Na última semana, os principais portais de notícias do país deram destaque a uma mensagem atribuída ao Comando Vermelho (CV) exigindo a redução dos preços dos combustíveis em Manaus (AM) no prazo de uma semana. Caso contrário, os postos seriam incendiados.
O suposto “salve” - como são chamados os recados originados na cúpula das organizações criminosas - foi publicado na quarta-feira (27) em uma rede social por um homem que seria líder do CV, grupo carioca que domina o tráfico de drogas na capital do Amazonas, uma das mais violentas do país.
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De lá para cá, os preços continuaram nas alturas, com o litro da gasolina chegando a R$ 7 na região metropolitana de Manaus, sem qualquer ação violenta por parte da facção.
Especialistas ouvidos pelo Brasil Fato desconfiam da veracidade da mensagem e alertam: ela pode ser uma fake news útil ao processo de militarização da segurança pública no Amazonas, considerado ineficaz no combate ao crime.
"Fake salve"
“Parece mais um fake salve, o que tem acontecido muito. Não há nenhum precedente do crime explodindo postos de gasolina. Essas organizações não têm uma prática desse grau de violência e de espetáculo”.
A análise é de Fabio Candotti, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Segundo ele, ações violentas dos grupos criminosos brasileiros costumam se dirigir às autoridades de estado, não à população em geral.
Na conta do pesquisador, que monitora a atuação do crime organizado há 15 anos, não seria a primeira vez que uma ameaça falsamente atribuída ao CV deixa a população em alerta.
"Em junho deste ano houve um ‘salve’ do Comando dizendo que eles iam botar fogo em ônibus com criança e idoso dentro. Isso não faz sentido, inclusive porque as pessoas que andam de ônibus são os parentes dos integrantes das facções”, lembra.
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Outro estudioso da criminalidade urbana, o professor de Geografia da Universidade Estadual do Pará (UEPA) Aiala Couto, autor do livro “A Geografia do Crime na Metrópole: das redes ilegais à ‘territorialização perversa’ na periferia de Belém”, também desconfiou das manchetes que anunciavam a ameaça.
“Há a possibilidade de que algum integrante do grupo [Comando Vermelho] possa estar disparando essa informação de maneira equivocada como forma de tentar mostrar aproximação com o povo, sobretudo defendendo os interesses da população. E pode ser que seja muito mais um texto fake’”, pondera
Em nota, o Sindicombustiveis-AM, que representa os empresários do setor, afirmou que não viu veracidade na ameaça. A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas informou que não emitirá posicionamento sobre o caso.
Apoio popular?
Nas redes sociais, a suposta ameaça contra o aumento dos combustíveis gerou manifestações favoráveis ao Comando Vermelho, deixando claro a insatisfação popular com a incapacidade do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) de controlar o preço dos insumos.
“Até que enfim alguém para nos defender”, “Se os governantes só querem roubar, alguém tem que defender os trabalhadores” e “A bandidagem está tendo mais consideração com o povo do que os governantes”: essas foram algumas das reações de internautas registradas pelo Brasil de Fato.
Candotti descartou, entretanto, uma estratégia do CV para ganhar popularidade. Para justificar o posicionamento, ele cita os ataques contra delegacias, escolas, praças, obras públicas e agências bancárias deflagrados pela organização criminosa em junho deste ano em pelo menos seis cidades do Amazonas.
“Se em junho, quando não morreu nenhum policial, nós tivemos a vinda da Força Nacional para cidade, imagina se passassem a explodir postos de gasolina? A gente ia ter o Exército andando nas ruas da cidade. Então se isso acontecesse, de quem é o interesse? Quem ganharia com isso?”, questiona.
Já Couto não descarta a possibilidade de que a repercussão positiva da suposta ameaça possa motivar a execução de ações semelhantes, validando uma resposta ainda mais violenta das polícias.
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“Devemos observar isso de maneira crítica para não reproduzirmos equivocadamente uma manchete que pode acabar, inclusive, dando a ideia para que de fato o grupo venha a fazer uma ação mais violenta em termos de tentar mostrar força, inclusive espalhando para outras capitais”, coloca.
Membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas, Candotti também criticou a cobertura da imprensa. Para ele, o espaço dado ao caso foi desproporcional à sua relevância, contribuindo para justificar a escalada - já em curso - da repressão policial nas periferias.
“O jornalismo policial é problematizado há mais de um século como um discurso que colabora para a discriminação de grupos subalternos e racialmente marcados, através da transformação de pequenos acontecimentos em grandes escândalos e da reprodução da perspectiva policial”.
Tiro pela culatra
Em 2018, o jornalista Wilson Lima (PSC) deixou o programa policialesco que apresentava na TV A Crítica, afiliada da Rede TV em Manaus, para ocupar pela primeira um cargo eletivo, o de governador do Amazonas.
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Prometendo reduzir a criminalidade com base na repressão, foi eleito no segundo turno com quase 60% dos votos, à frente de Amazonino Mendes, velho conhecido do eleitorado por se alternar nos cargos de governador e de prefeito de Manaus desde a década de 80.
Após o massacre de 2019 que deixou mais de 50 presos mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, Lima impôs um novo regime de disciplina como forma de limitar o poder das facções dentro dos presídios.
“A maioria dos homens presos estão enjaulados nas celas 22 horas por dia. Todos os dias, são revistados pelados com armas letais e menos letais. Durante as visitas, familiares estão sendo profundamente humilhadas”, descreve Candotti.
Mas, para o pesquisador, que acompanha casos de violações de direitos humanos nas unidades prisionais, o tiro saiu pela culatra. “E o que isso produziu? Inicialmente foi a unificação em torno de uma facção só, o Comando Vermelho”, explica.
“Eles se unificam em 2020 com o discurso de que a situação das prisões estava muito pior. Por outro lado, a gente tem denúncias de como a administração incita a disputa entre facções dentro dos presídios, que rebatem nas ruas”, complementa.
“Facções não são inimigo número um”
Sem especular sobre a real autoria da ameaça atribuída ao CV contra postos de combustíveis, Candotti prefere denunciar os efeitos negativos da militarização da segurança pública no estado.
“Nós temos um processo de encarceramento massivo que pode ter atingido em 20 anos mais de 100 mil pessoas na cidade. Indiretamente, contando com as famílias, 200 ou 300 mil pessoas. Ou seja, a gente pode estar com um quinto da cidade tendo passado pela experiência do encarceramento direta ou indiretamente”, calcula.
Ironicamente, para Candotti, os mesmos agentes públicos que promovem a militarização da segurança pública, em muitos casos, são acusados de envolvimento em graves ilegalidades.
Em julho deste ano, uma investigação da Polícia Federal (PF) ligou o coronel da Polícia Militar e então secretário de Segurança Pública do Amazonas, Louismar Bonates, a um grupo de extermínio.
Na época, Bonates negou a acusação, disse que sua vida é “pautada pela ética” e deixou o cargo alegando motivos de saúde. No seu lugar, assumiu um general, Carlos Alberto Mansur.
No mesmo mês, o secretário de Inteligência do governo estadual, delegado Samir Freire, foi preso junto com três policiais civis, todos acusados de extorquir R$ 18 milhões em ouro de garimpeiros ilegais.
O governador do Amazonas, Wilson Lima, virou réu em setembro por participar de suposto de desvio de dinheiro público na compra de respiradores para doentes com Covid-19, acusação negada veementemente pelo ex-apresentador de programa policial.
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"Do ponto de vista de quem é morador da periferia, para muita gente, a coisa mais perigosa são os pequenos assaltantes, que não têm muito a ver com o crime organizado. Em vários momentos esses coletivos criminosos protagonizaram políticas de pacificação", enfatiza Candotti.
"O discurso que demoniza o universo do tráfico de drogas e do crime e que representa de maneira exagerada o perigo desse grupos alimenta o processo de militarização da nossa vida, e não a militarização apenas contra esses grupos", continua o professor da UFAM.
Outro Lado
Em nota, o governador Wilson Lima afirmou: “Nunca recebi qualquer benefício em função de medidas que tomei como governador. A acusação é frágil e não apresenta nenhuma prova ou indício de que pratiquei qualquer ato irregular.
As críticas presentes nesta reportagem foram enviadas ao governo do Amazonas, que não havia encaminhado resposta até a publicação. O Brasil de Fato não conseguiu contato com a defesa de Samir Freire.
Edição: Rodrigo Durão Coelho