O projeto de concessão das atividades de ecoturismo do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar) à iniciativa privada pelo governo João Doria (PSDB) enfrenta a oposição de moradores de comunidades tradicionais, pesquisadores, monitores ambientais, prestadores de serviço, donos de pousadas e agências de turismo.
Com preocupações em comum, representantes desses grupos se uniram para formar o coletivo “Petar Sem Concessão”. Segundo eles, o processo é realizado “de cima para baixo” e possíveis impactos socioambientais não foram levados em conta.
Localizado entre Apiaí (SP) e Iporanga (SP), no sul do estado, e criado por decreto em 1958, o Petar tem 35,7 mil hectares. A área abriga a maior porção de Mata Atlântica preservada do Brasil e é reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como patrimônio da humanidade.
A paisagem, composta por montanhas, vales, cachoeiras, rios e centenas de cavernas, é propícia para trilhas, aulas de educação ambiental e esportes de aventura.
A concessão abrange 158,76 hectares. Segundo o governo paulista, entre os objetivos do processo está a aplicação de investimentos para conservação, operação, manutenção e exploração econômica do parque pela iniciativa privada.
O coletivo “Petar Sem Concessão” e o projeto Minha Sampa elaboraram uma carta, com cerca de 10 mil assinaturas, para pressionar o governador João Doria e o secretário Marcos Penido, de Infraestrutura e Meio Ambiente, contra a iniciativa.
Os cidadãos também lançaram uma petição-online contra a concessão, com cerca de 6,3 mil assinaturas. O número é superior à população de Iporanga, município vizinho ao parque, que tem 4,2 mil habitantes.
No último dia 18, o deputado estadual Caio França (PSB-SP) protocolou um requerimento de informação com 10 questionamentos sobre o projeto de concessão. Entre eles, “como as comunidades quilombolas e indígenas serão integradas ao programa de concessão do Petar sem que isso afete sua cultura e seus costumes.”
As respostas da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima) sobre as críticas citadas nesta matéria estão ao final do texto, no intertítulo Outro Lado.
Audiências públicas
Os documentos que baseiam o processo de concessão estão disponíveis no site da Sima, que abriu consulta pública em 20 de outubro para ouvir sugestões sobre o projeto.
As contribuições devem ser feitas por escrito e enviadas até as 18h do dia 26 de novembro para os endereços [email protected] e [email protected].
As informações colhidas devem subsidiar a modelagem jurídica, técnica e econômico-financeira da concessão das atividades de visitação, educação ambiental e ecoturismo do parque.
Nesta segunda-feira (22), às 15h, haverá uma audiência sobre o tema na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), convocada pelo deputado Carlos Giannazi (PSOL), crítico ao projeto.
Na quinta (25), está prevista uma nova audiência pública, organizada pelo governo de São Paulo em ambiente virtual, para apresentar o projeto e colher sugestões para o aprimoramento da modelagem jurídica, técnica e econômico-financeira do processo de concessão.
O evento será transmitido em tempo real. A participação para perguntas pode ser feita por meio do formulário online. As inscrições começam às 9h do dia 25 pelo site da Sima.
O Brasil de Fato conversou com arquiteta urbanista Ana Beatriz Nestlehner, mestranda em Planejamento Territorial, ex-diretora de obras de Iporanga e integrante do coletivo “Petar Sem Concessão”.
Na visão dela, o fato de não haver sobreposição entre a área destinada a concessão e os locais onde vivem comunidades quilombolas e tradicionais não exclui a necessidade de consulta prévia, livre e informada a essas famílias. Esse direito está previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na lei que rege o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).
“Toda a cidade de Iporanga está dentro da chamada zona de amortecimento. Assim como a atividade humana impacta a unidade de conservação, a unidade também impacta a atividade humana. Como eu posso dizer que, por não haver sobreposição, não há impacto? Essa é uma visão simplista”, ressalta Nestlehner.
Na visão da especialista, realizar uma audiência pública virtual não garante participação popular na construção do projeto de concessão.
“Metade da população de Iporanga mora na zona rural, 70% recebem Bolsa Família. Não há transporte público, não tem lan house, e as escolas da zona rural não têm internet. Qual a condição dessas pessoas de participação remota em uma atividade? Às vezes, o que é legal não é moral nem democrático”, critica.
“A tecnologia está sendo usada para marginalizar e excluir, não para incluir. A participação tem que ser feita em uma linguagem palatável, clara, com transparência no acesso aos documentos. Nada disso foi garantido.”
A entrevistada também questiona a pressa de encaminhar o processo em meio à pandemia, sem os devidos estudos sobre os possíveis impactos socioambientais.
A convite do coletivo, moradores gravaram vídeos enfatizando o problema:
“Somos contra a concessão porque não nos comunicam, não fazem reunião, não chamam a gente. A gente não fica sabendo de nada”, afirma Mario Aparecido Santana, morador do Ribeirão de Iporanga.
“A maneira como está sendo feita essa concessão não nos favorece. Temos, sim, interesse no turismo, mas de base comunitária. Queremos participar das decisões”, detalha Rosalina da Silva, nativa da mesma localidade.
Um dos monitores ambientais do parque, conhecido como Cidão, explica sua preocupação:
“Por enquanto, fizeram tudo debaixo dos panos, sem consultar as nossas comunidades. Antigamente, as pessoas batiam na nossa porta, perguntavam com educação, queriam saber como estávamos. Hoje, chegam querendo invadir, decidir o que fazer com a nossa vida.”
A Sima alega que área destinada à concessão é inteiramente composta por trechos onde a visitação já acontece ou é prevista, e que os territórios das comunidades tradicionais estão fora do projeto.
A gestão da Unidade de Conservação (UC) e a fiscalização das áreas ambientais continuarão sob responsabilidade da Sima e da Fundação Florestal, e os roteiros de trilhas deverão ocorrer com monitoria ambiental autônoma.
Privatização ou concessão
Embora juridicamente o processo se caracterize como concessão, a ativista Ana Beatriz Nestlehner, do coletivo “Petar Sem Concessão”, ressalta o poder que a concessionária terá sobre a área.
Os documentos abrem margem para a iniciativa privada alterar os preços de entrada no parque, criar novos roteiros, construir pousadas e até oferecer passeios de jipe – o que não está previsto no plano de manejo do Petar.
“Eles gostam muito de falar que a concessão não é uma privatização. Mas, como é uma concessão de uso de área, que prevê transferência de posse direta e exploração comercial livre, como está escrito em contrato, a gente entende que é uma privatização temporária, por 30 anos”, critica.
“E um impacto de 30 anos na vida de alguém, dependendo da idade da pessoa, é um impacto permanente.”
O Instituto Socioambiental (ISA) tem preocupações semelhantes.
“É uma concessão que não propõe desenvolvimento para o município. Todas as categorias sociais e econômicas da cidade ficarão com os ônus, e a concessionária ficará com o bônus. É o poder do dinheiro que comprará o direito de explorar a região, não a tradição nem o esforço das pessoas que vivem na região”, afirmou Fernando Prioste, advogado do ISA, durante audiência realizada em Iporanga na semana passada.
“A proposta foi construída de forma unilateral, sem diálogo com a sociedade como um todo, sem observar o direito de consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais.”
“Um golpe contra a cidade”
Natural de Iporanga e dono da pousada Núcleo Terra desde 1997, Julio Franco reforça que faltou participação dos moradores e empresários locais na elaboração do projeto de concessão.
“Eles estão fazendo uma consulta em cima de algo que já está pronto. Não foi construído junto”, afirma.
“O principal já está definido: uma empresa de fora, que será dona do negócio por 30 anos, poderá organizar os passeios e oferecer hospedagem, será detentora do nome [Petar] e dos direitos de imagem. Essa concessionária será uma concorrente desleal frente a toda uma cadeia que já está aqui.”
Hoje, funcionam no município 25 pousadas, nove agências de turismo e 300 monitores.
“Com a concessão, não terá espaço para todo mundo, porque as cavernas podem receber um número limitado de pessoas por dia. Então, necessariamente afetará os negócios que já existem hoje”, ressalta Franco.
Questionado se os empresários locais não poderiam se unir para disputar a concessão, o dono da pousada Núcleo Terra é categórico:
“Para ganhar a concessão, tem que entrar com R$ 8 milhões. Se somar todos os empresários, não chega nesse valor”, diz.
“O turismo é feito pelos moradores locais desde a década de 1960, e sempre em harmonia com a natureza, por isso a área está preservada. Como é que eles vão ganhar um monte de dinheiro sem descaracterizar isso, e sem levar em consideração nossas contribuições?”
A audiência pública de quinta-feira, na interpretação de Franco, é apenas uma formalidade. Conforme os documentos disponibilizados pela Sima, ele avalia que os danos à economia do município são inevitáveis:
“Iporanga não tem outra alternativa econômica. O turismo é um braço forte, que gera renda e emprego. [A concessão] é um golpe contra a cidade, não apenas contra o Petar. A impressão que eles dão é que a ideia do turismo é nova, e vai salvar a cidade. Mas tem uma cidade que já vive desse turismo.”
Outro lado
Em seus canais oficiais, a Sima ressalta estudos que apontam os possíveis benefícios da concessão: o número anual de turistas poderia saltar de 39 mil para 114 mil até o fim da concessão, gerando emprego e renda às comunidades.
Ainda segundo a secretaria, o projeto prevê a capacitação de monitores locais, com continuidade do serviço do monitor ambiental autônomo, e melhorias nos sistemas de água e gerenciamento de resíduos.
O Brasil de Fato conversou por telefone com Roberta Buendia, assessora técnica da Sima, e apresentou os questionamentos.
Buendia reafirmou que não há moradores na área destinada à concessão e enfatizou que o processo abrange apenas 0,04% do território Petar– dois dos cinco núcleos não seriam impactados.
“Houve uma etapa inicial de compreensão de como é a operação do turismo e a atuação da Fundação Florestal. Foi feita uma proposta preliminar, para a gente poder adequar em uma documentação contratural, de longo prazo, seguindo o rito do governo do estado no processo de concessão”, explica a assessora.
“Em paralelo, houve uma série de escutas presenciais com a comunidade, com o conselho e com os monitores, desde junho. As contribuições deles foram levadas em conta, e continuam sendo bem-vindas. Por exemplo, a continuidade do monitor ambiental autônomo passou a ser uma exigência do contrato.”
Roberta Buendia ressalta que a Fundação Florestal continuará responsável pelo cadastro e pela capacitação dos monitores. Sobre os impactos à economia de Iporanga, a assessora respondeu:
“O projeto visa justamente ao desenvolvimento regional e propõe o fomento e a valoração da economia local, por meio de pratos típicos, venda de artesanatos, eventos obrigatórios de educação ambiental. Isso está refletido na documentação.”
As pousadas e agências de turismo que atuam hoje não serão prejudicadas, segundo a assessora técnica da Sima.
“A concessão não se sobrepõe às demais atividades. A operação das cavernas continua sob responsabilidade da Fundação Florestal. A obrigação da concessionária será dar instrumentos, garantir a segurança dos visitantes e desenvolver atividades complementares no entorno”, diz.
“Sobre os supostos impactos ambientais, o pressuposto da operação é que esteja de acordo com o plano de manejo. Ele deve ser respeitado na íntegra, e a concessão não muda isso.”
Questionada sobre a dificuldade de participação na audiência pelas comunidades rurais e tradicionais, a Secretaria afirma que foram garantidos pontos locais de apoio, com acesso à internet – um em Iporanga, outro em Apiaí.
“Isso está previsto no termo de convite da audiência. Serão respeitadas as regras de distanciamento e uso de máscaras, considerando a capacidade de cada local” finaliza Buendia.
Edição: Leandro Melito