Há décadas o semiárido brasileiro apresenta marcas das mudanças climáticas. A cobrança por políticas efetivas para mitigar os efeitos do processo de desertificação, por exemplo, fez parte da Declaração de Convivência com o Semiárido, elaborada em 1999 por movimentos e organizações do campo.
Na época, o manifesto criticou práticas e discursos das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas. A insatisfação coletiva acabou motivando a realização do Fórum Paralelo da Sociedade Civil, em oposição à 3ª Convenção de Combate à Desertificação e à Seca, realizada no Recife (PE), em 1999.
BdF Explica | Por que o mercado de créditos de carbono não combate a emergência climática
Assim, o racha a uma convenção que faz parte das COPs, as Conferências das Partes da ONU, fez nascer a Articulação Semiárido (ASA), hoje integrando uma rede de mais de 3 mil organizações.
O tempo passou e as reivindicações da Declaração passaram por uma espécie de gangorra. Assim como outros programas e políticas sociais no país, sentiram a ascensão na década de 2000 e o declínio na segunda metade da década posterior.
Leia também: Bolsonaro repete postura e veta novo PL que previa socorro para agricultura familiar
Mais que propostas contra a desertificação, o processo coletivo viu germinar ações pelo direito à água e pelo fomento à agricultura familiar e camponesa. Além disso, a ASA demarcou a área afetada pelo clima como um “território político”.
Imaginário social
Para a coordenadora de Comunicação da ASA, Fernanda Cruz, a relação entre articulação política e a valorização do território partiu como um contraponto a um imaginário histórico negativo.
“Não se falava, por exemplo, que as secas são previsíveis. Não se falava que a região tinha as suas características, e que era preciso aprender a conviver e se adaptar. Ninguém falava sobre o papel do Estado nesse contexto. Por exemplo, diante de uma foto do gado morto, ninguém falava que esse tipo de animal não é o mais adequado para a região. Era simplesmente a morte e a miséria. É isso! Essa é a única história”, afirma.
Assim, as propostas de convivência com o semiárido se apoiam também na necessidade de se recontar histórias. Há uma busca pelo equilíbrio entre anúncios de potencialidades - nem sempre enxergadas - e de cobranças - que não sejam estigmatizadas, mas potentes de solução.
:: "Não queremos ser explorados, nem marginalizados": indígenas Warao pedem autonomia ::
Por outro lado, ao longo de séculos, um imaginário de fome e pobreza sem perspectiva de transformação inundou espaços como a literatura, música, artes plásticas, documentações oficiais, entretenimento e pautas jornalísticas.
Para a jornalista Dríade Aguiar, gestora do Mídia Ninja, um exemplo do poder das narrativas para o imaginário do semiárido é perceptível até mesmo entre os algoritmos. Como exemplo, ela afirma que acessar o tema em sites de busca pela internet comprova a falta de representação das diversidades populares e de paisagens do semiárido.
“Dependendo de onde você for, você vai ver que está muito ligado à geografia, ao estudo geográfico. A coisa que eu achei mais doida é que não tem gente. Parece que o semiárido é inabitado. É uma vegetação vazia, seca, improdutiva, que está alinhada à ideia da fome, da falta. Poucas delas representam vida”, alega.
:: Uberização do campo: Amazon e Microsoft avançam sobre mercado de produção agrícola ::
As culturas e biodiversidade presentes no território semiárido ocupam 12% do território nacional. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 27 milhões de pessoas, ou 12% da população do país, moram em áreas semiáridas.
Essa relação na busca de valorização de identidades coletivas e a afirmação de “território político” pode ser vista também pelas lentes da colonialidade para Carlos Magno, coordenador do Centro Sabiá.
"Tanto nós que estamos no semiárido brasileiro como dos semiáridos da Argentina, da Bolívia, de El Salvador foram historicamente relegados ao lugar da pobreza, da fome e da miséria. Esta foi a imagem que construíram sobre esses territórios. Quem conta a história da colonização são os colonizadores, não foram os índios, não foram as mulheres, não foram os povos escravizados que contaram a história da civilização, que contaram a história que estão nos livros que nossos filhos, nossos irmãos, nossos pais estudaram. Então essa narrativa foi construída historicamente e está dentro da gente", enfatiza.
Semiáridos
Para tanto, uma das formas de tentar se recontar essas histórias no Brasil e na América Latina está na Plataforma Semiáridos. A iniciativa surgiu em 2018 e favorece o intercâmbio entre quatro regiões latinoamericanas. São elas: o semiárido brasileiro, o chaco trinacional, o corredor seco centro-americano e o semiárido venezuelano, como afirma Carlos Magno.
"A plataforma nasce do desejo de trocar olhares sobre esse grande território, que é o semiárido latino americano. Entendendo que ele tem muitos problemas e muitos desafios, mas também existem muitas potencialidades", destaca.
Acesse: Momento Agroecológico
A plataforma é formada por 16 instituições representativas de 10 países da América Latina, na proposta de revelar e sistematizar experiências para fortalecer a sociedade civil e incidir nas políticas públicas. Assim, a destacada importância de se recontar histórias sobre o semiárido brasileiro dá um passo a mais na correlação continental.
Relações entre poderes
Ao mesmo tempo, os desafios globais para políticas ambientais seguem sendo debatidos na COP26, em Glasgow, na Escócia, até 12 de novembro. O presidente Jair Bolsonaro não participa da Cúpula por alegar “questões de agenda”.
Ouça: Meta de redução de emissões de CO2 anunciada por governo Bolsonaro na COP26 é a mesma de 2015
Para a comunicadora Catarina de Angola, da Angola Comunicação, que atua com as temáticas do Semiárido, o chefe do Executivo representa passos atrás de 1999. Ela lembra o momento em que o capitão reformado sugeriu tecnologias israelenses para uma ideia de “combate” à seca.
“Ele não conseguia nem olhar para o que já existia aqui, para o que foi construído. Em uma negação do que foi construído. Então, não é nem mais um governo que reduz o semiárido a seca, é um governo que diz que não conhece o que está aqui e que acha que as soluções vêm todas de fora. Que a gente não é capaz de construir as nossas próprias soluções”, afirma.
Além do contexto interno ao semiárido brasileiro, a região deve continuar sendo uma das mais afetadas pelas mudanças climáticas no planeta. A meta da ONU de zerar as emissões de carbono (CO2) até 2030 ficam cada vez mais distantes quando as estimativas para o final de 2021 giram entre 4% e 7,5%.
O registro de aumento de 1,5ºC na temperatura global no último século provoca alterações nas correntes de ar, marítimas e no desenvolvimento da vida animal e humana como um todo.
Edição: Sarah Fernandes