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COP26: Mais um acordo feito à medida dos interesses das corporações e países do Norte Global

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Faixas em intervenção da Amigos da Terra na COP26, com dizeres: “Zero líquido não é zero”, em referência à proposta de “emissões líquidas zero”, e “Não ao mercado de carbono” - Amigos da Terra Internacional
O fardo da redução das emissões foi colocado sobre os ombros dos países em desenvolvimento

O “1,5°C” tornou-se um slogan na última 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26). O número se refere ao limite de aumento de temperatura média global (em graus Celsius), que os países acordaram se esforçar para não superar. Esse acordo foi feito na COP21 em Paris, na França, e estabelecia especificamente como meta que o limite do aquecimento global fosse mantido “bem abaixo de 2°C”, e “de preferência em 1,5 graus Celsius”. 

Como as corporações contaminantes e responsáveis por violações de direitos humanos no Sul Global, que usam slogans como “construindo um futuro melhor”, a presidência da COP26, nas mãos do Reino Unido, comemorou que o Pacto Climático de Glasgow “manteve o 1,5°C vivo”. Uma afirmação que, no máximo, pode ser considerada uma mera expressão de desejo. 

Em 2015, a Amigos da Terra Internacional (ATI) denunciou, no final da COP21, que o Acordo de Paris não estipulou cifras nem metas ambiciosas que pudessem garantir o cumprimento do objetivo de limitar o nível de aquecimento global.

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Apenas incluiu as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC), que são planos de ações de combate às mudanças climáticas de cada país, não vinculantes. Em um relatório divulgado em 17 de setembro deste ano, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas revelou que, com essas “contribuições”, a temperatura média global, até o final do século, aumentará 2,7°C.

A COP26 finalizou o chamado livro de regras do Acordo de Paris, que entre os pontos não resolvidos nos últimos anos tinha a regulamentação do mercado de carbono. Este é um dos mecanismos que denunciamos junto a movimentos indígenas e camponeses como parte das falsas soluções à crise climática. 

Em linhas gerais, o mercado de créditos de carbono permite que países coloquem em sua conta de "redução" de gases de efeito estufa (ou melhor dizendo, de uma suposta neutralização, sem reduzir de fato suas emissões), créditos de carbono que compram de países que não contribuem para piorar a crise climática, por exemplo, mantendo florestas em pé. Trata-se quase explicitamente da compra do “direito” de contaminar. 

Esse tipo de mecanismo é muito defendido por aqueles países e corporações que mais têm contribuído historicamente com as emissões, e que deveriam, portanto, concentrar esforços em cortá-las. Além de não representar uma ferramenta de combate às mudanças climáticas, essas propostas que operam com os mesmos critérios da compensação criam outros problemas, como mostramos na publicação REDD+, O Mercado de Carbono e a Cooperação Califórnia-Acre-Chiapas: legalizando os mecanismos de despossessão

Sob a mesma lógica, o Pacto Climático de Glasgow “reconhece” que para atingir a meta do 1,5°C, é necessária “a redução das emissões globais de dióxido de carbono em 45% até 2030 em relação ao nível de 2010 e até zero líquido em meados do século”.

::: Entenda o que são as Soluções baseadas na Natureza (SbN): leia a publicação “Um lobo em pele de cordeiro” ::: 

A meta de emissões líquidas zero é mais uma fuga do problema, uma falsa solução para a crise climática

Mais uma vez, trata-se de ajustar as contas das emissões de gases de efeito estufa incluindo ações que “compensariam” essas emissões, como o plantio de árvores ou a captura do carbono com diferentes novas tecnologias (sendo que muitas delas estão em fase de desenvolvimento). 

Um dos problemas é que o acordo pede a todos os países a comunicarem as estratégias para atingir essa meta a meados do século. Inclusive utilizando de maneira muito questionável o termo “transição justa” tendo como base a política de “zero líquido” (no parágrafo 32 do acordo), como aponta Camila Moreno num balanço da COP26 elaborado para a o Grupo Carta de Belém (GCB). (Leia também o Manifesto rumo à COP 26 do GCB: Em nome do clima, avança a espoliação dos territórios).

A proposta apaga ainda mais o critério de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, já debilitado pelo Acordo de Paris. Segundo o relatório "Mudanças Climáticas 2021: a Base das Ciências Físicas, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, de 1850 até 2019 foram emitidos 2,390 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Os grandes responsáveis durante todo esse tempo foram os países do Norte Global, como explica Doreen Stabinsky em nota da Amigos da Terra Internacional.

Agora, o limite para não fazer com que a temperatura aumente mais de um 1,5°C, seria não emitir mais de 300 bilhões de toneladas de CO2. Por que países do Sul Global, que tiveram uma participação mínima, devem fazer o mesmo esforço que países que emitiram muito mais CO2 historicamente, e inclusive continuarão emitindo, graças à lógica de compensação? 

::Leia também: Julgamento popular da COP26 culpa ONU por inação e cumplicidade com quem destrói o planeta::

O “zero líquido” no Pacto de Glasgow não é só desigual por equiparar as responsabilidades, é também por jogar as metas quase três décadas para frente. Quem mais está sofrendo com os impactos das mudanças climáticas são os povos que menos contribuíram com o problema. As responsabilidades do Norte Global e das corporações precisam ser assumidas de forma urgente!

Sara Shaw, co-coordenadora para Justiça Climática e Energia da Amigos da Terra Internacional afirmou que “o fardo da redução das emissões foi colocado sobre os ombros dos países em desenvolvimento”, com o Acordo de Glasgow.

“As metas são extremamente fracas e cheias de lacunas que permitem aos países ricos evitar sua responsabilidade na redução das emissões e no financiamento a países em desenvolvimento. Países ricos e empresas estão recebendo permissão para continuar poluindo por décadas, com base na fantasia de equilibrar suas emissões com compensações e soluções tecnológicas”.

As soluções tecnológicas a que se refere Shaw têm a ver com mais um dos problemas: além do reflorestamento, a proposta do “zero líquido” se apoia em uma série de tecnologias que nem sequer passaram da fase de projetos. Trata-se de projetos de geoengenharia que entram na categoria de tecnologias de Remoção de Dióxido de Carbono (CDR).

O Grupo ETC e a Fundação Heinrich Böll criaram uma ferramenta de monitoramento desse tipo de projeto, e encontraram que as corporações de combustíveis fósseis possuem uma alta participação em seu financiamento. 

Mais uma COP do Lobby

O avanço desses negócios disfarçados de soluções climáticas não surpreende ao constatar a influência das corporações no âmbito da COP de Mudanças Climáticas. Não contentes com ser a conferência mais excludente da história, por conta das restrições de vistos, altos custos das passagens e o apartheid das vacinas, a COP26 escancarou as portas e jogou o tapete vermelho para todas as corporações que fazem parte do problema.

Segundo a organização Global Witness, a COP26 foi inundada por, pelo menos, 503 lobistas representando 100 empresas de combustíveis fósseis. O lobby dos combustíveis fósseis na COP “foi maior do que o total combinado das oito delegações dos países mais afetados pelas mudanças climáticas nas últimas duas décadas - Porto Rico, Mianmar, Haiti, Filipinas, Moçambique, Bahamas, Bangladesh, Paquistão”, afirma a organização no levantamento. 

O Brasil de Bolsonaro tenta subir no trem dos negócios climáticos

Se por um lado é certo que os países do Norte Global devem enfrentar sua dívida climática com os países do Sul Global para realizar a transição energética e proteger a biodiversidade e florestas, por outro, no caso do Brasil, a falta de recursos não passa de uma mera desculpa do governo Bolsonaro para não proteger os biomas brasileiros.

Depois de ter rejeitado sediar a COP25 no Brasil e um evento preparatório em Salvador (BA) para a mesma, o governo Bolsonaro parece ter entendido o espírito de negócios das COPs em Glasgow. 

"Temos uma preocupação sobre o financiamento climático [...] o volume ainda não chegou ao que era prometido", disse o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, referindo-se ao compromisso que os países assumiram no Acordo de Paris de USD 100 bilhões anuais por ano para países em desenvolvimento. 

A demanda poderia ser até justa, se não fosse pelo fato de que o governo Bolsonaro não só paralisou o uso de financiamentos externos para a defesa dos biomas do país, como é o principal promotor dos desmatamentos, queimadas e ataques aos povos que defendem os campos, águas e florestas. 

Pois se não foram esses povos, que lutam por Justiça Climática e detém soluções reais e emancipatórias para o cuidado dos territórios, da biodiversidade, da água e do clima, que celebraram ao final da COP26, mas o anfitrião, Reino Unido, e seus aliados do Norte Global e das corporações, que levantaram antecipadamente um troféu vazio de “1,5°C”, ainda não é hora de comemorar.

É preciso ação imediata com caráter estrutural para garantirmos a sobrevivência a longo prazo da nossa própria espécie e do planeta. Diferente dos caminhos adotados nessa COP26, é preciso discutir amplamente o caminho para uma Transição Justa e Popular, que dê conta das soluções já apontadas pelos povos que mantêm as florestas em pé. Povos indígenas, quilombolas, camponeses precisam ser sujeitos ativos desse processo, afinal não há saída para o clima sem incluir os povos que colocam em prática, hoje, as soluções para coexistir com a biodiversidade. Ao invés de ver na natureza um mero produto para chegar matematicamente aos resultados necessários.

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*Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vinícius Segalla