As mulheres redigiram uma declaração internacional reafirmando os valores feministas
Por Natália Blanco*
O ano era 1998 e mais de cem mulheres do mundo inteiro se encontravam em Montreal, no Quebec, respondendo a convocatória de uma campanha global para lançarem no ano 2000 a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e suas “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência sexista”. Com o lema “Marchamos contra a pobreza e pela redistribuição da riqueza, contra a violência contra as mulheres e pelo respeito à sua integridade física e mental”, as mulheres em 1998 realizaram o primeiro encontro internacional do movimento que ainda estava no início.
Mais de 20 anos depois, de muitas lutas e denúncias contra as relações de exploração e opressão do capitalismo, racismo e patriarcado sobre a vida das mulheres e dos povos, em 2021 a Marcha Mundial das Mulheres realizou seu 12º Encontro Internacional virtualmente, pela primeira vez. Já são quase dois anos vivendo sob as dinâmicas impostas pela pandemia da covid-19, e o movimento reuniu delegações de 41 Coordenações Nacionais das 5 regiões do mundo em que vem atuando (Américas, África, Europa, Oriente Médio e Norte da África, e Ásia e Oceania) para debater os desafios da conjuntura internacional e formas de mobilização popular a partir da auto-organização das mulheres.
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Por ser um movimento feminista, anticapitalista e antirracista que se organiza em aliança com outros movimentos populares em territórios e países do mundo inteiro os encontros internacionais proporcionam a atualização do debate político e da construção comum sobre a organização e agendas a partir do feminismo popular e internacionalista e das experiências das mulheres em sua diversidade.
Durante a sessão de abertura com o tema “A Luta continua: resistimos para viver, marchamos para transformar”, movimentos sociais e organizações aliadas como La Vía Campesina, Amigos da Terra El Salvador, Confederação Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas, Jornada Continental por la Democracia y contra el Neoliberalismo, Assembleia Internacional dos Povos, Grassroots International, Why Hunger e Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais, também saudaram e expressaram a importância da MMM como movimento que pauta a transformação da sociedade desde perspectivas contra hegemônicas como a economia feminista e a agroecologia.
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Durante os encontros as mulheres avaliam seus acúmulos e aprendizados para pensar o futuro, atualizando os processos organizativos. Construir um movimento feminista internacional requer o desafio constante de pensar uma proposta política antissistêmica integral, crítica ao imperialismo, que seja feita por e para todas as mulheres.
Entre as militantes de todo o mundo é unânime a constatação do acirramento do conflito capital x vida e dos avanços do capitalismo e seu projeto neoliberal de precarização da vida dos povos e da natureza. O aumento dos autoritarismos, da militarização, dos conservadorismos e fundamentalismos.
A relação das empresas transnacionais com os governos por meio de acordos de livre comércio e investimentos revelam a manutenção e atualização do colonialismo entre os países do Norte e Sul global. Vemos a ofensiva das transnacionais para destruir democracias, provocar desestabilização política e social, aprofundar a pobreza e os autoritarismos que acompanham o autoritarismo do mercado. O capitalismo de vigilância por meio das plataformas digitais investe no controle dos corpos e subjetividades e na individualização e hierarquização das narrativas. O avanço também se deu nos territórios que resistem ao imperialismo e sofrem com os bloqueios econômicos e/ou com as perseguições políticas e a criminalização dos movimentos sociais.
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Durante a crise sanitária os atores do capital neoliberal, racista e patriarcal provocaram o aumento das desigualdades. O lucro e interesses corporativos foram priorizados a qualquer custo e foi sobreposto à saúde em meio a pandemia, provocando o acesso desigual às vacinas, medicamentos e serviços públicos em colapso, além de dívidas ilegítimas aos territórios e pessoas em situações de maior instabilidade econômica e política. Tudo isso também aprofundou a marginalização, discriminações e exclusões das populações pobres, trabalhadoras, migrantes e refugiadas, trabalhadoras do campo, pessoas racializadas, idosas, crianças, LGBTI+, com deficiências.
Ao longo dos debates as mulheres também destacaram a tarefa do feminismo popular de reforçar a crítica anti-patriarcal e as diferentes causas de violência, controle do corpo das mulheres, sexualidades e trabalho que sustentam o sistema capitalista, racista e heteropatriarcal. Assim como a defesa feminista da laicidade e o enfrentamento dos fundamentalismos religiosos não podem ser isolados da visão crítica sistêmica e anti-imperialista porque isoladamente se tornam armadilha liberal que reforça a perda de soberania e islamofobia em detrimento dos interesses econômicos do capital transnacional como vemos em territórios como Afeganistão e Palestina.
A partir do feminismo as mulheres seguem apontando para as possibilidades de mundo desde seus territórios, com ações organizadas em aliança com outros movimentos sociais, em unidade nas ruas, nos campos e florestas como principais estratégias de enfrentamento a ofensiva neoliberal. As mulheres invertem e subvertem as lógicas de dominação e têm respondido às demandas impulsionadas pela pandemia com organização e solidariedade para garantir que a vida se mantenha e se recrie. Nos cuidados, na formação e comunicação contra hegemônica popular e feminista, na defesa da soberania alimentar com a agroecologia, nas exigências por políticas públicas de acesso à saúde, moradia emprego e renda durante o isolamento social.
A solidariedade feminista internacional é princípio de luta e organização para fazer frente às prisões injustas das muitas mulheres que lutam, às investidas de fragmentação e cooptação das lutas com a maquiagem lilás e o capitalismo verde. Resistimos para viver livres dos instrumentos de controle e militarização dos territórios e marchamos para transformar o mundo e colocar a sustentabilidade da vida no centro.
Assista:
Mudanças para fortalecimento da organização
O 12º Encontro Internacional da MMM aconteceu durante os dias 23, 29, 30 e 31 de outubro, cerca de 130 mulheres de todo o mundo compuseram as delegações do movimento, que neste período também passa pela transição a um novo Comitê (CI) e Secretariado Internacional (SI). Atualmente este último se encontra sediado em Moçambique sob a coordenação de Graça Samo. O CI e SI são instâncias organizativas e deliberativas com integrantes indicadas pelas regiões. Para o próximo período a Turquia é o país que sediará o novo Secretariado Internacional da MMM, sob a coordenação da militante Yıldız Temürtürkan.
Além disso, as militantes que fazem parte do novo Comitê internacional são Nalu Faria, Tita Godínez e Alejandra Laprea pelas Américas; Solange Kone, Sophy Ngalapi e Rita Nyampinga de África; Marianna Fernandes, Luciana Alfaro e Marcela de la Peña da Europa; Ruba Odeh, Naama Nsiri e Teeba Saad do Oriente Médio e Norte da África; e Bushra Khaliq, Françoise Caillard e Jean Enríquez da região Ásia-Oceania.
A decisão coletiva dos países que sediam o Secretariado Internacional da MMM está relacionada com a intenção política de fortalecer o movimento em áreas estratégicas. Neste caso, com o novo mandato na Turquia, a Marcha Mundial das Mulheres tem a oportunidade de ampliar e fortalecer sua atenção em regiões como Asia-Oceania e o Oriente Médio e Norte da África.
Encerrando os dias de debate, as mulheres redigiram uma declaração internacional reafirmando os valores feministas que colocam a sustentabilidade da vida no centro, enfatiza a solidariedade internacional às mulheres e povos que lutam e as ações políticas de transformação por uma sociedade de paz, igualdade e liberdade.
*Natália Blanco é jornalista e comunicadora, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integra a equipe da Sempreviva Organização Feminista.
**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo