Adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, a Convenção sobre os Direitos da Crianças entrou em vigor em 2 de setembro de 1990, e foi ratificado por 196 países – inclusive os EUA. Alguns estados estadunidenses, sendo o mais recente deles o Texas, parecem fazer vista grossa ao primeiro parágrafo do artigo 3, que diz: "Todas as ações relativas à criança, sejam elas levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de assistência social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar primordialmente o melhor interesse da criança".
No Texas, o governador republicano Greg Abbott sancionou uma lei que impôs restrições ao acesso de adolescentes transgêneros aos esportes escolares. Crianças e adolescentes podem apenas participar das modalidades e equipes que correspondem ao seu gênero descrito em certidão de nascimento, ignorando a identidade de cada um.
Foi esse entendimento que levou, em 2018, o adolescente transgênero Mack Beggs a lutar contra as colegas de sua sala. O resultado? O garoto ganhou duas vezes a competição, e teve o resultado de suas lutas contestado pelos pais das adversárias. Mack nunca quis competir contra as meninas, mas foi obrigado, uma vez que a escola e o estado bloquearam seu acesso à categoria masculina.
Tanto na época quanto agora, a explicativa para a aplicação da lei é que ela reflete o interesse governamental em assegurar a igualdade das "oportunidades atléticas interescolares para as meninas".
Em conversa com o Brasil de Fato, Travers, docente em sociologia na Simon Fraiser University, não acredita no texto. "Isso não tem nada a ver com proteger atletas cis-gêneros, porque o esporte feminino é historicamente subjulgado e subfinanciado. E, sabe, quando você não dá os mesmos recursos aos atletas, fica claro que está tomando um lado", diz.
Ainda segundo Travers, é imprescindível que a sociedade discuta o que é considerado uma vantagem justa e injusta. "As pessoas não reclamam de alguém extremamente alto, como é o caso do Michael Phelps, ou de Katie Ledecky, que são atletas que ganham todas as competições graças à sua genética super favorável", afirma.
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A corredora transgênero Joanna Harper concorda, mas tem suas ressalvas. "Eu acredito que certos transgêneros possam ter, sim, algumas vantagens, por isso defendo a regulamentação, não a proibição", avalia.
Harper pesquisa a participação de pessoas trans no esporte e já assessorou o Comité Olímpico Internacional em decisões sobre o tema.
Para ela, a National Collegiate Athletic Association (NCAA) tem feito um bom trabalho nesse sentido, aceitando a participação transgênero, mas impondo certas regras. É preciso, por exemplo, que as atletas estejam dentro de uma faixa hormonal pré-determinada, que não lhes garantam uma vantagem sobre as demais.
Mesmo com toda informação disponível sobre a pauta transgênero, o fato de estados como o Texas e os demais estados americanos que ignoram os dados não chega a ser uma surpresa – aliás, é exatamente o contrário.
"Tudo fica bastante claro quando você percebe que os mesmos estados que estão barrando mulheres trans de competir nas escolas são os mesmos que estão aprovando outras propostas que restringem os direitos das pessoas trans", complementa Harper, "estão barrando a terapia hormonal, a cirurgia de designação social pela rede pública, e até bagunçando a questão dos banheiros".
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Ao dificultar ainda mais o caminho para os jovens trans, os especialistas acreditam que essa medida diminuirá a participação desses atletas em todas as modalidades.
"São muitos os jovens trans que vieram me contar que eles sequer vão tentar fazer parte de algum esporte, porque todo o resto já é difícil demais", lamenta Dr. Harper.
Harper lembra que o berço dos esportes modernas não é a Grécia Antiga, como muitos acreditam, mas a Europa – e isso diz muito sobre o que vivemos. "Os esportes emergiram na Europa e suas colônias explicitamente para promover uma sociedade e masculinidade hetero-patriarcal. Então nada disso é acidental, porque cada instituição desempenha um papel.”
Desafiar essa "normalidade" não é nada fácil, sobretudo para quem não tem apoio familiar ou uma rede de apoio. Apesar das adversidades, Joanna Harper nunca deixou de correr, mas sabe que sua decisão não foi de graça.
Embora tenha suas memórias nada agradáveis, a professora e esportista prefere compartilhar justamente as experiências inspiradoras: "antes de eu me mudar para a Inglaterra, eu morei em Portland, no Oregon, e corria por um clube, como parte de um grupo de mulheres com mais de 40 anos", conta.
Abraçada pelas companheiras de equipe, treinadores e demais membros do clube, Harper não consegue controlar a emoção quando se lembra do apoio que recebeu ali. "Eles me tratavam como qualquer outra mulher correndo", conta.
Querer ser "apenas mais uma" é uma ambição muito baixa para a maioria das pessoas, mas é a jornada de uma vida para quem ainda precisa provar para parte da sociedade que gênero é uma questão de identidade, não de escolha.
Edição: Thales Schmidt