A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) foi multada pela Justiça do Estado de São Paulo por litigância de má-fé, uma prática judicial irregular que ocorre quando uma pessoa interpõe sucessivos recursos com a evidente e inconteste intenção de apenas prolongar um processo judicial para evitar cumprir a punição que lhe foi determinada pela Justiça.
O caso diz respeito a um processo (número 1072763-75.2020.8.26.0100) de indenização por danos materiais e morais que teve início no dia 13 de agosto de 2020. Trata-se de uma ação em que Zambelli é a ré, e os autores são os músicos Tom Zé e José Miguel Wisnik.
:: Wisnik, Tom Zé repudiam deputada bolsonarista por apropriação indevida de canção ::
O motivo: a parlamentar divulgou em suas redes sociais um vídeo de propaganda sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na região Nordeste. A peça publicitária era uma colagem de imagens de outdoors e de aglomerações causadas pelo ex-capitão do Exército, bem como de trechos de alguns discursos proferidos pelo mandatário, utilizando a música Xiquexique (de Tom Zé e Wisnik) como trilha sonora.
Zambelli jamais sequer entrou em contato com os músicos para informar que estava se apropriando da canção para fazer propaganda para Bolsonaro, quanto mais pagou qualquer quantia aos donos dos direitos autorais da obra pelo uso que fazia de sua propriedade intelectual. Resultado: foi processada.
No dia 10 de março de 2021, foi proferida, pelo juiz José Carlos de França Carvalho Neto, a sentença em primeira instância, condenando Zambelli a pagar R$ 65 mil de indenização por danos materiais e morais aos artistas prejudicados, além de seus custos advocatícios. Consta na decisão judicial:
Diante do evidente desrespeito ao direito moral dos coautores Tom Zé e Wisnik, consagrado no art. 24, inciso II, da Lei nº 9.610/98 (ato ilícito), e sendo presumido o abalo moral, impõe-se também o acolhimento do pedido de condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais.
Mas a deputada não considerou nada evidente, tampouco se conformou com a sentença, e interpôs uma apelação, levando o processo à segunda instância da Justiça de São Paulo, obrigando uma turma de três desembargadores a se debruçar sobre o caso, para novamente julgar a questão.
Em seu recurso, a congressista surpreendeu os magistrados com os argumentos de que fez uso. Ela não negou ter se apropriado, sem autorização, da obra de Tom Zé e Wisnik, mas disse que utilizou o vídeo que produziu com a canção apenas em suas redes particulares, pessoais, privadas.
"O vídeo não foi de forma alguma utilizado para engajamento político, pelo contrário, foi usado com intuito informativo", afirmou Zambelli aos desembargadores paulistas.
Disse mais: "Caso a veiculação fosse de interesse político, com objetivo de engajamento /campanha política, como Deputada Federal teria utilizado das redes sociais do partido para tal finalidade".
E ainda indagou: "Eu apenas quis enaltecer a região Nordeste com a música típica e demonstrar a relação do atual presidente com a região. Quer dizer que qualquer usuário das redes sociais que se utilize de músicas, trechos de livros e outros, está sujeito a condenação de direitos autorais?"
:: Leia também: Deputada Carla Zambelli recebe intimação para depor sobre atos antidemocráticos ::
Tudo isso consta nos autos do processo, que são públicos e podem ser consultados por qualquer cidadão. Resultado: perdeu de novo, por três votos a zero, em acórdão (decisão judicial de segunda instância) proferido pela Justiça do Estado de São Paulo no dia 27 de julho deste ano.
Os magistrados, no acórdão que proferiram, mostram incômodo diante dos argumentos apresentados pela deputada, classificados como "absurdos". Veja nos trechos abaixo:
- Não há nada de informativo no vídeo. É uma sucessão de imagens de outdoors e de aglomerações, bem como de trechos de alguns discursos. Houve produção e edição profissional do vídeo.
- Há menção à compra de cloroquina em um dos outdoors que apareceu no vídeo. A comunidade científica nunca considerou esse remédio eficaz contra o coronavírus que causa a COVID-19, o que também afasta a alegação de que o vídeo foi informativo e o que contribuiu para o desconforto dos coautores ao se verem associados a uma política pública evidente e sabidamente equivocada.
- Por ter natureza política, o vídeo precisava ter grande alcance, e a ré possui 5,5 milhões de seguidores nas três plataformas digitais. Assim, não havia motivo para veicular o vídeo nas plataformas do partido político a qual a ré pertence. Nesse contexto, alegar que o vídeo tinha finalidade privada é um absurdo.
O acórdão manteve o valor da indenização devida e dobrou a quantia que Zambelli deveria dispender a título de custos advocatícios para Tom Zé e Wisnik, com o intuito de desencorajar a deputada a interpor novo recurso judicial, a não ser que realmente tivesse causa ou argumento com algum valor jurídico.
Mas a deputada achou por bem continuar litigando, ou seja, oferendo novos recursos à Justiça e protelando o pagamento da indenização devida. No dia 30 de agosto deste ano, a advogada Karina Kufa, representante judicial de Carla Zambelli, protocolou um novo recurso contra o acórdão, chamado embargo declaratório, solicitando que os desembargadores voltassem a se debruçar sobre a questão.
De acordo com a causídica, o trecho da música indevidamente apropriado era muito curto (33 segundos, ocupando metade do vídeo veiculado). Além disso, haveria uma série de "omissões no acórdão embargado, por ausência de enfrentamento" dos argumentos apresentados pela deputada na ação judicial.
A advogada também disse que o valor de indenização decidido era muito alto, já que Zambelli não tinha ferido, em suas postagens, as regras do Twitter e do Facebook:
"Se desconsiderou aspectos que evidenciam a boa-fé da Embargante, como, por exemplo, o pleno respeito às normas das redes sociais em que foram veiculados o vídeo".
Neste ponto, a Justiça achou que bastava.
Em novo acórdão, publicado no Diário Oficial da Justiça no dia 7 deste mês e relatado pelo desembargador Miguel Brandi, foi imposta a terceira derrota consecutiva a Zambelli no caso, incluindo na decisão uma nova condenação, no valor de R$ 10 mil, por litigância de má-fé, ou seja, interposição de sucessivos recursos processuais sem qualquer chance de êxito ou cabimento jurídico, com a clara intenção de protelar a condenação e seguir ocupando as engrenagens da Justiça Pública.
A deputada ainda amargou receber, no bojo da condenação, uma série de reprimendas por sua defesa dos procedimentos de combate à pandemia de covid no Brasil. Leia trecho abaixo:
"A deputada associou a música dos embargados (Tom Zé e Wisnik) à política sanitária desastrosa do governo federal, o que, por si só, causa prejuízo injustificado a eles.
Com efeito, ninguém de boa-fé deseja ser associado à falta de vacinação, escândalos na compra (ou não) de vacinas (como revelado pela CPI da Covid-19), aglomerações desnecessárias durante uma pandemia que depende do contato social para alastrar-se e a cerca de seiscentos mil mortes, a grande maioria delas evitáveis."
Caso queira continuar litigando no processo, a legislação brasileira assim ainda permite que a deputada o faça, mas agora somente nos tribunais superiores da Justiça, em Brasília. Enquanto isso, correm juros e acréscimos por mora (atraso) nos valores por ela devidos.
Outro Lado
O Brasil de Fato entrou em contato com Carla Zambelli para que ela pudesse se manifestar sobre o caso. A reportagem enviou as seguintes perguntas à parlamentar:
- A senhora sofreu terceira derrota na Justiça de São Paulo, desta vez em embargo declaratório oposto a acórdão. O que achou da decisão?
- A senhora pretende levar o caso às instâncias superiores da Justiça brasileira?
- Em seu recurso de apelação à sentença de primeira instância, a senhora alegou que o vídeo veiculado não tinha fins de engajamento político ou interesse público, visto que foi veiculado em suas redes sociais particulares, e não nas redes sociais de seu partido político. Isso significa que nenhuma de suas publicações em suas redes sociais tem fins políticos, sendo meramente de cunho privado?
- Se sim, quem produziu o referido vídeo? Foi utilizado pessoal de gabinete para produzir o vídeo alegadamente privado? Se sim, o fizeram em horário de trabalho e utilizando as dependências da Câmara dos Deputados e equipamentos de informática de propriedade pública?
Até a publicação desta reportagem, não houve resposta. Caso a congressista se manifeste, suas declarações serão incluídas nesta página.
Edição: Leandro Melito e Vinícius Segalla