Entrevista

“Bolsonaro passará para a história como um coitado enfezado”, afirma Mario Prata

O irreverente escritor, dramaturgo, jornalista e cronista mineiro fala sobre sua literatura e desatinos do Brasil atual

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Mario Prata participa de debate dos Diálogos Contemporâneos, nesta terça-feira (23), com o tema do envelhecimento - Foto: Acervo pessoal

Novelas como Estúpido cupido, Sem lenço nem documento e Bang Bang, peças de teatro como Besame mucho, roteiros para O casamento de Romeu e Julieta e outros filmes e, sobretudo, algo como 80 livros, sem contar uma batelada de 3.000 crônicas. Este é Mario Alberto Campos de Morais Prata - nome de cartório que rivaliza em extensão com sua produção copiosa em meio século no front da escrita.

Mineiro de Uberaba, Mário Prata, 75 anos, é um dos palestrantes do evento Diálogos Contemporâneos. Sua palestra será nesta terça-feira (23), às 19h, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre.

Foi chamado para falar sobre envelhecimento, coisa que o surpreendeu. Afinal, não é geriatra. Custou dois dias para a ficha cair. “Me convidaram porque sou velho”, sacou. O que encarou com a mesma graça com que responde às perguntas sobre a invenção do futebol pelo camarada de Sherlock Holmes, a era bolsonarista, o medo do coronavírus e os desatinos do Brasil atual.

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Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Você está lançando O drible da vaca que, claro, é um livro que trata de futebol. Mas o mais impressionante é que o narrador do livro é o doutor Watson, o velho amigo de Sherlock Holmes. O que há de elementar nesse envolvimento de Watson com o rude esporte bretão?

Mario Prata - Esse livro foi escrito sem querer. Nunca tive a pretensão de escrever um livro sobre a invenção do futebol. Mas tava cismado porque o tamanho do gol era aquele exatamente. Sabia que era medida inglesa. Descobri que era a medida exata de um portão do prédio da administração da universidade de Cambridge. A partir daí, entrei numa loucura de pesquisa sobre Cambridge e de Oxford. Então, comecei a pesquisar a Inglaterra, Cambridge, Londres, Irlanda, e fui descobrindo coisas.

Eu queria (fazer) parecer que o autor era inglês. E lembrei do Watson, do “Elementar, meu caro, Watson”. Sempre tive pena dele porque nunca contou uma história dele. Passou a vida narrando as do Sherlock Holmes. Bom, a partir daí liberou a loucura. Comecei a usar textos de autores da época, só que sempre dizendo no rodapé a quem pertencia. E foram surgindo personagens, a Irlanda entra muito na história também. Tem um personagem irlandês que roubei do James Joyce, que é o nome de um livro, mas que parece nome de personagem, Finnegans Wake. Então, Finnegans Wake trabalha junto com o Watson pra criação do futebol.

É melhor criar um louco do que descrever um louco

BdF RS - Você já disse numa entrevista que seu trabalho consiste em transformar bobagem em literatura. Como temos na presidência da república um grande produtor de bobagens diárias, dá pra dizer que Jair Bolsonaro pode ser uma fonte literária?

Mario Prata - A crônica é a arte de transformar o banal, a bobagem, em arte. Quanto ao produtor de bobagens que você tá citando, o Bolsonaro, ele não pode ser uma fonte literária, porque ele é doente, ele é maluco, ele é psicopata, entre outras demências. E se juntou a um bando de malucos. Só tem maluco lá. Não tem uma pessoa que saiba o que é meio ambiente. Acham que meio ambiente é no meio da sala ali, entendeu? O meio e o ambiente, o ambiente do meio. É muito triste.

Então, não vale a pena transformar num personagem, porque ele já é um personagem. Seria muita redundância e perder tempo, porque ele gerou filhos que aprimoraram a cabeça dele. Imagina aquele Eduardo na presidência, imagina aquela menina quem vem aí? Tá com 13 anos, tá no exército, e já entrou ilegalmente. Não dá. O leitor não merece uma coisa dessas. É melhor criar um louco do que descrever um louco.

BdF RS - Com qual personagem literário você compararia Bolsonaro?

Mario Prata - Eu nunca tinha pensado em comparar com um personagem literário. Ele tem um pouco do Dom Quixote, de lutar contra inimigos imaginários, de enfrentar moinhos de vento. Mas é uma honra muito grande pro Bolsonaro ser comparado a Dom Quixote, e muita gente por aí, mas ele é único.

BdF RS - Você é autor de um dicionário engraçadíssimo de português de Portugal que é o Schifaizfavoire. Você acha que o bolsonarês também poderia valer um dicionário?

Mario Prata - Eu tô vendo que você tá dando muita importância pro Bolsonaro. Imagina se ele vale um dicionário igual eu fiz o Schifaizfavoire, de Portugal, que não era bem um dicionário, eram crônicas em forma de dicionário. O Bolsonaro vai passar pra história como um genocida, um coitado. Sabe, tem horas que eu tenho até dó dele...

Não foi só o capitão. Foram aqueles generais todos, ignorantes

BdF RS - Em outro livro seu, Uns Brasileiros, você “entrevista” Dom João VI, a Marquesa de Santos e outros personagens da história do Brasil.  Quem é que você não “entrevistou” e gostaria de entrevistar?

Mario Prata - Teve um personagem da história do Brasil, da cultura brasileira mais especificamente, que tentei entrevistar. Fiz a pesquisa. Mas o Aleijadinho, coitado, teve uma vida tão triste. Foi tão horrível a vida dele. Ele tinha uma doença física em que o corpo foi deteriorando, entortando. Usava as mãos no trabalho, construía instrumentos pra poder trabalhar, fazer aquelas obras-primas todas. E vivia sozinho com um escravo. Ele saía num burrinho, o Aleijadinho, com um chapelão, uma manta grande, e esse escravo andava com ele por Ouro Preto. De noite, pra ninguém vê-lo, porque era muito deformado. E aí tentei bater um papo com ele, mas não dava pra fazer um troço com um personagem desses. Dava pra fazer uma entrevista séria mas aí saía do espírito do livro.

BdF RS - Lá pelos idos de 1968, você atuava como segurança das lideranças nas manifestações estudantis. Você tinha mais medo naquela época, ainda anterior ao AI-5, ou tem mais medo agora? Acredita naquela velha frase “as instituições estão funcionando”?

Mario Prata - Sessenta e oito foi um dos anos culturais mais ricos que já teve o Brasil. Aconteceu de tudo. Apareceu todo mundo que até hoje tá fazendo cultura nesse país. Bom, naquela época eu tinha muito mais medo do que agora. Tinha medo de ser preso a qualquer momento. Fui detido duas vezes, interrogado e (levei) uns petelecos na orelha. Nada grave. Tinha gente que sumia. Sumia colega de escola, primo, diretora de teatro, muita gente. Mais meus amigos Sampaio, Rubens Paiva, sumiam, sumiam.


"Tenho muita esperança que qualquer pessoa que for eleita que não seja o Bolsonaro, vai melhorar" / Foto: Acervo pessoal

Agora, tive muito medo da pandemia. Um medo real por eu ter tido ponte de safena, um cancerzinho na boca, fui pré-diabético. O bichinho tá atrás de mim aí. Me cuidei muito. E tem o problema desse genocídio ou não do homem aí, que é uma discussão que vai durar alguns séculos. É um genocídio geral. Não foi só o capitão. Foram aqueles generais todos, ignorantes. A ignorância cria esses imbecis.

Tenho muita esperança que qualquer pessoa que for eleita que não seja o Bolsonaro, vai melhorar. Porque igual a ele não existe no mundo. Nada. É um coitado enfezado. Lembrando que coitado é aquele que sofre coito, e enfezado é o cara que tá cheio de fezes. Isso é o homem pra mim.

BdF RS - Um secretário da cultura que emula Joseph Goebbels, outro que ignora quem foi Lina Bo Bardi, um ministro da educação que confunde kafta com Kafka. Depois da tempestade, qual vai ser o legado cultural da Era Bolsonaro?

Mario Prata – Você mesmo ou você mesma jamais saberiam qual vai ser o legado cultural da era Bolsonaro. É isso aí, essa turma que você citou aí, entendeu? E isso são os que põem a cabecinha de fora. Porque é complicado, é tudo maluco. Temos um presidente maluco, mas vai acabar. Que legado, hein?

O Brasil tá muito triste mas amanhã será outro dia

BdF RS - Você tem uma verve, uma graça, uma pegada de humor no que você escreve. O Brasil, depois das 610 mil mortes e da esculhambação geral do país, ainda é engraçado?

Mario Prata - O Brasil não tá engraçado, tá triste. É uma tristeza que, além das famílias, essas mais de 600 mil pessoas. Tenho parentes nisso. Vai ter missa de um ano, lembrar crianças sem pai, sem mãe. O país tá muito triste. Mas o brasileiro tem uma capacidade de superar as coisas, os sobreviventes, vamos dizer assim, que amanhã será outro dia.

Tem várias letras do Chico Buarque que ele escreveu pra ditadura de 64, nos anos 60, que servem até hoje: “Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia”. Só não digo que a gente vai rir dessa época porque teve a pandemia, que foi uma das maiores tristezas que vi na minha vida de 75 anos, que se abateu sobre o Brasil. Quer dizer, alguma coisa foi pior que o Bolsonaro. E junto com Bolsonaro então, piorou.

Me chamaram pra falar sobre envelhecimento porque sou velho

BdF RS - No evento Diálogos Contemporâneos, teu tema é o envelhecimento e o espaço social dos que não são mais jovens. Como tem sido envelhecer?

Mario Prata - Quando recebi o convite pra participar dos Diálogos Contemporâneos, fiquei muito contente. Primeiro, estamos voltando às palestras. Sair de casa e dialogar com as pessoas. Segundo, os temas são muito interessantes. Não são políticos, não são partidários, não são nada. São sobre a vida do Brasil, do brasileiro. Duas horas de liberdade, sem máscara, pelo menos eu no palco. Quando recebi esse convite, falei: “Mas não sou psicólogo, não sou geriatra. Porque tão me convidando pra falar sobre envelhecimento?”

Demorou uns dois dias pra eu cair na real: me convidaram porque sou velho. Já vinha pensando há uns cinco anos que tava ficando velho. Mas a gente não acha que tá ficando. O que descobri até os 75 anos, com essa idade, que continua como se eu tivesse 35? Claro, você é mais lento e, as vezes, ser mais lento em qualquer atitude, qualquer gesto, é até melhor. Você perde aquela pressa. Mas o problema é que os jovens não querem ouvir muito os velhos.

É engraçado como no público que tem me visto, tem mais jovens do que velhos. E eles prestam atenção, gostam das coisas que falo. E me lembra muito uma frase do grande Nelson Rodrigues quando respondeu à pergunta “Que recado você tem pra dar pros jovens?” E ele falou assim: “Jovens, envelheçam”. Não é ruim envelhecer não. Acho que é igual. Você tem uma cabeça, a cabeça não envelhece. É o corpo que começa a dar sinais. Quantos remédios você toma? Tô tomando seis de manhã, cinco à noite. Quer dizer, eu não tô assim ainda, mas a cabeça tá a mil.

A cabeça escreveu um livro, “O drible da vaca”. E tô terminando um outro chamado “Que porra é essa?”, que não tem nada a ver nem com Bolsonaro e muito menos com a pandemia.


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno e Marcelo Ferreira