“Não tenho dúvidas sobre a pertinência técnica do uso da expressão genocídio em relação aos povos indígenas. Não só o Estado, como as pessoas que agem em nome dele devem ser investigadas, processadas, julgadas e, se for o caso, punidas. As provas são abundantes de que a pandemia foi uma janela de oportunidade para levar adiante um plano pré-existente de genocídio.”
A análise é da jurista Deisy Ventura, uma das maiores especialistas no estudo da relação entre pandemias e direito internacional.
O Brasil já foi alvo de medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanas (CIDH) em relação ao tratamento reservado às comunidades indígenas durante a pandemia. No Supremo Tribunal Federal (STF), também há um processo relativo à resposta da União à crise sanitária.
Autora do livro Direito e saúde global: o caso da pandemia de gripe A - H1N1 [Editora Outras Expressões], Ventura conversou com o Brasil de Fato em meio à polêmica sobre a retirada do termo genocídio do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid.
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A expressão “genocídio dos povos indígenas” constava em uma minuta do relatório vazada à imprensa no início da semana, mas foi retirada na versão final do texto, apresentada ao Senado nesta quarta (20).
Deisy Ventura é uma das editoras do boletim Direitos na Pandemia, do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA), citado no relatório final da CPI, que mapeou e analisou normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil.
Entre as evidências da intencionalidade do governo brasileiro, estaria o veto de Jair Bolsonaro (sem partido), em 2020, a um projeto que garantiria acesso universal aos indígenas à água potável; distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies; oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidades de terapia intensiva (UTI); aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea; e distribuição de materiais informativos sobre a covid.
O Congresso derrubou os vetos presidenciais em agosto do ano passado.
Ao citar o respaldo técnico do uso do termo genocídio, Ventura se refere ao Estatuto de Roma, de 1998, do qual o Brasil é signatário com outros 121 países.
Esse estatuto rege o funcionamento do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, nos Países Baixos, que julga suspeitos de cometer crimes graves contra os direitos humanos, com alcance internacional.
Em seu artigo 6º, está descrito o crime de genocídio:
“Entende-se por genocídio qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.”
Os mesmos critérios, com diferenças sutis de redação, estão expressos na Lei 2.889/1956, que define o crime de genocídio na legislação brasileira. A pena prevista no Código Penal é de 20 a 30 anos de prisão.
Na boca do povo
Propaganda de medicamentos ineficazes, negacionismo sobre a gravidade do coronavírus, desestímulo às medidas de isolamento, deboche às vítimas, indícios de corrupção na negociação de vacinas.
Essas são algumas das críticas mais frequentes à postura do governo Bolsonaro diante da pandemia de covid-19.
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A escalada de mortes causadas pelo SARS-CoV-2, especialmente nos primeiros meses de 2021, popularizou o uso da palavra “genocida” entre setores da oposição.
Das faixas e cartazes de militantes, o termo passou a ser adotado por diferentes organizações em denúncias contra Bolsonaro no TPI.
Antes mesmo da pandemia, a “incitação ao genocídio” dos povos indígenas já era objeto de denúncia por parte do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e da Comissão Arns em Haia, em novembro de 2019.
As organizações citavam, por exemplo, os entraves à demarcação de terras e a conivência do governo federal com o avanço do fogo na região amazônica.
“Os incêndios (...) associam-se à disputa – frequentemente violenta – pela terra para empreendimentos agropecuários, grandes obras de infraestrutura, grilagem, garimpo e exploração de madeira. Tais atividades exercem grande impacto sobre a floresta e os povos que a habitam e vêm sendo ora estimuladas ora negligenciadas em seu potencial de degradação”, diz a denúncia, em avaliação no TPI.
Em meio à crise sanitária, o governo Bolsonaro voltou a ser denunciado por genocídio em Haia pela Rede Sindical Brasileira UNISaúde, em julho de 2020; pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em agosto de 2021; e pelo Movimento Brasil Livre (MBL), em setembro de 2021.
Origem e abrangência do termo
A palavra genocídio foi cunhada em 1944 pelo advogado judeu polonês Raphael Lemkin, que teve parte de sua família exterminada pelos nazistas no Holocausto. É uma junção do termo grego genos (raça ou grupo) com o latino cedere (matar).
“O grande debate que está colocado hoje não é o genocídio em relação ao conjunto da população brasileira. O que temos é o debate sobre os povos indígenas e o questionamento da Coalizão Negra [por Direitos] sobre o genocídio da população negra, que também não se limita à pandemia”, especifica Deisy Ventura.
“Em relação à população em geral, o que temos [no Brasil] é um crime contra a humanidade, no sentido do artigo 7º, 1, letra k, [do Estatuto de Roma]. Não há dúvida sobre a prática de atos desumanos, que causaram a morte de centenas de milhares de pessoas, que poderiam ser evitadas a partir da adoção de medidas preventivas elementares”, acrescenta.
A expressão “crime contra a humanidade” aparece no relatório final da CPI da Covid.
Ventura lembra que o fato de ter havido resistência à estratégia do governo Bolsonaro diante da pandemia não significa que ele será absolvido desse crime.
“A estratégia de ‘imunidade de rebanho’ por contágio foi implementada pelo governo federal com a resistência de outros poderes, de governadores e prefeitos. Mas essa resistência não esconde a intenção do governo federal, que jamais negou sua tese”, enfatiza a especialista.
“As evidências são enormes. Nem de longe o uso das expressões genocídio e crime contra a humanidade são políticos. É um uso técnico, absolutamente pertinente.”
Na última semana, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne 250 organizações, entregou um dossiê ao relator da CPI pedindo que Bolsonaro fosse indiciado pelo genocídio da população negra.
Historiador e coordenador da Coalizão, Douglas Belchior diz que a negação do uso do termo reitera uma lógica racista.
“É de se lamentar a falta de coragem do Parlamento brasileiro. Ao retirar [o termo] e não fazer essa afirmação, reitera-se a lógica de que povos negros e indígenas não são detentores de humanidade o suficiente para que suas mortes em massa, decorrentes da ação do Estado, sejam consideradas genocídio”, analisa.
“Racismo é isso: a desumanização dos sujeitos. É isso que fazem historicamente com os povos indígenas e com o povo negro”, acrescenta.
A negação como escolha política
O uso do termo, que dividiu os senadores da CPI, foi objeto de um editorial do jornal O Globo, segundo o qual seria “abuso” acusar Bolsonaro de genocídio.
O veículo afirmou esta semana que a palavra genocídio é “daquelas que devem ser usadas com a maior parcimônia, sob pena de banalizar o mais hediondo dos crimes.”
Para o jornal O Globo, apesar das acusações feitas por Renan Calheiros [MDB-AL], não houve comprovação de que o governo teve “intenção de destruir, no todo ou em parte”, um grupo étnico específico.
Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de estudos sobre necropolítica, Dennis de Oliveira questiona os interesses de quem busca reduzir ou limitar a amplitude do conceito.
“Nessa visão preciosista, só quando há um regime assumidamente de segregação, como o nazismo, na Alemanha, é considerado genocídio”, analisa. “Entretanto, toda a narrativa que o governo atual realizou, tanto em relação aos povos originários, quilombolas, em meio à covid, configura genocídio: o descaso, a não adoção de políticas de proteção”, exemplifica Oliveira.
Entrevistados afirmam que os movimentos populares e organizações de direitos humanos têm o dever de denunciar internacionalmente violações do governo brasileiro e nomeá-las conforme lhes pareça adequado. Cabe às instâncias especializadas investigar e julgar se o crime de genocídio, de fato, ocorreu.
Para o professor da USP, as palavras usadas para descrever o processo vivido no Brasil durante a pandemia devem estar à altura das atrocidades e das consequências das escolhas de Bolsonaro.
“O que se quer, na verdade, é apagar que esse projeto econômico neoliberal tem, no seu limite, uma prática genocida. Por isso, esse preciosismo”, afirma Oliveira, ao se referir ao editorial do jornal O Globo.
“Falta de coragem”
Na denúncia feita ao TPI, além de acusar Bolsonaro pelas mortes de indígenas na pandemia, a Apib diz que “o desmantelamento das estruturas públicas de proteção socioambiental e aos povos indígenas desencadeou invasões nas Terras Indígenas, desmatamento e incêndios nos biomas brasileiros, aumento do garimpo e da mineração nos territórios.”
O Brasil de Fato entrou em contato com a Apib para comentar a retirada do termo do relatório final da CPI, mas a entidade preferiu não se pronunciar.
Douglas Belchior lembra que o movimento negro reivindica o uso do termo genocídio desde a década de 1950. No contexto da pandemia, ele cita como exemplos de prática genocida a precarização do Sistema Único de Saúde (SUS) e a não priorização da vacina a quilombolas em vários estados.
“A lógica genocida do Estado, que já existia, permaneceu e foi elevada à proporção da pandemia”, diz o historiador. “O genocídio está configurado nos números finais: a população negra foi a mais afetada e foi a maior parte dos mortos.”
Pretos e pardos lideram, historicamente, as estatísticas da população carcerária e de jovens assassinados no Brasil.
Um levantamento realizado pela Rede Nossa São Paulo entre janeiro e julho de 2021 mostrou que, entre a população negra, 47,6% das mortes ocorridas no período foram em decorrência da covid-19; entre a população branca, foram 28,1%.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Comissão Arns, responsável pela denúncia contra Bolsonaro por “incitação ao genocídio” em Haia antes mesmo da pandemia.
A Comissão optou por não se posicionar na reportagem, alegando que há divergências entre os membros sobre o uso da palavra genocídio.
Responsabilização internacional
Para que seja aberta uma investigação, o gabinete da Procuradoria do TPI deve analisar se existem elementos para constatar a existência de crimes suficientemente graves e que sejam de competência do Tribunal; se existem processos nas jurisdições nacionais; e se a abertura de uma investigação serviria aos interesses da Justiça e das vítimas.
Questões relativas a políticas públicas internas a cada país, por exemplo, não cabem ao Tribunal.
A intencionalidade também é um requisito para qualquer julgamento no Tribunal de Haia – e está expressa no discurso presidencial e de outras autoridades, segundo Ventura.
Como apontou a especialista, para haver condenação, o genocídio não precisa ser necessariamente “consumado”. Basta “incitar, direta e publicamente, à sua prática, ou tentar cometer o crime mediante atos que contribuam substancialmente para a sua execução, ainda que não se venha a consumar devido a circunstâncias alheias à sua vontade.”
Um dos argumentos mais frequentes para justificar as posturas negacionistas de Bolsonaro é que, ao início da pandemia, não havia consenso na comunidade científica sobre o comportamento do vírus e as formas de prevenção.
“No início, tínhamos menos informação, mas já havia orientações sobre a pandemia consagradas pela sociedade científica, pela OMS [Organização Mundial da Saúde], que ele também desprezava. Então, não há como dizer que não houve dolo”, ressalta Dennis de Oliveira, estudioso da necropolítica.
“Em relação à vacina, o governo só comprou após pressão social. Bolsonaro continua sendo contra o uso de máscaras, contra o isolamento social, mesmo que já se tenha ciência há muito tempo de que são medidas importantes”, completa.
Para o professor da USP, a posição do governo federal sobre o auxílio emergencial escancara a opção por uma política de morte.
“Bolsonaro foi contra a concessão de um auxílio emergencial – depois, aceitou pagar R$ 200. Os R$ 600 só foram aprovados por insistência do Congresso. Então, o que ele colocou para o trabalhador informal da periferia foi: ou trabalha e se expõe ao coronavírus, ou morre de fome. É uma prática genocida”, define.
Estudiosa da relação entre pandemias e direito internacional, Deisy Ventura lembra que a compra de vacinas e vários outros “atos foram praticados pela União apenas após decisões judiciais determinando sua obrigatoriedade – muitas vezes, de forma tardia, incompleta.”
Ela concorda que a falta de consenso científico sobre as medidas de prevenção, ao início da pandemia, não absolve o governo brasileiro. “Justamente por não termos informações suficientes sobre a doença, deveríamos ter tomado medidas preventivas mais conservadoras”, pontua.
“Quando o número de mortes sobe, causando colapso, e o governo não muda sua estratégia, sua intencionalidade é reiterada. É diferente do que aconteceu nos EUA, no Reino Unido, na Holanda, onde, diante dos resultados catastróficos, houve uma correção de rumos.”
Ventura finaliza chamando atenção para os interesses por trás da recusa ao termo genocídio.
“Há muita gente opinando sem conhecer a jurisprudência penal internacional nem as provas que existem no caso brasileiro, simplesmente usando de um suposto temor da banalização do uso dessas expressões”, alerta.
“Parece haver forças importantes no Brasil que não querem falar de genocídio hoje porque não descartam membros do governo federal como alternativa eleitoral no ano que vem. Isso não tem nenhuma relação com a técnica, mas com uma intenção de garantir impunidade”, completa a especialista.
Edição: Leandro Melito