de grandes extensões de terras, tivemos uma redução do que consumimos", defende o assessor do CTA.
Sementes de resistência
Apesar dos desafios das últimas décadas, os povos camponeses e tradicionais desenvolvem diversas estratégias para proteger seus tesouros biológicos.
A dimensão épica da viagem de Manoel Inácio e Ivânia Alencar pode carregar um paralelo com práticas milenares de populações tradicionais que "espalharam" sementes pelos biomas ao longo do tempo.
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Além disso, no contexto contemporâneo, as chamadas feiras solidárias de sementes crioulas apoiam a troca de espécies entre roçados e comunidades.
Essa cultura do estoque está consolidada nos chamados bancos de sementes, que são os locais onde são armazenadas e organizadas as espécies para cada época de plantio. Os bancos podem ser familiares ou mesmo comunitários.
No estado do Ceará, por uma definição política, há uma variação que modifica o termo de "bancos" para "casas" de sementes. A nomenclatura tenta simbolizar o papel de um espaço que é importante não apenas para o armazenamento.
Andrea Souza, coordenadora de projetos da organização Esplar, com sede em Fortaleza (CE), defende que as casas (ou bancos) servem também para formações políticas, herança cultural entre gerações, além do desenvolvimento e articulações entre comunidades.
"Essa estratégia das casas é familiar, é ancestral. E se torna tão grande e viável para a preservação da biodiversidade do planeta e da manutenção da vida, da produção nas comunidades. Há também uma estratégia comunitária em comum em função do alimento e das formas de guardar essas fontes de alimentos", afirma Andrea.
Por isso, as propostas de resgate, conservação e multiplicação das sementes crioulas é uma das pautas agroecológicas no Brasil. Foi de ações sistematizadas que integraram o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), por exemplo, que em 2015 surgiu o Programa Sementes do Semiárido, realizado pelas organizações que compõem a ASA Brasil.
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Andrea destaca que o programa foi criado para apoiar a cultura de preservação das sementes crioulas, como a estruturação para o estoque, sistematização de espécies existentes e perdidas nas comunidades e a constituição de espaços para troca de conhecimentos sobre o assunto.
"O Sementes do Semiárido reafirma a necessidade de políticas públicas para a agricultura familiar, povos indígenas, comunidades quilombolas. Ou seja, todas as comunidades que trabalham na perspectiva da guarda, preservação e conservação, o Sementes do Semiárido trouxe a responsabilidade de articular, envolvido também com as organizações da sociedade civil nos estados, nos territórios, além dessa relação de animação, preservação e fortalecimento em torno das estratégias das sementes nas comunidades", afirma a coordenadora.
O Sementes do Semiárido foi finalizado em 2017 por falta de recursos do governo federal. Por outro lado, as pessoas chamadas como guardiãs e guardiões de sementes permanecem contribuindo para preservar as sementes crioulas em seus territórios.
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Um exemplo de ameaça irreversível desses patrimônios genéticos populares é a contaminação por sementes transgênicas. Para se ter uma ideia, o vento pode carregar o pólen de um espécie transgênica de uma propriedade e contaminar definitivamente as sementes crioulas em outra localidade.
Uma das atividades do Sementes do Semiárido era o teste de transgenia, realizado para certificar a condição crioula (natural) de uma guardiã ou guardião de sementes.
Bancos de Germoplasma
Outra dimensão importante para a conservação de sementes crioulas são os chamados bancos de germoplasma, que são estruturas que funciona como uma "arca de noé" de sementes vegetais, animais e de micro-organismo utilizados na agricultura.
Os bancos de germoplasma são formados pela identificação, caracterização e preservação de células germinativas de alguns seres vivos. As estruturas são capaz de manter as espécies por décadas.
No Brasil, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária possui mais de 160 unidades de bancos de germoplasma distribuídos pelo país, com a sede principal localizada em Brasília (DF).
Para se ter uma ideia da diversidade armazenada, são cerca de 4 mil espécies de milho e de 20 mil de arroz guardadas em bancos de germoplasma no Brasil.
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Gabriel Fernandes lembra que os bancos germoplasma estão previstos no Planapo, que teria um ciclo inicial para o período de 2016 a 2019.
"Visando promover, ampliar e consolidar processos de acesso, uso sustentável, gestão e manejo, recomposição e conservação de recursos naturais e ecossistemas, as ações do primeiro ciclo do Planapo levaram à proposição de nova regulamentação do procedimento para acesso, pelos agricultores(as) familiares organizados, aos bancos de germoplasma de pesquisa, nas diversas unidades da Embrapa", informa um dos trechos do Plano.
Entre mudanças de governo e direcionamento de políticas, Gabriel afirma que o diálogo com a Embrapa ficou mais difícil nos últimos anos. Um exemplo citado pelo assessor do CTA é a ausência de conselhos e outros espaços de interlocução entre as gestões dos bancos de germoplasma e a diversidade popular interessada na questão.
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Gabriel Fernandes ressalta que neste contexto as comunidades camponesas e tradicionais, por exemplo, ficam mais distantes de tentar resgatar alguma semente que tenha desaparecido em seu território e que possa estar em algum banco de germoplasma.
"Um desafio que vemos é que esses materiais guardados, até onde temos informação, circulam principalmente entre a Embrapa, outras instituições de pesquisa do Brasil e pesquisadores e instituições de outros países. Então existe uma circulação como se fosse um intercâmbio destas amostras entre pesquisadores do mundo inteiro que estão desenvolvendo variedades, procurando resistência a doenças, aumento da produção e assim por diante", ressalta.
"E o que entendemos como fundamental na soberania alimentar no país e no fortalecimento da agricultura familiar e das comunidades tradicionais, é que essa riqueza toda que está guardada na Embrapa, nos seus diferentes centros e bancos, possam também voltar para as comunidades. Por que falamos em voltar? Porque boa parte desse material que está é armazenado para conservação a longo prazo na Embrapa, em algum momento, se a gente conseguir rastrear isso, eles vieram das comunidades rurais, que desenvolveram e, ao longo do tempo, selecionaram e desenvolveram as formas de uso, a informação sobre como usar e como se alimentar, como produzir esses materiais. Então é esse caminho de volta que a gente entende que tem muito que avançar ainda", declara Fernandes.
O outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com Embrapa para consultar sobre as questões que foram levantadas neste texto. As perguntas abordaram os seguintes temas: dificuldades de diálogo entre a sociedade civil e a Embrapa para ter acesso aos bancos de germoplasma; falta de transparência sobre uso e apropriação desses materiais armazenados; além de reconhecimento da origem camponesa e popular desses materiais dos bancos de germoplasma.
Em nota de resposta, a Embrapa informou que é possível qualquer pessoal interessada consultar os acessos conservados em bancos e coleções. Para tanto, foi informado o portal Alelo (https://alelo.cenargen.embrapa.br/).
O texto cita que "as informações de passaporte dos acessos incluem nome científico, data de obtenção, local de origem e status biológico do material; dentre outros. A maioria dos materiais registrados no sistema são provenientes de processos de intercâmbio com instituições internacionais".
A Embrapa afirma que o patrimônio genético mantido em coleções ex situ [fora de seu habitat natural], pode ser acessado em instituições nacionais, geridas com recursos públicos, e as informações a ele associadas, "pelas comunidades e agricultores tradicionais, na forma do regulamento pelo artigo 32 do Decreto nº 8.772/2016". (O trecho do decreto segue abaixo)
A Embrapa também destacou que "atua não apenas na conservação ex situ das espécies, mas também na integração desta com a conservação in situ, complementares entre si". E que, portanto, "apenas uma conexão efetiva entre essas estratégias pode gerar resultados de impacto para a conservação e uso dos recursos genéticos pela sociedade".
A Embrapa também informou que mantém "diálogo com guardiões de sementes (representantes de agricultores) visando melhorar, organizar e reunir procedimentos para o atendimento as solicitações, por meio de projetos e iniciativas de capacitação na conservação e uso de recursos genéticos para a alimentação e agricultura".
A Empresa também afirmou manter um canal aberto para demandas referentes aos recursos genéticos registrados na sua plataforma Alelo (https://alelo.cenargen.embrapa.br/curadoria), destacando que "as solicitações recebidas pelos canais diretos de comunicação são repassadas para os responsáveis e tratadas de acordo com a Legislação Nacional, bem como normativos internos amparados pela mesma".
Também foi informado que os canais de canais de atendimento e relacionamento da Embrapa na internet estão abertos (https://www.embrapa.br/fale-conosco).
Trecho do Decreto:
Art. 32. As amostras do patrimônio genético mantido em coleções ex situ em instituições nacionais geridas com recursos públicos e as informações a elas associadas poderão ser acessados pelas populações indígenas, pelas comunidades tradicionais e pelos agricultores tradicionais.
§ 1º A instituição que receber o pedido deverá, em prazo não superior a vinte dias:
I - comunicar a data, local e modo de disponibilização do patrimônio genético;
II - indicar as razões da impossibilidade, total ou parcial, de atendimento do pedido; ou
III - comunicar que não possui o patrimônio genético.
§ 2º O prazo referido no § 1º poderá ser prorrogado por mais dez dias, mediante justificativa expressa, da qual será cientificado o requerente.
§ 3º Poderá ser cobrado exclusivamente o valor necessário ao ressarcimento dos custos para a regeneração ou multiplicação das amostras ou disponibilização das informações sobre o patrimônio genético.
§ 4º A disponibilização de amostra deverá ser gratuita quando efetuada por instituições nacionais mantenedoras de coleção ex situ que recebam recursos do FNRB.
O lado do agricultor
Manoel Inácio segue suas andanças de bicicleta. Ele nasceu em Cajazeiras, no semiárido paraibano. Quando criança pensou em ser padre e ao longo da vida conheceu diversos movimentos populares do campo.
O agricultor agroecológico segue defendendo seus sonhos também nas expressões artísticas de músicas e repentes criados. A viagem de 2006 resultou no chamado movimento Ciclovida.
A viagem em duas rodas pela América do Sul também está registrada em documentário, dirigido pelos irmãos Matt Feinstein and Loren Feinstein, em 2011.
Manoel Inácio defende a importância de todas as estratégias de resgate, preservação e multiplicação das sementes crioulas. Além de encarar milhares de quilômetros em duas rodas, ele defende políticas para o setor e desenvolve estratégias tradicionais e agroecológicas no local em vive.
Porém, o agricultor ressalta que o maior sonho das pessoas do campo é a liberdade e as condições favoráveis para conservar as espécies no melhor local possível. Na terra.
Edição: Sarah Fernandes