Tinha só um funcionário, um ex-ferroviário aposentado, apaixonado pelos trens, que cuidava de tudo
Há décadas, estava pesquisando sobre cultura popular na região Norte, cheguei a Porto Velho e soube que os antigos trens da ferrovia Madeira-Mamoré, que ia até a fronteira boliviana, estavam abandonados num lugar chamado Santo Antônio, cidade fantasma, pois todos os moradores foram transferidos para Porto Velho.
Fui lá e vi com tristeza a floresta vigorosa tomando conta de tudo, trens enferrujados sendo vencidos por ela, com árvores saindo pelo teto dos vagões e pelas chaminés das locomotivas. Voltei indignado pra Porto Velho e fui ao Museu da Madeira-Mamoré, na antiga estação ferroviária.
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Tinha só um funcionário, um ex-ferroviário aposentado, apaixonado pelos trens, que cuidava de tudo com seu próprio dinheiro, apesar do museu ser do Estado. Até vassoura era ele que comprava.
Conversamos sobre o motivo da desativação da ferrovia e ele disse que alegaram que ela era deficitária. Mas argumentou que era uma coisa falsa. Se contassem só o custo de manutenção da ferrovia e o que era arrecadado com as passagens e o transporte de cargas, era mesmo.
Mas as mercadorias bolivianas pagavam muitos impostos e acabam dando lucro ao Estado. Com a paralisação da ferrovia, os bolivianos passaram a exportar os produtos da região através do Chile, que passou a lucrar com os impostos deles.
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E, de repente, o ex-ferroviário se lembrou: no dia seguinte seria o quinto aniversário da desativação da ferrovia. O último trem havia circulado naquela data.
Saí dali direto pro palácio do governo. Como pesquisador do Sesc eu teria mesmo que falar com o governador. A entidade determinava que a gente falasse com as autoridades, contando sobre o trabalho que estávamos fazendo e pedindo apoio.
Já tinha pedido audiência com o governador, mas não tinha marcado data e horário. Então resolvi ir direto ao Palácio, sem horário marcado.
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Por incrível que pareça, dei bronca no governador. Falei sobre o descaso dele em relação ao Museu e às ruínas da ferrovia e perguntei se ele se lembrava que o dia seguinte seria o quinto aniversário da desativação daquela ferrovia histórica.
Não sabia, pediu desculpas, e na hora, na minha frente, determinou um monte de comemorações e mais apoio ao Museu. As comemorações foram realizadas, eu estava lá. O apoio ao Museu, não sei.
Uma pergunta a quem mora em Porto Velho: o Museu da Madeira-Mamoré ainda existe? E é bem cuidado?
*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Letícia Viola