Camarão? Foi Deus quem criou. Tudo, tudo, tudo... foi o bom Deus quem criou
Baía da Traição é uma pequena cidade no litoral norte da Paraíba, quase divisa com o Rio Grande do Norte. O município todo é reserva do povo indígena potiguara. Só a área urbana não é terra indígena.
Potiguara é uma palavra da língua tupi que significa “comedor de camarão”. Mas em outros tempos, como outros povos indígenas, eles comiam também carne humana. Comer inimigos fazia parte da cultura indígena, como um ritual.
A primeira vez que europeus chegaram lá foi em 1501, numa expedição portuguesa de que Américo Vespúcio fazia parte e ele mesmo relatou em carta a Dom Manuel I, rei de Portugal.
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Segundo o navegador, o navio em que estava ancorou perto da praia e jovens indígenas acenavam para os marinheiros. Mandaram quatro homens numa canoa, para negociar com elas. Quando desembarcaram na praia, os quatro foram trucidados e comidos pelas indígenas. Daí os expedicionários deram ao lugar o nome Baía da Traição.
Hoje, a cidade, que já teve prefeitos potiguaras, é um lugar bonito e pacífico. Frequentei bastante a cidade, onde amigos meus mantinham um restaurante e uma pousada na praia. Gostava da cidade e dos potiguara, visitei algumas das sete aldeias do município e conversei bastante com eles.
Outro amigo que vivia lá, trabalhando com os potiguara, era um antropólogo apelidado Lula. Era e deve continuar sendo um bom sujeito - não tive mais notícias dele.
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Esse meu amigo era casado com uma moça muito católica. Tiveram uma filha, de quem não me lembro o nome, mas vamos dizer que era Joana.
Desde quase bebê, Joana ouvia a mãe falar bastante de Deus, criador de todas as coisas, um ser cheio de bondade.
Água de coco? Foi Deus quem criou, assim como o próprio coco, dizia a mãe.
Camarão? Foi Deus quem criou. Tudo, tudo, tudo... foi o bom Deus quem criou.
Quando tinha uns cinco anos de idade, a Joana passou uma noite bem ruim, com uma nuvem de muriçocas em sua casa.
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Muriçoca é o nome nordestino do pernilongo. Na Amazônia, é carapanã.
Pensativa, a Joana questionou a mãe:
-- Mainha... Foi Deus que criou a muriçoca?
Meio constrangida, a mãe respondeu:
-- Foi sim, Joana...
A menina pensou mais um pouquinho e falou:
-- Mainha... Então Deus não é tão bom como a senhora fala não!
*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Daniel Lamir