“Treze de maio traição / liberdade sem asas / e fome sem pão / (...) Treze de maio – já dia 14/ a resposta gritante: / pedir / servir / calar. / Os brancos não fizeram mais que meia obrigação / O que fomos de adubo / o que fomos de sola / o que fomos de burros cargueiros / o que fomos de resto / o que fomos de pasto / senzala porão e chiqueiro”*
O trecho do poema acima é do poeta, professor, militante negro gaúcho, Oliveira Ferreira da Silveira, um dos fundadores do Grupo Palmares e um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra, data da morte de Zumbi dos Palmares.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
Em 2008, um ano antes de sua morte por conta de um câncer, Oliveira Silveira, em entrevista à Agência Brasil, explicou o surgimento da data. “Estávamos insatisfeitos com o 13 de maio. Havia um grupo de negros que se reunia na Rua da Praia (no centro de Porto Alegre) e o nosso assunto, invariavelmente, era a questão negra e o fato de o 13 de maio não ter maior significação para nós. Logo, surgiu a ideia de que era preciso encontrar outra data”. Além de Oliveira, formavam o Grupo Palmares, Antônio Carlos Cortês, Vilmar Nunes e Ilmo da Silva.
Cinquenta anos após a criação da data, e no ano em que Oliveira faria 80 anos, o Brasil de Fato RS conversou com a sua única filha, a pedagoga Naiara Rodrigues Silveira Lacerda. Mãe de dois filhos ela fala sobre seu pai, a importância da data, e sobre o fato de, apesar da data ter nascido em Porto Alegre, não ser feriado municipal.
:: Especial: Mês da Consciência Negra ::
“Quantas coisas aconteceram nesses 50 anos, claro que ainda tem muito o que ser feito, muito a melhorar. Mas a questão das cotas tanto nas universidades, quanto em alguns concursos públicos, a questão dos quilombolas, o resgate de algumas comunidades quilombolas sendo reconhecidas. A própria data sendo comemorada, lembrada, reivindicada em diversos lugares do país, feriado inclusive em alguns lugares. Pena não ser aqui no RS, não consigo entender o por quê, já que ela nasceu em Porto Alegre e justamente aqui não é feriado.”
Ela cita um dos poemas favoritos dela que se pai escreveu. “Vamos juntos! Me dá a mão e vamos juntos! Tua disposição e vamos juntos! Vamos correr nas campinas, vamos lerdear nas areias. Mas juntos, juntos, juntos”.
Para saber e conhecer mais sobre Oliveira Silveira clique aqui.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - O teu pai foi um dos fundadores do Grupo Palmares, e também é idealizador do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data criada em contraponto ao 13 de maio. Em 2021, se completa os 50 anos da data e também os 80 anos do teu pai. Gostaria que nos falasse um pouco desse legado e o significado que ela tem para ti.
Naiara - Cinquenta anos do 20 de novembro traz uma grande reflexão de tudo que essa data transformou, principalmente aqui no Rio Grande do Sul, as questões dos grupos negros, dos negros e negras gaúchas aqui do estado. Já que começou aqui, uma data porto-alegrense, gaúcha e por isso essa importância e eu tenho sempre dito isso, de nós gaúchos termos orgulho porque o 20 de novembro nasceu aqui.
E através desse dia, dessa ação do grupo Palmares, quantas coisas aconteceram nesses 50 anos, claro que ainda tem muito o que ser feito, muito a melhorar. Mas a questão das cotas tanto nas universidades, quanto em alguns concursos públicos, a questão dos quilombolas, o resgate de algumas comunidades quilombolas sendo reconhecidas. A própria data sendo comemorada, lembrada, reivindicada em diversos lugares do país, feriado inclusive em alguns lugares. Pena não ser aqui no RS, não consigo entender o por quê, já que ela nasceu em Porto Alegre e justamente aqui não é feriado.
E todo o legado do meu pai, esse trabalho persistente, porque ele foi o único que permaneceu, de todos que passaram pelo Grupo Palmares, ele foi o que deu continuidade. O grupo se extinguiu e ele formou outro grupo, e esse grupo se extinguiu e ele formou outro grupo. Ele não desistia nunca; às vezes, em alguns eventos era meia dúzia de “gatos pingados”, mas ele não desistia, ele fazia outro evento, não importava o número de pessoas que estivesse ali. Isso eu admiro muito no meu pai, a persistência, o foco, porque ele tinha objetivo, não importava se atingia cinco pessoas, aquelas pessoas podiam multiplicar, e foi assim a vida inteira.
Mesmo sendo o berço do Dia Nacional da Consciência Negra, o Rio Grande do Sul é um dos estados com menor proporção de pessoas negras no país, cuja maioria é de pretos e pardos. Vemos também no estado uma forte presença de atos racistas. Como tu vê isso?
Os atos racistas fazem parte da nossa caminhada, tem pessoas que não toleram os negros, a ascensão dos negros, o negro no mesmo lugar do branco, disputando em concursos, uma vaga na universidade, eles não se conformam com isso.
Nós não podemos nos conformar e achar que é normal o racismo
Mas nós não podemos abaixar a cabeça, nós temos que nos unir e reivindicar, gritar, procurar nossos direitos, não deixar sendo como um ato normal, não é normal, os atos racistas não são normais. Eles devem sim, ser levados à justiça, porque acho que é o único caminho, é na justiça, é doendo no bolso. Nós não podemos nos conformar e achar que é normal o racismo.
As poesias do teu pai tratam do gaúcho negro. É possível falar dessa identidade gaúcha em um estado que acabou criando um estereótipo de tradicionalismo branco?
As poesias do meu pai tratam do negro gaúcho, do trabalho no campo, enfim a valorização desse negro é justamente para botar o dedo na moleira de muita gente que não enxerga o negro como um grande construtor deste estado. A comunidade negra construiu quantas coisas aqui, a sua cultura também faz parte do Rio Grande do Sul, a cultura negra faz parte. E as poesias servem justamente para elevar e lembrar que existem negros no RS.
Doze anos após a morte do teu pai, quando completaria 80 anos, e em pleno Ano Estadual da Consciência Negra, tu anunciou a criação do Instituto Oliveira Silveira. Gostaria que nos falasse um pouco sobre ele, a importância de manter viva essa memória, trajetória.
O Instituto Oliveira Silveira é na verdade um desejo do meu pai, ele queria muito que Porto Alegre tivesse um centro de cultura negra. Eu tenho projetos deles rascunhados. E a criação desse Instituto é justamente para preservar o acervo dele. Meu pai deixou um acervo riquíssimo.
Constam ali jornais de diversos lugares do estado e fora do estado, os jornais da comunidade negra, tem documentos de clubes negros que nem os clubes tem mais. Tem poemas inéditos, rascunhados, fotos, cds, dvds, gravações, as pesquisas que ele realizou ao longo desses anos todos. Enfim, á um acervo que não existe no estado do RS, e está fechado em quatro paredes. Primeiro ficou 12 anos no apartamento dele e agora foi para casa da professora Sátira Machado, coordenado pelo professor Jorge Vivar e sendo organizado por duas estagiárias do curso de Arquivologia da UFRGS, Andréa Castilhos e Daiane Matias.
Quais os ensinamentos e legados que teu pai deixou, como era a convivência com ele?
O meu pai foi um grande companheiro, uma pessoa muito presente na minha vida, um incentivador dos meus anseios, desejos. Foi meu professor, meu grande amigo, um avô muito dedicado. E me ensinava todos dias a ter paciência, ser tolerante e lutar pelos meus ideais.
Uma convivência muito, muito boa, apesar de termos algumas diferenças, mas cada um respeitava o espaço do outro. E como colega do grupo Semba que fomos durante muitos anos, foi o nosso maior projeto. Ali, eu era uma adolescente que através desse grupo convivi com outros adolescentes que fizeram a diferença na minha vida, e esse grupo também teve grande importância para esse adolescentes. Porque ali era um espaço onde nós estávamos entre iguais, onde aprendemos muito sobre cultura negra com meu pai, e um espaço de autoestima muito importante, todos que passaram pelo grupo falam a mesma coisa.
O meu pai foi um grande companheiro, uma pessoa muito presente na minha vida
Ainda sobre o mês da consciência negra, diante do contexto que estamos vivendo, com um presidente que ataca, despreza e vilipendia a população negra, é possível manter a esperança de um país menos preconceituoso, racista e desigual? O que é preciso ser feito para mudar essa realidade?
Eu não perco a esperança. Acredito muito nas crianças e na formação que estão recebendo nas escolas. Acredito que a educação é transformadora, que através da educação, o conhecimento da forma que estamos abordando, ele informa e tem poder para transformar, mudar pensamentos e atitudes. Nossas crianças são o futuro.
Como avançar no combate ao racismo?
Trazer discussões sobre práticas racistas para dentro da escola é colocar as crianças e jovens para pensar. Mesmo que em casa tenha um ambiente racista, essa realidade pode ser mudada.
E por fim gostaria que tu nos contasse um pouco da tua história. Quem é Naiara?
Meu nome é Naiara Rodrigues Silveira Lacerda, sou pedagoga, especializada na educação de surdos, supervisora na Escola Municipal de Ensino Fundamental Bilíngue para Surdos Vitória, em Canoas.
Tenho como legado preservar a memória e acervo do meu pai, Oliveira Silveira. Trabalho na Associação Negra de Cultura como secretária geral, e dentro da Associação temos três grandes projetos que são o Sopapo Poético, o Informativo Negra Aldeia e a Liga da Canela Preta que estará comemorando 101 anos dia 27 de novembro, um grande evento ali no Parque Marinha do Brasil, com jogos com times negros de diversos lugares, de Porto Alegre e do interior do estado.
Dia 30 temos a inauguração da grande exposição dos 50 anos do 20 de novembro no Memorial do Rio Grande do Sul, é uma exposição histórica. Estamos trabalhando nela desde o ano passado, sou uma das curadoras, é uma exposição que vai de novembro de 2021 a maio de 2022. Será inaugurada dia 30, às 18h30.
*Treze de Maio
Treze de maio traição,
liberdade sem asas
e fome sem pão
Liberdade de asas quebradas
como
........ este verso.
Liberdade asa sem corpo:
sufoca no ar,
se afoga no mar.
Treze de maio – já dia 14
o Y da encruzilhada:
seguir
banzar
voltar?
Treze de maio – já dia 14
a resposta gritante:
pedir
servir
calar.
Os brancos não fizeram mais
que meia obrigação
O que fomos de adubo
o que fomos de sola
o que fomos de burros cargueiros
o que fomos de resto
o que fomos de pasto
senzala porão e chiqueiro
nem com pergaminho
nem pena de ninho
nem cofre de couro
nem com lei de ouro.
O que fomos de seiva
.......................de base
..................... de Atlas
o que fomos de vida
........................e luz
chama negra em treva branca
.......................quem sabe só com isto:
que o que temos nós lutamos
para sobreviver
e também somos esta pátria
em nós ela está plantada
nela crispamos raízes
de enxerto mas sentimos
e mutuamente arraigamos
....quem sabe só com isto:
que ela é nossa também, sem favor,
e sem pedir respiramos seu ar
....a largos narizes livres
bebemos à vontade de suas fontes
... a grossas beiçadas fartas
tapamos-destapamos horizontes
....com a persiana graúda das pálpebras
escutamos seu baita coração
....com nosso ouvido musical
e com nossa mão gigante
batucamos no seu mapa
....quem sabe nem com isso
e então vamos rasgar
a máscara do treze
para arrancar a dívida real
com nossas próprias mãos.
Oliveira Silveira
Banzo - Saudade Negra
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko