Chapada Diamantina

Conheça Observatório dos Conflitos Ambientais criado por geraizeiros, indígenas e pesquisadores

Grupo aglutina lutas pela água e território de comunidades tradicionais da região da Chapada da Diamantina (BA)

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Chapada da Diamantina é um dos principais destinos ecoturisticos do país - Foto: Rodrigo Durão

Há mais de um ano, os moradores de Piatã (BA), um dos 27 municípios da Chapada Diamantina, vivem sob tensão constante. Em 19 de outubro de 2020, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos da Bahia (Inema) publicou a portaria nº 21.671, concedendo ao fazendeiro Shuichi Hayashi autorização para suprimir 958,33 hectares de vegetação nativa na Fazenda Piabas, região do Gerais de Piatã, situada entre o Rio de Contas e Rio Gritador. Desde então, mesmo após proibição pela Justiça baiana, os tratores continuam a derrubar árvores.

O caso é apenas um entre os vários conflitos que assolam a região. Para denunciar as violações e, ao mesmo tempo, cumprir as políticas de isolamento impostas pela pandemia de Covid-19, a comunidade passou a filmar os desmates usando drones e organizar mobilizações em espaços abertos, transmitindo-os pelas redes sociais. Os camponeses de Piatã se juntaram também ao grupo formado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pesquisadores e alunos de universidades e institutos federais da Bahia, líderes de movimentos sociais, organizações ambientais e ativistas para criar o Observatório dos Conflitos Ambientais da Chapada Diamantina (OCA), uma iniciativa inédita na região.

Monocultura de batata devasta matas e rios na Chapada

A reação à destruição dos Gerais de Piatã não tardou. Um mês após o Inema emitir a autorização e com o desmatamento já em andamento, o promotor do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) Augusto Cesar de Matos recomendou o cancelamento da licença, após apurar denúncias feitas pela comunidade vizinha à propriedade. Produtor de batatas em monocultura, Hayashi ignorou a recomendação e continuou desmatando, chegando a trabalhar com cinco tratores ao mesmo tempo, conforme relatos ouvidos pela reportagem.

Em 08 de dezembro a Justiça suspendeu temporariamente a autorização. O juiz, no entanto, se afastou do caso, mantendo a comunidade em alerta. Quase um ano depois, em 19 de outubro de 2021, o julgamento da suspensão seria retomado, mas foi novamente adiado. Os vizinhos flagraram a ação irregular do fazendeiro em filmagem com drone, material que faz parte das provas apresentadas

Além da supressão dos quase mil hectares para o plantio de batatas, o projeto inicial submetido pelo dono da Fazenda Piabas incluía a captação d’água para irrigação em cinco poços artesianos já escavados, com uma demanda hídrica de 8,6 milhões de litros ao dia. Economista e moradora de Piatã, Ana Carolina Kokubo Queique — a Carol, como prefere ser chamada — conta que a empresa tem adquirido terras desde os anos 80, mas os conflitos se intensificaram em 2013 a partir da construção de uma barragem no Rio Gritador, afluente do Rio de Contas. “A obra afetou a qualidade da água e a vazão do rio”, relembra. “Seis comunidades e 30 famílias foram afetadas. A construção foi cancelada, mas não houve nenhuma reparação aos atingidos”.

Segundo apurado pelos vizinhos de Hayashi, o empreendimento Complexo Piatã engloba 19 propriedades que, juntas, totalizam uma área de 5.164 hectares, dos quais 4.791,65 são irrigados. “O fracionamento faz parte da forma de atuação da empresa para obter licenças simplificadas sem a necessidade de apresentação de estudos mais complexos como o Eia/Rima”, explica Carol. “Além de impedir uma avaliação criteriosa dos impactos ambientais e socioeconômicos, exclui a participação da sociedade civil e a consulta às comunidades tradicionais”.

A principal preocupação dos geraizeiros é justamente com a água. “Com o uso desses poços artesianos de grande profundidade, com certeza vai secar as nossas nascentes”, opina Cleurisvaldo Castro Trindade. O geraizeiro relata a preocupação com a pulverização de agrotóxicos, que pode poluir a sua plantação: “A gente sobrevive do que a gente planta. Os gerais todo é uma família só, uma família grande”.

A região do Gerais de Piatã abriga as nascentes de três importantes bacias hidrográficas estaduais: Contas, Paraguaçu e Paramirim. “Os gerais funcionam como uma esponja”, explica Cleurisvaldo. “Se esse povo começar a desmatar, essas áreas brejárias vão começar a sumir, porque a extensão da área que começaram a desmatar é muito grande, é imensa. É quase o gerais todo. A nossa parte aqui é bem pequenininha”. O líder geraizeiro diz que não somente eles serão prejudicados, mas todas as cidades circunvizinhas, “porque toda a água que banha nossas regiões nasce nos gerais”.

De Olho nos Ruralistas tentou contato com o fazendeiro Shuichi Hayashi antes do fechamento da reportagem para obter resposta sobre as denúncias apresentadas ao MPBA. Até o momento não houve retorno.

Observatório busca dar visibilidade a conflitos

A Chapada Diamantina pode ser berço de muitos rios, mas é erroneamente identificada como a caixa d’água da Bahia. “É uma zona delicada, localizada no sertão baiano”, explica a educadora popular e moradora da Chapada Joana Horta. “São cinco biomas em transição em um microterritório que abriga também vinte territórios quilombolas reconhecidos, além de centenas de outros tradicionais e etnias indígenas como os Payayá e os Tapuya”.

É do território dos Payayá que nasce o Rio Utinga, um rio de pequeno volume, curto, que deságua no Santo Antônio. Nos últimos anos, o crescimento da monocultura de banana intensificou a captação d’água no rio, diminuindo sua vazão e impactando centenas de famílias ribeirinhas. “A nascente [do Utinga] é raríssima, com um fluxo constante que não diminui nem com a seca”, conta o cacique Juvenal Payayá. “Só baixa com a ação do ser humano”.

Ele lembra que, durante as secas do início do século 20, os Payayá construíram um açude de tábua na cabeceira do rio de modo que pudessem plantar com irrigação. “Uma terra entre dois canais, como na Mesopotâmia, onde plantávamos feijão, milho, cana”. A partir de 1964, com o início do garimpo na região, todas as populações locais perderam terras. Depois chegou o agronegócio, com a monocultura de banana e mamão e a instalação de bombas d’água.

“Quando denunciamos, o Inema começou a punir pequenos agricultores como nós, que temos bombas para cultivo artesanal, de 2 ou 3 cavalos”, conta o cacique. Além da natureza única, a região comporta uma história de coronelismo e poder paralelo. Durante décadas, as comunidades foram duramente reprimidas e ameaçadas. Muitos moradores, com medo, não quiseram dar entrevista.

Para os Payayá e os geraizeiros resta a organização e a união, mesmo em tempo de pandemia. “Na nossa luta para barrar o avanço da Hayashi, organizamos uma celebração pela agricultura familiar, para que pudéssemos nos reunir, mesmo com distanciamento e de máscara, para nos reconhecer em nossas reivindicações”, conta Carol Queique, de Piatã.

evento realizado em novembro de 2020 iniciou o processo que daria origem ao Observatório dos Conflitos Ambientais da Chapada Diamantina (OCA), fundado este ano. Por meio da pesquisa e levantamento de dados, o grupo busca dar visibilidade e ampliar a articulação entre as comunidades afetadas pelo agronegócio, pela mineração e por empreendimentos energéticos. O ato de fundação do OCA foi marcado pelas palavras do cacique Juvenal. Retomando seu discurso durante o encontro Belém+30, evento que reuniu líderes indígenas, populações tradicionais e cientistas no XVI Congresso Internacional de Etnobiologia, em 2018, ele afirmou: “Continuaremos denunciando os ataques e divulgando nossa luta”.

Documentário resgata luta pela água na Bahia

Uma vitória histórica da luta pela água serve de inspiração para os geraizeiros e indígenas da Chapada. Em 2005, o governo baiano começou a executar um projeto para levar água encanada da barragem de Pedras Altas para o povoado de Piabas, no município de Caém, centro-norte do estado. Um rio artificialmente encanado atravessaria as terras de cerca de 320 famílias de comunidades tradicionais no percurso, porém sem beneficiá-las.

Em contato com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) as famílias se organizaram e decidiram parar o projeto. “As obras já estavam acontecendo”, conta Leomarcio Araújo, coordenador do MPA. “Um agricultor cedeu espaço em suas terras e cerca de 300 famílias acamparam em barracos de lona preta diante das máquinas que executavam as obras para negociar que também fossem atendidas pela água encanada. Elas estavam distribuídas pelo caminho, invisibilizadas”.

Os camponeses permaneceram acampados por quase 120 dias, amparados pela solidariedade de moradores, paróquias, sindicatos e outros movimentos. Enquanto isso, os acampados passavam por processos de formação política, oficinas diversas, assistiam à apresentações artísticas. “Houve a tentativa de provocar a indignação da população de Piabas pela paralisação das obras mas, quando as pessoas souberam do motivo da luta, muitos foram participar do acampamento para acelerar a solução do conflito”, lembra Leomárcio.

Depois de muitas reuniões e audiências, foi aprovado um aditivo financeiro para que as famílias fossem atendidas. Mesmo depois do fim do acampamento, os camponeses continuaram participando dos processos e pressionando, chegando a realizar quatro ocupações em órgãos públicos responsáveis pela obra.

A luta repercutiu por comunidades de regiões vizinhas. Em 2008, o MPA desencadeou uma articulação envolvendo 36 comunidade dos municípios Jacobina, Capim Grosso e Quixabeira para o projeto Água em Minha Casa, reunindo 1.363 famílias. Mais um acampamento foi realizado, com a duração de 74 dias e a conquista comemorada em 2013. “Mais do que água encanada, as comunidades ganham em autonomia e independência política, não dependendo de poderes locais para obter um carro pipa, por exemplo”, explica Leomarcio.

A história foi transformada no documentário “Água encanada: quem tem sede, tem luta”, produzido pelo coletivo de comunicação no MPA. Confira abaixo: