O rádio permanece vivo e faz parte da vida das mulheres
Por Fabiana de Oliveira Benedito*
Enquanto realiza suas tarefas, a trabalhadora doméstica carrega consigo um radinho, pelo qual ouve notícias e músicas. Nos trajetos cotidianos, nos sons dos veículos, as rádios são companhias populares para as trabalhadoras e os trabalhadores, que muitas vezes sabem de cor os nomes de jornalistas e programas. Nas casas, as mulheres executam os trabalhos necessários para sustentar a vida e, enquanto isso, escutam programas de rádio. Essas são imagens familiares para a maior parte de nós, que, desde crianças, vemos o rádio acompanhar e embalar o cotidiano de muitas pessoas.
Nos últimos anos, as redes sociais digitais e as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) se tornaram cada vez mais centrais nos processos comunicativos. Suas potencialidades (e contradições, embora elas apareçam com menos frequência) acabam, muitas vezes, hegemonizando o debate sobre comunicação, mas a partir de nossas experiências cotidianas e de construção de movimento, sabemos que a internet é somente uma das ferramentas possíveis para as práticas comunicativas. O rádio permanece vivo e faz parte da vida das mulheres.
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Historicamente, ele figurou como meio privilegiado nos processos da comunicação popular. Na comunicação que, além de popular, é feminista, não é diferente. As experiências com rádio inspiram as mulheres a compreender a comunicação como um direito humano e uma prática dialógica, valorizando vozes, saberes, sotaques, lutas, trajetórias e expressões diversas. Rompendo com o “sujeito competente” socialmente estabelecido e permanente reivindicado pela mídia hegemônica (aquela figura que em nada se assemelha às pessoas comuns), as práticas comunicativas participativas rejeitam o emudecimento reservado para as classes populares e, em especial, para as mulheres e pessoas negras.
Na Marcha Mundial das Mulheres (MMM), acreditamos nessa potência das experiências de rádio e construímos nossa comunicação inspiradas pelas experiências de outros movimentos e organizações com os quais compartilhamos essa perspectiva.
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O Coletivo de Comunicadoras da MMM, formado em 2013, atua como um multiplicador dos processos comunicativos que acontecem nos 20 estados brasileiros onde o movimento está organizado. O grupo surgiu em 2013, no 9º Encontro Internacional da Marcha, realizado em São Paulo (SP). Na ocasião, nos juntamos a outros movimentos populares da América Latina, em uma iniciativa chamada de Convergência de Comunicação dos Movimentos Sociais, articulada para fazer a cobertura colaborativa do evento, que também produziu rádio, em aliança com a Radio Mundo Real.
Os acúmulos práticos e políticos que levaram à decisão de criação do Coletivo se inspiram em processos de comunicação militante nos quais as experiências de rádio foram fundamentais. Em 2012, na Cúpula dos Povos, a Marcha participou de uma articulação dos movimentos para visibilizar a visão das organizações de esquerda sobre as pautas que estavam sendo discutidas na Rio+20. A rádio livre organizada na Cúpula era instrumento dessa construção coletiva.
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No início de 2014, na primeira oficina de formação do Coletivo de Comunicadoras, fizemos uma oficina de rádio. Ali, trocamos experiências sobre nossa relação com o rádio, sua importância na vida das mulheres e lembramos que integramos um processo de formação em comunicação organizado pela Minga Informativa de Movimentos Sociais, que resultou na produção do programa Voz de los Movimientos.
Em 2017, a Marcha, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), a União de Movimentos de Moradia (UNM), a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS) e a Central de Movimentos Populares (CMP) fizeram uma inauguração popular da Casa da Mulher Brasileira, em São Paulo, um equipamento público que deveria servir para a promoção de diferentes políticas para as mulheres e que estava fechado por falta de vontade política dos governos municipal e federal. Os movimentos sociais que participaram da inauguração popular queriam fazer essa denúncia e, para isso, improvisaram uma rádio para dialogar com a vizinhança.
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São múltiplas as experiências em que a rádio esteve no centro dos processos comunicativos populares, que cumprem papéis imprescindíveis para a construção de movimento, dentro dos quais se destacam a “passagem do silêncio à palavra” (como diz a historiadora Michelle Perrot) sobre a organização coletiva das mulheres e sobre as propostas feministas para o projeto de uma outra sociedade, a construção da memória feminista, indispensável para as lutas políticas, e a conscientização para a ação.
Vivas, diversas e combativas: as experiências da MMM com rádio nos estados
No segundo semestre de 2021, demos início a um curso de “Comunicação feminista e popular”, organizado pela SOF Sempreviva Organização Feminista e pelo Coletivo de Comunicadoras da Marcha. Em um dos encontros, promovemos um intercâmbio das experiências de rádio das mulheres em movimento. Contamos com a participação de companheiras de diversos estados, que nos contaram sobre alguns dos processos comunicativos nos quais estão envolvidas.
As mulheres do Rio Grande do Norte (RN) socializaram suas percepções sobre a experiência com os programas Mulheres em Movimento e Espaço Lilás. O programa Espaço Lilás existe desde 2004, em Mossoró, e é transmitido em uma rádio comunitária aos sábados. Quando o programa surgiu, era ainda mais desafiador falar sobre determinados temas da pauta feminista, como a violência contra as mulheres e o direito ao aborto, mas as mulheres, combativas como são, nunca deixaram de falar sobre eles. No início, elas recebiam críticas por não repetirem determinados padrões da comunicação hegemônica. Contam que nunca diziam “bom dia para você que está aí na cozinha”, por exemplo, e de cara já afirmavam que ali não tinha horóscopo ou outras coisas associadas aos papéis atribuídos às mulheres.
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O programa Mulheres em Movimento também é veiculado em Mossoró, transmitido pela rádio Difusora, cujo público-alvo é a zona rural do município. Produzido pelo Centro Feminista 8 de Março (CF8), o programa tem dez minutos de duração e aborda temáticas feministas. Vai ao ar todo sábado. As mulheres contam como foi bom ver a evolução do programa, visto que começaram sem “saber nada” sobre rádio e, aos poucos, coletivamente, foram se apropriando das possibilidades da comunicação popular e feminista.
Durante o encontro, as militantes de São Paulo contaram sobre o programa Fala Mulher, que é produzido pelo núcleo da Zona Leste da Marcha na capital paulistana. O programa surgiu no 8 de março de 2021. É feito por muitas mãos e mentes, que também começaram do zero, sem apropriação prévia sobre ferramentas e formatos, por exemplo. Na marra, com garra feminista, elas têm aprendido juntas a fazer rádio. O programa é quinzenal, aborda temas sobre a vida das mulheres e é transmitido em duas rádios comunitárias, a Rádio Cantareira e Rádio e TV Nuar. Elas também compartilham os arquivos em plataformas de streaming.
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As companheiras de Santa Catarina falaram sobre o Barulho Delas. O programa é feito pela Batucada Feminista da Marcha de Blumenau, e os sons dos nossos batuques e tambores abre a vinheta da programação, criada em 2019. O programa é semanal e vai ao ar toda quarta-feira, às 20h, na rádio comunitária Ademilson Teles. Elas também fazem uma live com o programa no Facebook para socializar o conteúdo da rádio. Normalmente, as marchantes têm de duas a três convidadas por programa e pedem que elas ofereçam músicas para o público, sempre priorizando sons produzidos por mulheres. Durante a pandemia, foi preciso se reinventar para gravar o programa sem o apoio do estúdio, mas, juntas, elas têm superado as dificuldades técnicas e políticas da atual conjuntura.
Também conversamos sobre o Fúria Feminista, um programa de rádio produzido pela Radio Mundo Real, do Uruguai, e pela MMM do Brasil. O programa é feito em português e espanhol, e também aborda temas que se conectam com as lutas das mulheres. O nome do programa é inspirado em uma fala realizada por Miriam Nobre, da Marcha de São Paulo, na plenária das mulheres no IV Encontro Nacional da Agroecologia, que aconteceu em 2018.
“Vamos radicalizar a democracia, construindo o poder popular na nossa casa, no movimento, instalando, nesse ENA, um território de liberdade. Nós estamos declarando: contra o racismo, o patriarcado, o capitalismo, contra qualquer imposição sobre nosso desejo e nossa capacidade de amar, nós estamos em fúria feminista!”, disse ela.
É assim, em luta contra o racismo, o patriarcado e o capitalismo, que construímos nossa comunicação popular e feminista. Na Marcha Mundial das Mulheres, defendemos a ideia de que a comunicação não é somente um instrumento. Ela deve ser compreendida enquanto uma parte constitutiva da construção do movimento. Nas ruas, redes e roçados.
*Fabiana de Oliveira Benedito é comunicadora, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo