Perfil

Motorista de Uber, evangélico e desiludido com Bolsonaro, Beré articula partido antirracista

“Temos que parar de decidir quem vai viver e quem vai morrer pela cor da pele”, diz presidente do coletivo Raízes em MG

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Beré Silva tem 43 anos e foi um dos primeiros motoristas de aplicativo em Minas Gerais - Arquivo pessoal / Montagem

Denivaldo da Silva, conhecido como Beré, é motorista de aplicativo há seis anos em Belo Horizonte (MG).

A necessidade de reivindicar direitos para a categoria o aproximou, pouco a pouco, da política.

Referência entre os pares em Minas Gerais, Beré também é presidente estadual do coletivo antirracista Raízes, criado há um ano.

O objetivo é formar, em 2022, um partido de mesmo nome para disputar eleições pelo Brasil.

Beré Silva conversou com o Brasil de Fato sobre sua descoberta como ativista e a urgência de protagonismo negro e indígena na política.

Da expectativa à realidade

Casado há 14 anos e pai de dois filhos, Beré foi instrutor de trânsito e trabalhou como segurança e chofer particular antes de se cadastrar nos aplicativos Uber e 99.

“O início da Uber foi um sonho para muita gente, especialmente para quem ama trânsito, ama lidar com pessoas. Era uma coisa muito inovadora, de primeiro mundo”, lembra.

Como havia menos motoristas e o preço do combustível não era atrelado ao mercado internacional, os ganhos mensais dele em 2015 eram maiores que hoje.

“Quando começamos a usar os aplicativos, aqui em Belo Horizonte custava R$ 2,59 o litro da gasolina. Hoje, está R$ 6,80. E as tarifas dos aplicativos continuam as mesmas – algumas até baixaram”, lamenta.

“Toda a expectativa, aquela fantasia que a gente tinha, acabou se perdendo. Isso foi, aos poucos, nos decepcionando.”

Os aplicativos se apresentavam como alternativa de renda extra, mas logo se tornaram uma tábua de salvação para milhares de desempregados, em plena recessão econômica.

“O motorista de aplicativo não é mais um autônomo: passou a ser uma profissão, uma solução. Tanto o poder público quanto as plataformas precisariam ter acompanhado essa evolução mais de perto”, analisa.

Na visão dele, o individualismo é um dos entraves para a conquista de direitos pela categoria.

“Isso acontece muito com o motorista de aplicativo: ele se sente o dono do carro, o próprio patrão, não quer se organizar, ajudar ninguém. Mas, quando ele é sequestrado, roubado, logo desconstrói tudo aquilo – mais pelo lado da revolta que da consciência.”

O desafio da organização

O primeiro assassinato de um motorista de aplicativo em Belo Horizonte revoltou a categoria e, por linhas tortas, consolidou Beré Silva como liderança no município.

Assim que souberam da notícia, os motoristas se reuniram na Praça do Papa, no bairro das Mangabeiras, para debater formas de expressar sua indignação.

Enquanto alguns sugeriam vandalizar os prédios da Prefeitura e da Câmara Municipal, Beré foi chamado a fazer ponte entre as autoridades públicas e os manifestantes.

Desde então, ele vem buscando canais de interlocução na Câmara.

“Acabei me tornando referência não só por ser um dos primeiros, mas porque sou bastante comunicativo e sempre estive pronto a ajudar. Então, meu nome acaba sendo lembrado e falado”, conta.

Hoje, existem em Belo Horizonte cinco associações de motoristas particulares e de aplicativo. Beré prestou consultoria a algumas delas e dialoga com todas, mas decidiu não fazer parte de uma organização específica para continuar sendo referência para o conjunto da categoria.

“Por não termos uma ferramenta oficial de segurança, fazemos muito uso do Whatsapp. E acabamos nos encontrando em eventos, acidentes, várias situações em que encontramos um parceiro ou outro, e vamos formando grupos, fazendo amigos”, relata Beré.

“A gente está tentando se organizar o máximo possível, mas às vezes esbarramos na burocracia do poder público e nas plataformas, que não estão nem aí para o motorista: visam apenas os lucros e o sobe-desce da Bolsa de Valores.”


Casado há 14 anos, Denivaldo da Silva é pai de Rafael, 11, e Maria Eduarda, 8 / Arquivo pessoal

Política partidária

A frustração com o resultado de seus esforços “de fora para dentro” no Legislativo fez com que Beré desse um passo adiante. Em 2020, ele se candidatou a vereador pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

A escolha da legenda não foi por afinidade ideológica, mas por indicação de amigos. O PTB não tinha vereadores eleitos na cidade e mostrava-se aberto à formação de chapas com novatos.

Entre mais de 2 mil candidaturas e com investimento modesto, Beré Silva fez apenas 175 votos e não conseguiu se eleger. Segundo ele, a categoria não foi capaz de se unir em torno de uma única chapa.

O desempenho eleitoral não tirou sua convicção de que só há transformação por meio da política.

“Muitas pessoas não entendem que a política define nossa vida, no dia a dia. No cafezinho que você toma, tem política ali, para definir o valor da saca de café, como o agricultor vai produzir, qual vai ser o incentivo em época de seca, qual vai ser o valor de importação”, exemplifica.

“Então, você tem muito mais força com um deputado federal, de barrar uma PEC que vai prejudicar os motoristas de aplicativo, do que com 500 mil motoristas na porta do Planalto. A polícia vai virar, tacar gás lacrimogêneo, por ordem dos que estão lá dentro como políticos, e a gente não vai conseguir nossas metas.”

Antirracismo

Aos 43 anos, Beré Silva nunca se preocupou em escolher entre esquerda e direita: votou duas vezes no ex-presidente Lula (PT) e, em 2018, ajudou a eleger Jair Bolsonaro (então no PSL).

“Nunca tive político de estimação. Bolsonaro prometeu uma mudança, com ministérios mais técnicos, e acabei votando. Infelizmente, as máscaras caíram e vimos que foi apenas um teatro. Eu não o apoiaria em uma próxima eleição, de jeito nenhum.”

O motorista é evangélico há três décadas, diz ser contra todo tipo de intolerância e lamenta que sua religião seja vista como ameaça a outras crenças.

“O que mais falta hoje é empatia. Independentemente da religião, do lado político, do time que torce, se uma pessoa foi atropelada na rua, você tem que socorrer, ajudar.”

Beré ressalta que as condições de vida pioraram no atual governo, mas ainda não decidiu voto para 2022.

“Faltou muita atuação na política pública, para as pessoas de baixa renda. Estamos vendo cortes na educação, a mobilidade está cada dia pior, o preço do combustível só sobe, mas muitos continuam calados ou batendo palma, gastando gasolina para fazer motociata”, critica.

“Eu considero que são iludidos, que não querem enxergar que estamos sendo cerceados em nossos direitos. Tem pessoas da iniciativa privada e pública ganhando com isso, e quem está perdendo é o povo, o cidadão comum.”

Além das mobilizações em defesa da categoria e da desilusão com Bolsonaro, o processo de politização de Beré Silva passa pela compreensão do racismo como elemento estrutural do Brasil.

“Até chegar aos 12 ou 13 anos, a gente não tem a percepção da gravidade. Muitas vezes você é tratado como inferior, pela cor da pele, mas age como se fosse uma coisa normal. Mas, quando chega certa idade, você precisa se defender, saber do seu lugar e das suas responsabilidades, e aí começa a perceber o quanto somos cerceados do direito de ir e vir, de se expressar”, relata.

O motorista lembra de injúrias sofridas desde os tempos de escola, e já foi vítima de comentários racistas de colegas e passageiros.

“Como motorista do Uber Black [categoria de luxo], já ouvi de um cliente: ‘Nossa, mas um negro dirigindo um Fusion? Esse carro é seu?’ Sim, esse carro é meu, eu disse. Consegui trabalhando”, lembra Beré.

“A gente fica muito agradecido pelo apoio de algumas pessoas que não são negras, mas elas podem tentar o máximo possível que nunca poderão sentir a nossa dor. O negro tem a própria dor. Não é se vitimizar, não é mimimi. É uma dor que não tem como mensurar.”

Das redes ao TSE

A tecnologia cumpriu papel fundamental nesse processo. Primeiro, porque muitas situações que antes passavam despercebidas, hoje são gravadas e espalhadas nas redes sociais, gerando comoção.

A internet também facilitou os espaços de debate entre pessoas negras e indígenas de diferentes partes do Brasil.

Foi em um grupo no Facebook, chamado “Economia negra”, que nasceu o coletivo Raízes – hoje, um partido político em formação.

“A gente não deve agradecer nada a esse período de pandemia, mas conseguimos mobilizar uma coisa que estava adormecida. Quando veio o lockdown, todo mundo se enclausurou em casa, sem poder sair, e a rede social foi uma ferramenta que manteve muitas pessoas vivas e ativas”, conta.

O grupo que deu origem ao Raízes tem mais de 10 mil membros.

“Em uma simples conversa, alguém comentou que não havia nenhum negro no governo federal. Aí, fomos olhar o primeiro escalão do governo de São Paulo, de Minas, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Paraná, Rio de Janeiro, e foi difícil encher uma mão. Dava para contar nos dedos.”

Revoltados com os números, eles criaram um novo grupo, desta vez no Whatsapp, para avançar na discussão e decidir o que fazer a partir daquele levantamento.

“Paramos e pensamos: nós, como 56% da população, não participamos de decisão nenhuma. Temos que mudar isso. Os partidos de esquerda estão aí há 30 anos, já deveriam ter nos representado, e não nos representam. Os partidos de direita nunca irão representar, porque são, literalmente, de direita. Então, por que não formar nosso próprio partido?”, lembra o motorista.

Hoje, o coletivo Raízes está em 17 estados, com representação principalmente nas capitais. Eles escreveram um manifesto e estão em fase final de revisão do estatuto.

“Queremos ocupar realmente as Câmaras Municipais, as Assembleias Legislativas, a Câmara Federal, o Senado. E também temos intenção, daqui a seis ou dez anos, de disputar a cadeira da Presidência”, admite Beré.

“Não estamos tratando de ideologia, mas de realidade. Qual a realidade do negro no Brasil hoje? Como é tratado na segurança pública, na saúde? Estamos no Outubro Rosa: se buscar as estatísticas, você vê que a maioria das pessoas que estão morrendo de câncer de mama são mulheres negras, porque não têm acesso à saúde como deveriam. Se pegar o índice de assassinatos de jovens, a maioria são negros de periferia.”

O motorista de aplicativo cita, comovido, o caso João Alberto, trabalhador assassinado por asfixia por seguranças da Rede Carrefour, em Porto Alegre (RS), em novembro de 2020.

“Nós não somos iguais, porque você tem o seu DNA e eu tenho o meu. Somos seres humanos, e temos que estar na maior equidade possível. Eu tenho que ter acesso às mesmas coisas que você. Eu tenho que ter a oportunidade que você de ser o que eu quiser.”

Após a revisão do estatuto, os integrantes do Raízes pretendem fazer o registro do CNPJ. O custo estimado é de R$ 30 mil, que eles esperam cobrir por meio de vaquinhas.

Assim que o CNPJ for aberto, começará a fase de coleta de assinaturas. São necessárias 500 mil, em nove estados da federação, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“Com o relaxamento do distanciamento social, vamos partir para o cara a cara. Vamos buscar esse apoio nos metrôs, periferias, escolas de samba, campos de futebol”, prevê.

“Somos um partido de políticas públicas para o povo indígena, o povo preto, de periferia, que é realmente a maior camada da sociedade.”

Beré Silva ressalta o cansaço de negros e indígenas, à espera de políticas de equidade feitas por políticos brancos.

“Eu não consigo mais enxergar um ministro do Meio Ambiente não sendo, no mínimo, descendente de povos originários. Porque, em termos de preservação, sustentabilidade, lá estão nossos professores, nossos caciques, que estão sendo cada dia mais assassinados, tendo suas terras tomadas. E também não dá mais para pensar também em um ministro da Cultura que não conheça de várias culturas”, exemplifica.

“Nós temos que parar de decidir quem vai viver e quem vai morrer, quem vai estudar e quem não vai estudar, pela cor da pele”, finaliza Beré.

Edição: Leandro Melito