“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina o nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos..”
O trecho acima é do livro O Avesso da Pele, do escritor e colunista, Jeferson Tenório, patrono da Feira do Livro de Porto Alegre de 2020. No ano da pandemia, e em um período marcado por crimes racistas como o homicídio do americano George Floyd e do brutal assassinato do porto-alegrense João Alberto Silveira Freitas, Tenório se tornou o primeiro escritor negro a ser alçado como “pai” da Feira. 2020 foi também o ano em que o grito "vidas negras importam" retumbou e eclodiu no mundo inteiro.
Nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, Tenório é doutorando em Teoria Literária pela PUCRS. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. Até o início desse ano Tenório ministrava aulas de literatura, devido ao sucesso do recente livro, suspendeu a atividade docente para se dedicar a agenda intensa provocada por sua obra.
Questionado se tem conseguido viver de literatura, ele responde brincando que tem dado para pagar as contas, feito notório se levarmos em conta que apenas pouco mais da metade dos brasileiros têm hábitos de leitura: 52% (ou 100,1 milhões de pessoas), dedica-se à leitura. O dado é da 5ª edição do "Retratos da Leitura no Brasil", que aponta também Porto Alegre como a 14ª capital no quesito, mesmo abrigando a maior feira a céu aberto da América Latina.
Às vésperas do mês da Consciência Negra e da abertura da 67ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre, na última quinta-feira (28), ele conversou com o Brasil de Fato RS, sobre afeto, racismo, escrita e o seu novo trabalho.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - Como foi ser patrono da Feira do Livro no contexto da pandemia?
Jeferson Tenório - Foi meio solitário e meio desolador. Eu me lembro que no ano passado eu vim tirar uma foto aqui para uma reportagem da feira e não tinha nada, não tinha as bancas, estava tudo vazio. Eu fiquei refletindo... Primeiro que eu nunca pensei que eu ia ser patrono dessa feira em função das críticas que eu vinha fazendo a ela. Para mim isso era algo muito distante.
E aí quando resolvem me dar o título de patrono, é no momento em que a feira não acontece presencialmente. Por outro lado, foi muito importante porque marcou uma mudança na produção da feira. Hoje temos uma curadoria, as mesas são temáticas, você vê mais mulheres, mais negros. E ao mesmo tempo, como foi no formato online, você chega em muito mais pessoas. Daqui a pouco você tem um vídeo, uma palestra com sei lá, 2 mil, 3 mil visualizações, que você não teria aqui, você teria no máximo 20 pessoas assistindo uma palestra. Nesse sentido eu acho que foi bem importante.
E claro, ser o primeiro patrono negro depois de 67 edições tem um peso, e tem um peso para os movimentos negros, eu recebi muito apoio, muitas mensagens desses movimentos.
É emblemático, as pessoas se veem representadas, isso eu acho que é o mais bonito, de você ver: “olha, tem um cara lá, negro, que é o patrono da feira do livro”. Mesmo que as pessoas não sejam muito ligadas ao livro, isso tem um peso.
BdFRS - Uma pesquisa da professora Regina Dalcastagnè aponta que entre 689 romances de autores brasileiros publicados pelas mais importantes editoras do país entre 1965 e 1979 e entre 1990 e 2014, privilegiam a representação de um espaço social restrito: suas personagens são, em sua maioria, brancas, do sexo masculino e das classes médias. Sobre outros grupos, imperam os estereótipos. As mulheres brancas aparecem como donas de casa; as negras, como empregadas domésticas ou prostitutas; os homens negros, como bandidos. Como escritor, professor de literatura como tu vês isso?
Jeferson - É uma pesquisa que foi muito divulgada e muito falada logo quando ela saiu, e causou um rebuliço no meio literário. Muita gente dizendo que agora tinha que ter cotas pra personagens. Não era isso, era só uma constatação de que a literatura brasileira é branca, heteronormativa, classista. Porque quem produz literatura ou quem produzia literatura, não só produzia, mas que era editado também por grandes editoras, eram os homens brancos de classe média, do Sul, Sudeste.
Esses personagens compõe um tipo de ficção que por muitos anos foi tida como a realidade brasileira, justamente porque eram essas pessoas que acabavam escrevendo sobre o Brasil.
Quando temos a entrada de pessoas negras a partir dos anos 2000, publicando por grandes editoras, há já uma modificação desse tipo de personagem. E isso se reflete na universidade. Você começa a ter uma demanda por essas narrativas, o que obriga professores universitários e professores nas escolas a trabalharem questões raciais, indígenas, trans, justamente porque o mundo mudou e a literatura também acompanha essa mudança.
Eu vejo que a pesquisa da Regina constata o modo como a literatura brasileira vinha sendo feita, mas também a gente vê uma proposição, ou seja, propor também que seja feito um outro tipo de literatura, com outras representações literárias.
BdFRS - A busca e interesse por autores negros parece estar crescendo bastante nas últimas décadas. Qual tua opinião sobre esse movimento?
Jeferson - Esse aumento ao mesmo tempo que é significativo, ele também é muito pouco. Porque se formos avaliar o número de escritores que são publicados no Brasil, ainda somos a minoria.
Então pode passar sim a ilusão de que, pelo fato de o Itamar Vieira Júnior, a Conceição Evaristo, por exemplo, estarem aparecendo, parece então que agora conseguimos um grande alcance da literatura negra.
Mas isso é um pouco ilusório, porque ainda temos espaços pra conquistar, e não me parece que seja uma onda, eu acho que é algo que veio pra ficar.
Apesar de ainda ser pouco, a literatura negra não me parece que seja uma onda, é algo que veio pra ficar
BdFRS - Nós temos a Lei nº 10.639 que garante o ensino da História Africana nas escolas. Ela é de fato posta em prática?
Jeferson - A lei por si só não torna a coisa efetiva. Ninguém vai ser preso por não cumpri-la, ninguém vai ser punido economicamente por não trabalhar a cultura brasileira, a cultura afro-brasileira nas escolas.
Parece-me que é uma lei que não vem sendo aplicada. São mais iniciativas individuais de professores, de algumas escolas, alguns projetos. Como política de governo isso não funciona, porque a questão não é o professor lá de uma escola do Interior trabalhar a cultura afro-brasileira, é uma questão de gestão, de políticas educacionais que façam projetos efetivos para que isso aconteça de fato na sala de aula.
BdFRS - Há uma normalização do ensino escravocrata no Brasil?
Jeferson - Eu acho que sim. No meu primeiro livro, O Beijo na Parede, eu falo um pouco sobre isso. O meu personagem questiona por que o ensino é voltado pra questão escravocrata, e não também para outras questões, como da riqueza da cultura negra, da contribuição da cultura negra para as pessoas, para a sociedade, para o Brasil. Então acho que há um foco no ensino escravocrata que acaba diminuindo a contribuição da cultura negra.
BdFRS - A participação do negro na história brasileira sofre um apagamento. Quais as histórias deste Brasil negro e desconhecido ainda precisam ser contadas?
Jeferson - Eu acho que tem muitas histórias para serem contadas. Esse livro que saiu agora, Enciclopédia Negra, organizado pela Lilia Schwarcz, é um resgate dessas histórias de personalidades negras, muitas, e que foram apagadas. Tem muita história ainda pra ser contada, e quanto mais escritores e escritoras negras estiverem publicando, mais chances a gente tem desse resgate.
BdFRS - Recentemente, a Companhia das Letrinhas retirou do seu catálogo um livro que romantizava o Navio Negreiro, a escravidão no Brasil, mas mesmo assim ela foi alvo de algumas críticas, tu chegastes a fazer uma crônica sobre o ocorrido...
Jeferson - Eu fiz uma crônica fazendo uma reflexão não só sobre o episódio, mas do modo como autores brancos sentem, como eu digo, a coragem da branquitude. Ou seja, que é essa coragem de você escrever sobre qualquer coisa, mesmo que aquilo não te diga respeito, ou que você não tenha conhecimento, não tenha sensibilidade, ou que você não tenha lugar de fala. Mas são pessoas brancas que se colocam no lugar de privilégio e que publicam o que quiserem, e por muitos anos foi assim.
O que está acontecendo agora é que há uma contestação em relação a esse tipo de literatura, de escrita, o que antes, há 20 anos não tinha, poderia ser um livro que ficasse circulando durante anos e ninguém diria nada.
Acho que esse movimento é importante, de vigilância. O racismo tem essas camadas, ele vai se sofisticando, mas por outro lado a gente também tem um olhar mais atento, mais sofisticado pra entender que o racismo acontece de vários modos.
BdFRS - Tu fostes atacado por duas colunas na Zero Hora ao abordar Paulo Freire e o ex-presidente Lula.
Jeferson - Foram uma atrás da outra, eu escrevi sobre o Paulo Freire, depois sobre o discurso do Lula. Eu já vinha recebendo, não ameaças, mas comentários ofensivos, logo nas minhas primeiras colunas, quando eu apareci como colunista da Zero Hora. E sabemos que vivemos em um país, em um estado racista, e aí quando você vê uma pessoa negra em um espaço de prestígio, em um espaço de opinião, os ataques acontecem.
A que ponto nós chegamos, de recebermos ameaças porque a gente opina. Isso é um país fascista, autoritário
Só que eu não achava que chegariam a um nível assim tão grave de ameaça, de dizerem, "olha, eu sei onde você mora, te cuida na rua, se eu te pegar…" Foi bastante complicado. Agora eu estive em Lisboa, em Portugal, e encontrei com a Márcia Tiburi que foi se exilar, e ela sofreu muitas ameaças, milhares de ameaças. Ela fez muito bem ter saído do país. Então a que ponto nós chegamos, de recebermos ameaças porque a gente opina. Isso é um país fascista, autoritário.
BdFRS - Outro episódio diz respeito a indicação da atriz Fernanda Montenegro à Academia Brasileira de Letras, e nos faz lembrar do que aconteceu com a Conceição Evaristo...
Jeferson - A Conceição Evaristo é uma força! É uma força que a Academia Brasileira de Letras não sabe como lidar. Porque, primeiro, temos que entender que a Academia Brasileira de Letras é uma instituição privada, não é uma instituição governamental. E aí os critérios teriam que ser outros. Como é privada, eles têm o direito de escolher o modo como vão colocar as pessoas lá dentro, e aí você tem que seguir uma determinada conduta.
Mas é claro que há uma diferenciação de tratamento. Com todos os méritos que a Fernanda Montenegro tem, e sabemos que ela tem, que é uma ótima atriz, uma contribuição enorme pra cultura brasileira, sou um profundo admirador dela, mas enfim, ela não é uma escritora, ela é uma atriz.
E aí quando você coloca a Conceição Evaristo, que tem um compromisso com a escrita há muitos anos... Ela começou a escrever aos 40 anos, hoje ela tá com 73 anos, já são mais de 30 anos de escrita, e ela não receber o mesmo tratamento, é isso, a academia não sabe como lidar com essa força. E eu acho que ela só vai conseguir lidar no momento em que você conseguir ter mais pessoas negras dentro da ABL. Quem perde é a Academia, não é a Conceição.
BdFRS - Há um trecho em Avesso da Pele que diz: “No Sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco”. Apesar do 20 de novembro ter nascido aqui, o RS é apontado como um dos estados mais racistas do país, especialmente Porto Alegre.
Jeferson - Na verdade é um personagem meu que diz isso, no Avesso da Pele, que o RS é o mais racista. Eu não sei porque eu não conheço todos os estados. Mas é uma afirmação bastante contundente de que é o estado mais racista.
Aqui no RS temos um tipo diferente de racismo. É um racismo mais escancarado, não é um racismo escamoteado, escondido, ele é dito. Você sai na rua e você percebe esse racismo a todo momento. É diferente, por exemplo, de você caminhar em grandes capitais como Rio, São Paulo. Esses locais têm obviamente o seu racismo, há uma violência policial, mas eu acho que há uma certa naturalização do diferente, justamente porque são capitais que acolhem pessoas do mundo todo e aí você tem uma certa naturalização dessa diferença.
E aqui no RS não, aqui a população branca é maior que a população negra, no interior do estado isso é mais evidente, o que torna esse choque cultural mais escancarado. Eu acho que é isso que acaba acontecendo. Eu não sei se é o estado mais racista, mas tudo indica que sim.
BdFRS - Nós entrevistamos o José Falero e ele falou que começou a escrever a partir da leitura, ele nem imaginou que fosse virar escritor e fazer o sucesso que está fazendo com Os Supridores. Qual a importância do estímulo à leitura e de levar oficinas literárias, principalmente aos jovens negros da periferia, que, talvez, tenham pouco contato com a literatura, mas que pode acontecer isso, de surgir um Falero ou outros que contam a sua história?
Jeferson - Que contam as suas escrevivências, como diria a Conceição Evaristo. Eu nunca fiz curso de escrita criativa por um simples motivo, eu não tinha dinheiro nem tempo, mas eu gostaria de ter feito.
No caso das periferias, eu acho que isso é mais importante ainda. Eu comecei a escrever depois dos meus 30 anos. Estou com 44 anos, mas eu vou publicar o meu primeiro livro aos 33. Por quê? Porque até então eu ficava ali remando sem saber muito bem qual é a técnica que eu vou utilizar.
Eu parto do princípio que uma oficina de escrita, ela é antes de tudo uma oficina de leitura, talvez outros escritores trabalhem de outro modo, mas eu trabalho mais a questão da leitura. É você perceber as nuances do texto, porque foi assim que eu aprendi a escrever. Eu aprendi a escrever copiando um livro do Hemingway, Paris é uma festa. Eu copiei a mão, porque eu queria saber como é que ele faz um diálogo, como é que ele sustenta uma narrativa, mas foi lendo, foi prestando atenção.
A gente se tornar leitor literário foi o ato mais transgressor que a gente pode fazer na vida
Eu posso dizer, e eu acho que serve também pro Falero, que a gente se tornar leitor literário foi o ato mais transgressor que a gente pode fazer na vida, porque foi isso que nos levou à escrita. Você ter oficinas literárias nas periferias, é um movimento muito importante, você conseguir mostrar pra aquele menino negro da periferia que a leitura é importante para formação dele, mesmo ele sabendo que aquela leitura não vai resolver os problemas práticos e cotidianos dele.
Acho que esse movimento é o mais difícil, como é que se convence um menino, sei lá, de 15 anos, que vive numa situação precária, a ler Clarice Lispector? Como é que se convence ele a ler Drummond, Conceição Evaristo? Como é que você vai dar um sentido pra aquilo? Como é que vai levar poesia num momento em que a pessoa não tem o que comer? Então por isso que é transgressor, ler é um ato transgressor.
BdFRS - Tu esteve recentemente em Portugal, como foi a recepção do teu livro?
Jeferson - Foi uma surpresa, primeiro porque você conseguir um brasileiro ser publicado em Portugal é um pouco difícil, um brasileiro contemporâneo. A minha editora de lá diz que há uma certa resistência dos portugueses em relação aos brasileiros, à literatura brasileira, em função da linguagem. Tem algumas nuances na linguagem que talvez afastem esse leitor português.
Foi um feito ter conseguido ser publicado, e ter sido bem recebido. Teve boas críticas, saíram matérias, entrevistas. Foi bastante positivo, o festival que eu participei também teve um público bastante considerável.
BdFRS - Em que estás trabalhando agora?
Jeferson - Estou terminando a minha tese de doutorado, que deve ficar pronta até março do ano que vem. E no romance novo, que já tem algumas páginas. Estou agora mais no momento de pesquisa. E claro, como eu também deixei a escola em função dos compromissos enquanto escritor, acabo também dando oficinas, palestras. E agora com essa semiabertura, eu tenho feito coisas presenciais também.
BdFRS - Sobre o que é o novo livro?
Jeferson - Esse livro é um sonho antigo, de contar a trajetória da entrada de estudantes negros na Universidade Pública, principalmente atendendo as políticas de cotas. Eu vou contar a história de três estudantes, cada um em cursos diferentes. É o que eu estou chamando de romance geracional. E do quanto a universidade vai se modificando em relação a entrada desses alunos, e do quanto os professores que vêm de um outro lugar também vão sendo obrigados a se modificar, e modificar também o conteúdo, modificar também a epistemologia do curso.
É um romance justamente pra gente refletir essas mudanças sociais dentro da academia. O título do romance a princípio é “De onde eles vêm”, é pra ser plural mesmo, de onde essas pessoas vêm, tanto os professores quanto os alunos, e esses choques culturais e sociais que vão acontecer dentro da universidade.
BdFRS - Falando nisso, tu fostes do primeiro grupo de cotistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ...
Jeferson - Eu fui o primeiro aluno cotista negro a se formar na Universidade Federal em 2010, tenho muito orgulho disso. Vemos que a universidade está agora com mais diversidade. Você entra hoje num curso da UFRGS e você vê pessoas negras, e um número bastante significativo. Claro que em cursos de mais prestígio, como Medicina, Psicologia, Engenharia vemos menos. Mas de qualquer modo eu vejo que houve um avanço. E esse avanço também tem uma demanda epistemológica, e uma demanda também no corpo docente. Ou seja, é preciso também que coloquemos professores negros lá dentro. Não adianta ficarmos só com os alunos se também não temos professores.
É preciso também que coloquemos professores negros nas universidades. Não adianta ficarmos só com os alunos se também não temos professores
Na escola onde eu trabalhava até o início do ano, eram 70 professores, e eu era o único professor negro. E aí a professora que entrou é uma professora branca, então agora não tem mais, até onde eu sei, professores negros na escola. É um pouco pesado, porque aí você quer trabalhar questões raciais, e pelo fato de você ser um professor negro cai tudo pra você fazer. Então a gente precisa mexer no corpo docente também.
BdFRS - Tenho uma amiga, professora, que tem levado aos seus alunos em uma escola no Morro da Cruz, escritoras e escritores negros para fomentar a leitura desses outros saberes e formas de ver o mundo.
Jeferson - Isso é bem importante, levar um repertório de escritores, pensadores negros e negras, provocar um deslocamento também de um tipo de conhecimento ocidental, eurocêntrico. Não que a gente também não tenha que trabalhar essas questões. Eu sempre gosto de fazer pontes e diálogos com essa cultura ocidental, e a cultura de matriz africana, mostrando justamente que o mundo é amplo, ele pode ter várias perspectivas.
BdFRS - Tu também estás em uma coletânea que reúne 18 histórias sobre os orixás, da editora Malê...
Jeferson - O lançamento desse livro acontece nesta quinta-feira (27). Cada escritor ficou responsável por um orixá. Eu escrevi sobre Ogum. Precisamos normalizar, naturalizar a cultura afro dentro da literatura. Assim como os mitos gregos são naturalizados, também precisamos naturalizar Oxum, Ogum. Imagina, alguns anos atrás você fazer um livro desse era quase como sei lá, falar do demônio, sabe, as pessoas tinham medo. E hoje eu acho que a gente consegue ter uma abertura.
BdFRS - Para além do racismo Avesso da Pele é um livro sobre afeto. Nos tempos atuais que estamos vivendo como manter vivo esse sentimento?
Jeferson - O afeto é o que nos mantém vivo. Essa é a origem do livro, é por isso que o título do livro é “O Avesso da Pele”. A pele está ali quase como um adendo, não é o principal, o principal é o avesso. E as conversas que o Henrique, o pai do Pedro, tem com ele, são justamente buscando a preservação desses afetos.
E o que são esses afetos? São as nossas contradições, os nossos conflitos, as nossas angústias, porque é isso que nos faz humanos. Agora como é que se preserva isso?
Talvez o nosso grande mal do século não seja mais a solidão como foi séculos atrás. Talvez o nosso grande mal hoje seja a indiferença
Acho que a primeira coisa é você não ser indiferente às dores dos outros, talvez o nosso grande mal do século não seja mais a solidão como foi séculos atrás. Talvez o nosso grande mal hoje seja a indiferença. Vivemos uma crise muito grande da indiferença do outro. Ou seja, tanto faz que o outro esteja morrendo, que ele esteja num hospital morrendo sem ar. "Ah, você vai pegar a gripe de qualquer jeito e vai morrer mesmo gente”. Esse discurso da indiferença é um discurso brutal, violento, e acho que vivemos o século da indiferença.
BdFRS - E O Avesso da Pele chama a atenção também para a questão da paternidade...
Jeferson - É o que eu estudo no meu doutorado. A representação paterna nas literaturas luso africanas me mostrou, ou tem me mostrado que esse pai ocidental, e aí coloco o modo como a psicanálise também vê esse pai, ele é um pai causador de traumas, ele é um pai trágico, ele é um pai que é distante. Você tem aí inúmeros livros em que os filhos fazem o acerto de contas com o pai. Quem não tem um acerto de contas com seu pai?
Essa imagem desse pai ocidental começou a me incomodar. E pensei, bom, deve ter outro tipo de representação paterna. Eu fui para as literaturas africanas, e aí encontro uma outra representação. Talvez não tão distante desse pai trágico, mas talvez um pai mais horizontal, mais coletivo, que não tem todo esse peso nuclear, ele não tem todo esse poder que esse pai ocidental tem.
Então como é que você vai falar de complexo de Édipo numa sociedade africana? É outra coisa, a composição familiar é outra, então é isso que eu acabo discutindo. Eu trago esses dois arquétipos de representação, esse pai ocidental e esse pai africano, para O Avesso da Pele, porque aí você não tem nenhum pai trágico, e você também não tem nenhum pai que é um símbolo de heroísmo, você tem um pai meio-termo, ele é próximo, mas nem tanto.
BdFRS - Já que estamos na Feira, que livros tu indicarias as pessoas a adquirirem?
Jeferson - Eu acho que as pessoas devem adquirir autores e autoras negras. Eu tenho feito uma política assim: Quando eu vou numa livraria, se eu for comprar um livro, eu compro dois. Dois porque eu tenho que comprar uma autora sempre, seja negra ou branca, é uma questão política. Porque a gente também tem que prestar atenção aonde colocamos o nosso dinheiro.
É uma maneira também de valorizar a literatura negra, mas também de dar subsídios pra que essa produção continue acontecendo. E a gente sabe que a produção negra, em sua grande maioria, é feita por pequenas e médias editoras, e elas precisam desse recurso financeiro pra continuar.
A minha recomendação é: leiam José Falero, leiam a Lilian Rocha, leiam a Cidinha da Silva, a Conceição Evaristo. Agora saiu um livro do Oswaldo de Camargo, que eu fiz um comentário na capa do livro. Ele é pai do Sérgio de Camargo, mas enfim, são pessoas completamente diferentes. Então é isso, leiam esses autores, porque é uma maneira também de a gente ampliar nossa visão.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko