Um surto de Covid-19 preocupa há semanas a comunidade indígena da Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso Sul, que conta com uma população de 18 mil pessoas dos povos Kaiowá, Terena e Guarani Nhandeva. Desde o dia 21 de outubro, quando foi identificado o surto, já são mais de 90 indígenas infectados, duas mortes de idosos, além de 10 internações, sendo quatro na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Uma dessas internações graves é de uma professora da escola Guateka, que fica dentro da Reserva Indígena de Dourados. Ela teve contato direto com um adolescente da etnia Kaiowá, que é considerado pelas lideranças como “o paciente marco zero do surto”.
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“Eles não falam que diminuiu. Fala que aumentou. Aí eles querem que as crianças vão para escola. Eu mesmo não vou mandar a minha. Não fizeram nenhuma fiscalização, não fizeram testagem ainda. Eu penso que é muito prematura a decisão”, desabafou um pai de aluno em um grupo de WhatsApp de lideranças indígenas da reserva.
A fala do indígena é sobre a decisão da Secretaria de Educação de Dourados, que determinou a volta às aulas nas sete escolas municipais que ficam na Reserva Indígena de Dourados. As atividades estavam suspensas desde o último dia 27 de outubro, por conta desse novo surto de covid-19. Na quinta-feira da semana passada, as aulas foram retomadas.
“Eu não concordo com essa decisão. E a grande maioria dos pais e professores também são contra. Os casos continuam subindo e a vacinação nos adolescentes indígenas, que são mais de 3 mil, ainda caminha devagar”, avalia Fernando Terena, uma das lideranças que mora na Reserva de Dourados e que participa desde o começo das discussões envolvendo o surto de covid-19.
Ele, inclusive, aponta a baixa vacinação entre os adolescentes indígenas como uma das principais causas do surto. Recorda que as doses começaram a ser aplicadas apenas 45 dias depois do início da vacinação dos adolescentes não-indígenas.
“A responsabilidade de vacinação é da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] e houve morosidade nesse processo. Houve um retardo na vacina. Para a gente, eles apenas justificaram que as doses não ocorreram antes porque estavam seguindo o cronograma do Plano Nacional de Imunização”, conta Fernando Terena.
Sem vacinas
A professora Cristiane Machado da Silva Terena, uma das principais lideranças da região, é mais enfática. Para ela, o surto está diretamente ligado à demora em vacinar os adolescentes indígenas. Até porque o primeiro caso rastreado dessa nova leva de contaminações foi o do garoto da etnia Kaiowá.
“A maioria dos que foram infectados ainda não tinham sido vacinados. Quando o surto começou, os adolescentes de 12 a 17 anos ainda estavam na primeira semana de imunização da vacina Pfizer. Vale ressaltar que há um intervalo de oito semanas para receber a segunda dose. Por outro lado, a vacinação dos adolescentes não indígenas da cidade de Dourados já estava em quase 90%”, frisa.
Fernando Terena pondera que existe um contexto sociocultural que também favoreceu o surto. A Reserva de Dourados possui fortes características urbanas, com presença de bares e estabelecimentos comerciais. São apenas cinco quilômetros do centro da Reserva até a cidade de Dourados. Muitos indígenas também trabalham no município, principalmente no frigorífico da JBS.
A Reserva Indígena de Dourados foi criada ainda na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1917. Ela possui apenas 3,5 mil hectares e é alvo constante de ataques de violência vinda do moradores não-indígenas do entorno. A regularização fundi´ária da reserva foi feita em um contexto histórico que negligenciou a dinâmica ao longo dos s´éculos 20 e 21 e desprezou o território original do povo Guarani. Por isso, a população da RID vive confinada, pressionada por invasões e agressões.
Limite entre a Reserva e a cidade (Foto cedida por Fernando Terena)
“E, recentemente, teve a aglomeração na Reserva com realização de shows. A vigilância sanitária não entra para fiscalizar as aldeias sob alegação de que isso é responsabilidade do Dsei. Mas eles precisam entender esse contexto urbano. Entender que a Reserva é praticamente um bairro de Dourados onde moram cerca de 18 mil pessoas. Nesse sentido, é muito fácil jogar a culpa só na comunidade, deixando ela desamparada dos serviços e das políticas públicas de contenção e combate ao coronavírus”, protesta a liderança Terena.
Cristiane entende que a situação poderia estar muito mais controlada se a Secretaria de Educação de Dourados tomasse providência de suspender as aulas, logo no primeiro momento, quando os professores comunicaram sobre a contaminação do adolescente Kaiowá da escola Francisco Meirelles, no início de outubro.
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Assim que ele testou positivo, Francisco Meireles emitiu um comunicado para as demais seis escolas indígenas informando a situação. Os professores passaram a pressionar a secretaria para suspender as aulas. Mas a principal orientação foi afastar apenas o adolescente Kaiowá.
Cristiane aponta que a determinação não seguiu o decreto municipal (607/2021) sobre os protocolos de segurança contra a Covid-19 nas unidades escolares do município de Dourados. Nele é estabelecido que se um aluno se contamina, a turma toda deve ter as atividades presenciais suspensas por sete dias, e a vigilância epidemiológica deve ser comunicada imediatamente.
Aulas não suspensas
“Mas eles esperaram o registro de quatro casos para reagir. Quando comunicamos o primeiro caso, tentaram abafar. A secretaria orientou a direção da escola para afastar apenas ele e não suspender as atividades da turma toda, como manda o protocolo. Não demorou uma semana e o surto começou”, lamenta a liderança. A secretaria não retornou os questionamentos da reportagem da Amazônia Real para comentar a denúncia.
De acordo com Cristiane Terena, foi só depois dos quatro casos na Reserva que as autoridades se mobilizaram e montaram um gabinete de crise para tentar controlar o surto. O gabinete, ainda ativo, é composto por representantes do Dsei Dourados, Funai, Ministério Público Federal, Vigilância Sanitária, Secretaria Estadual de Saúde e a Secretaria de Educação de Dourados.
“Às autoridades só começaram a ter essa ação mais coordenada depois de muita pressão dos movimentos indígenas. Soltamos notas, mandamos ofícios e acionamos o Ministério Público Federal (MPF) que entrou no caso. Só a partir daí que a coisa começou a andar, que as aulas foram suspensas. Que houve aumento das equipes do Dsei para fazer as testagens. Hoje, a vacinação dos adolescentes está melhor”, aponta a professora Cristiane Terena.
O aluno considerado o paciente zero do surto mora na comunidade Bororo, da Reserva. A comunidade é a primeira que o ônibus escolar passa para pegar os alunos. Depois ele segue para as comunidades Jaguapiru e Panambizinho: “Ou seja, ele convive no ônibus com os demais adolescentes das outras comunidades e só vai descer na última escola do itinerário, que é a Francisco Meirelles”, reforça Crisitane.
O que diz o MPF?
O procurador Marco Antonio avalia que houve falhas de comunicação e coordenação entre o Dsei, a Secretaria Estadual de Saúde e as prefeituras de Dourados e Itaporã. “Isso fez com que houvesse uma demora na reação ao surto”, avaliou em resposta por email enviada à Amazônia Real.
Salientou ainda que o MPF acompanha todas as situações relativas à Covid-19 nas aldeias indígenas de Dourados, inclusive o recente surto, por meio de um Procedimento de Acompanhamento instaurado em 2020.
“Esse acompanhamento se dá por meio de reuniões, que resulta em encaminhamentos; por meio de comunicações periódicas, quase que diárias, com a comunidade; por meio orientações à comunidade para que se evitem aglomerações (cultos, eventos, etc.)”, enfatizou o procurador.
Já a Sesai, afirma que o Dsei-MS “segue rigorosamente as orientações e normativas do Ministério da Saúde e Programa Nacional de Imunizações – PNI”. O órgão destaca que o processo de vacinação está em andamento em consonância com as recomendações da “NOTA TÉCNICA 45/2021/SECOVID”. O órgão acrescenta que 3.008 adolescentes, de 12 a 17 anos, são atendidos pelo polo de Dourados. Que eles começaram a ser vacinados no último dia 8 de outubro e “63,2% já receberam a primeira dose do imunizante”.
Conforme a Sesai, até o momento foram investigados, desde 21 de outubro, início do surto, 652 indígenas; 91 testaram positivo para Covid-19. Esses pacientes, segundo a pasta, “estão em isolamento e seguem em monitoramento pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), seguindo os protocolos de testagem e cuidados recomendados pelo Ministério da Saúde”.