Nos últimos dias, o país foi surpreendido pelos pedidos de demissão e exoneração em massa de mais de 30 servidores que trabalham no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) – autarquia federal ligada ao Ministério da Educação. A notícia, que por si só já é reveladora de que algo grave acontece no órgão, ganha proporções ainda maiores quando se sabe que o Inep é o responsável pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e que tal situação acontece semanas antes da aplicação da prova.
Apesar de todas as tensões e contradições associadas à prova do Enem, não se pode negar que a participação no Exame propicia o acesso de jovens carentes de diversas regiões do país ao ensino superior. Centralizar a seleção de estudantes num único exame, aplicado em todo o país é uma forma muito mais democrática para o acesso ao ensino superior que os antigos vestibulares, realizados nos grandes centros e de forma descentralizada.
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Não é o melhor que poderíamos ter, mas já é um avanço que representa muita coisa para uma parcela da população que, historicamente, luta para concluir a educação básica e ainda tem dificuldades para chegar ao ensino superior.
Independente das especulações que rodeiam a saída dos servidores do Inep, é importante se atentar para este fato como um sinal que já vem sendo anunciado e que representa, não só um acontecimento isolado, mas sim mais uma peça em um enorme quebra cabeça que precisa ser montado para se ter noção da totalidade e dos retrocessos e ameaças direcionados à educação pública.
Muito já se falou sobre as ameaças da Lei da Mordaça, da Contrarreforma do Ensino Médio, da "PEC da Morte" que congelou investimentos em direitos sociais por 20 anos, da crise da Pesquisa e de todo o descaso do governo com as instituições escolares e com a educação como um todo.
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Além destes fatores, pontualmente em relação ao Enem, é possível perceber um ataque por parte de grupos fundamentalistas e conservadores que vem de longa data. A partir da suposta alegação de um alinhamento com temas de esquerda e acusado de ser um instrumento de dominação ideológica, o Enem tem sido questionado por grupos de extrema direita que pedem uma patrulha ideológica na prova. É importante lembrar que esta pauta conservadora foi uma promessa forte do então candidato Jair Bolsonaro à presidência da República em 2018. Tal viés de patrulha ideológica é uma marca do governo federal no MEC, cujos ministros sempre tiveram perfil conservador e distante da dimensão social da educação.
Com as exigências sanitárias decorrentes da pandemia da COVID-19 e a negligência do governo, o Enem voltou à tona em 2020 numa disputa acerca da realização ou não da prova. Entidades médicas, pesquisadores e movimentos estudantis pediram o adiamento da prova que acabou sendo realizado no início de 2021. A realização da edição de 2020 foi alvo de disputas que envolveram uma séria de medidas judiciais.
Durante a realização da prova, vários estudantes relataram problemas envolvendo o acesso e a aglomeração nos locais de prova. No Amazonas, a realização da prova no pior do momento da pandemia também precisou contar com a intervenção judicial. Todo este cenário fez com que a edição de 2020 sofresse uma queda no número de inscritos e de participantes no Exame.
Todos estes acontecimentos precisam ser entendidos dentro de um projeto de ataque ao Exame, cuja ampliação aconteceu durante a gestão do ministro Fernando Haddad no governo Lula, mas também por conta da democratização de acesso ao ensino superior que esta avaliação tem representado no país. Tal situação fica evidente quando se percebe a afirmação do atual ministro da educação, Milton Ribeiro, em entrevista à Rede Brasil em agosto de 2021, quando revelou que o ensino superior precisa ser para poucos.
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Tal declaração mostra as reais intenções que, a partir da fala do ministro, ficam explícitas para toda a população. Foi nesta mesma entrevista que o ministro fez a polêmica declaração a respeito de crianças com deficiência que, segundo ele, são de difícil convivência no ambiente escolar.
As ameaças ao Exame não param por aí. Em entrevista à CNN Brasil, no dia 3 de junho, o ministro manifestou o desejo de ter acesso prévio à prova do Enem para verificar os tipos de questões que são cobradas, sinalizando, inclusive, para uma possibilidade de intervenção. Apesar de Milton Ribeiro usar de argumentos que se apresentam como técnicos, o que se vê é um patrulhamento ideológico que procura compatibilizar a prova com o ideário conservador que se manifesta nas políticas públicas deste governo.
Aliado a isso, é possível perceber que o conservadorismo sempre é visto como uma possibilidade de negócio para empresas que buscam acesso ao fundo público, a partir de terceirizações e parcerias. Tal fato se revela quando, em agosto de 2021, a Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb) do Inep cogitou terceirizar a produção de itens (questões) para a prova.
Para a edição de 2021, o que se observa é a continuidade da política de exclusão através da imposição de dificuldades para a isenção da taxa de inscrição no Exame. Diante disso, mais uma vez a Justiça precisou intervir no sentido de garantir que estudantes da rede pública tivessem garantido o seu direito de isenção na taxa de inscrição no Exame, reabrindo o período de inscrição para que tais candidatos participem da prova numa edição suplementar, a ser realizada após a primeira aplicação que está prevista para acontecer em novembro.
Os efeitos desta política já podem ser percebidos. A partir das inscrições para a edição deste ano, observa-se a diminuição de estudantes da rede pública, sobretudo pretos, pardos e indígenas.
Todos os fatos aqui reunidos mostram que a saída dos servidores do Inep às vésperas do Enem 2021 não foi um fato isolado. Independente das razões, é possível perceber que a realização do Exame já vem sendo ameaçada há algum tempo. Tal situação deve servir de sinal para a mobilização de instituições públicas, movimentos estudantis, servidores públicos, sindicatos ligados à educação e da sociedade como um todo.
O Enem não é a realização de um governo, mas sim, uma política de estado que possibilita o acesso ao ensino superior e precisa ser defendida e respeitada como tal. A montagem das peças do quebra-cabeça aqui realizada revela uma imagem ameaçadora, contra a qual as forças sociais precisam se organizar.
*Tiago Fávero de Oliveira é filósofo, doutorando do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ). Professor do IF Sudeste MG – Campus Santos Dumont.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Segalla