Em pratos limpos, a fuga da cidade (isto é, a suburbanização) nada tem de ecológica e sustentável
Por Pedro Bastos
Uma das maiores corretoras independentes do Brasil está de mudança. Não necessariamente de negócio, mas de endereço.
Atualmente instalada na Avenida Brigadeiro Faria Lima, um dos mais afluentes distritos financeiros do país, a XP Investimentos está construindo um complexo de escritórios que promete virar a sua nova sede fora do centro nervoso da capital paulista.
Inspirado no Vale do Silício estadunidense, com feições futuristas e arquitetura ecoeficiente, o complexo é intitulado Villa XP e fica na aprazível cidade de São Roque, a 60 quilômetros da capital.
As obras serão concluídas em 2022 sobre um terreno de 705 mil metros quadrados. Informações publicadas pela revista NeoFeed alegam que a companhia pagou R$ 98,6 milhões pelo terreno. Previamente, esse terreno era propriedade da JHSF, empresa brasileira que atua nos setores de shopping centers, incorporação imobiliária, hotelaria e gastronomia.
“O ambiente foi planejado para ser um local integrado com a natureza, autossustentável e para ser o ponto de encontro dos profissionais para atividades de integração, treinamentos e para receber clientes”, destaca a NeoFeed.
O vídeo promocional (Como será a Villa XP, no interior de São Paulo) de aproximadamente 1 minuto é persuasivo neste sentido. Digitalmente simulado, ele começa apresentando gotículas de chuva que enturvam a visualização mais ampla e granular de uma paisagem aérea.
À medida que as nuvens se dissipam e que a chuva cessa, observa-se o terreno com a possível nova sede da gigante do setor financeiro já semiconstruída.
A vastidão de verde que rodeia o espaço também o isola de qualquer contato com os miasmas da urbe. E alude a um certo arcadismo como fonte de inovação, embelezamento e distanciamento social como fator de segurança em tempos de coronavírus.
Daí fica clara a demonstração de que as águas pluviais no início não foram mero artefato visual. As gotículas regam e semeiam um campo fértil e promissor de “um novo jeito de trabalhar e você vai viver isso com a gente”.
Em seguida, o efeito zoom-in modifica a perspectiva de voo de pássaro, agora, para a escala humana. Passeia-se pelo campus da Villa XP permeavelmente. De modo que se possa examinar, por dentro e por fora, a exuberância de instalações horizontais e minimalistas. Mas ainda sem humanos.
Originalmente empregado pelo escritor latino Horácio, o termo fugere urbem (fugir da cidade) foi adotado como lema pela literatura árcade para simbolizar o poeta literário que se desloca da vida caótica e corrida da cidade para a tranquila, bucólica zona rural.
É o que parece estar fazendo a XP ao ir de encontro às principais chaves-mestras do planejamento urbano contemporâneo. Conectar, adensar, misturar e compactar são premissas de um fator locacional que, numa relação de ganha-ganha, muitas empresas deveriam se valer como fonte de prosperidade para seus negócios.
É também o que defendem os professores Richard Florida e Edward Glaeser em suas obras A Ascensão da Classe Criativa e Triunfo da Cidade, respectivamente. Ambos explicam que empresas e cidades triunfadoras se alimentam da concentração de pessoas da urbe.
É dessa profusão caótica do ir-e-vir, dos encontros inesperados, da mistura e dos atritos étnicos, raciais e de renda através dos quais nasce uma profusão de experiências que enriqueceriam tanto a sociabilidade ordinária em si, mas também os ativos para pequenos e grandes negócios. O sociólogo Richard Sennett, em seu livro Construir e Habitar – Ética para uma cidade aberta, também vai por esse caminho.
Os densos, conectados, misturados e compactos centros urbanos são indispensáveis para a formação de smart people – isto é, de “pessoas inteligentes” como via para o fortalecimento de ambientes acessíveis e inclusivos para a prosperidade e inovação dentro de uma cidade ou comunidade.
Avanços tecnológicos e produção de mais-valias vêm a reboque da concentração de talentos e tolerância, fatores que um complexo empresarial isolado como a Villa XP dissolve.
“Isolado” em termos. Ou, pelo menos, até 2014, quando a JHSF inaugurou um shopping outlet na região. Poucos anos depois, chegou à região um aeroporto executivo. Ao mesmo tempo, foi lançado um empreendimento de apartamentos cujo público-alvo são compradores jovens em nível “júnior”.
Até julho de 2020, um grande resort residencial para o mesmo público-alvo prometia ser promovido nas adjacências.
Com os investimentos da XP em construir sua villa no local, a expectativa da JHSF, dona de outros vastos terrenos na região, é de que mais grandes empresas adquiram terrenos no local.
A médio prazo, a tendência é que esta porção de São Roque seja desmembrada do município para tornar-se um polo de tecnologias e finanças semi-independente.
“Vamos criar uma Palo Alto do interior de São Paulo”, disse o CEO da JHSF à revista NeoFeed, em 4 de fevereiro de 2021, em alusão à famosa cidade da Califórnia onde pousam empresas como HP, Tesla, entre outras.
A futura cidade já tem nome: Catarina Town.
O novo normal como vantagem competitiva para territorializar Catarina Town
Em pratos limpos, a fuga da cidade (isto é, a suburbanização) nada tem de ecológica e sustentável. Tampouco parece representar o pote de ouro no final do arco-íris, segundo as teses de Florida e Glaeser.
Com a pandemia de covid-19 deflagrada em 2020, porém, as pessoas passaram a trabalhar de qualquer lugar graças aos avanços das tecnologias de informação e comunicação, permitindo facilmente o trabalho remoto. E o distanciamento social se tornou imperativo para conter a propagação do vírus e garantir a sobrevivência.
A popularização de um “novo normal” orientado por essas adaptações de comportamento ainda enfrenta desafios de diversas ordens – de psicológicas a sociais.
Por outro lado, muitas empresas vêm surfando na onda deste novo normal como vantagem competitiva para liderar processos de acumulação mediante reestruturações urbanas-regionais ainda pouco inteligíveis até mesmo para o mercado.
Em 2014, a inauguração de um shopping center na região era motivo de chacota. Hoje, é medida aplaudida como visionária.Embora não se saiba bem como tudo vai acontecer, há impactos detectáveis no horizonte. Principalmente no campo da mobilidade urbana e das emergências climáticas.
Presume-se que a vasta maioria da força de trabalho da XP resida na região metropolitana de São Paulo. Se, por lógica, a ideia é botar o trabalho presencial de volta à cena, estamos falando também da adição de fluxos pendulares (provavelmente motorizados e poluentes) entre regiões atualmente sem tanta demanda de transporte.
Serão mais dramáticos ainda, embora não surpreendentes, se tais fluxos forem realizados em transporte individual motorizado – o que para executivos(as) do mercado financeiro certamente não seria um bem de difícil acesso. Ou, mesmo, se o fretamento de jatos executivos tornar-se alternativa comum e fácil para as locomoções entre capital e interior.
Não bastassem os potenciais prejuízos ambientais, é preciso colocar na ponta do lápis o potencial prejuízo econômico para a metrópole de São Paulo. Principalmente, as ameaças para a população de mais baixa renda residente aí, diretamente empregada ou terceirizada, relegada à função de staff.
Haverá políticas de responsabilidade social que integre essa massa de trabalhadores que limpa mesas e banheiros, que serve o cafezinho ou, mesmo, que executa atividades de secretariado? Ônibus fretados serão oferecidos entre São Paulo e Catarina Town? Voucher para hotel? A futura Catarina Town oferecerá facilidades de acesso à moradia bem localizada para esse perfil de trabalhadores?
Conquanto o projeto ainda esteja em progresso, estamos falando da consolidação de um novo território a ser celebrado e modulado por gigantes empresariais da tecnologia e do mercado financeiro.
Portanto, arranjos de governança ainda pouco explorados, mas promissores, estão no radar do planejamento urbano e regional. Especialmente em um contexto ameaçador de crise econômica que também surge como oportunidade para perpetuação de vantagens dessas mesmas organizações poderosas e de seus conglomerados sobre o espaço urbano.
Não à toa, são elas que dominam cada vez mais diversas esferas da economia urbana na metrópole consolidada. Das esferas tangíveis às intangíveis – como a captura do conhecimento e do comportamento humano através das tecnologias de informação e comunicação. A exemplo do que se debate sobre as smart cities no campo crítico dos estudos urbanos e regionais.
Embora o discurso oficial do projeto não se outorgue o título de smart city, esse novo campus e o background que o rege busca ser sinônimo de uma.
E não é prematuro dizer que o projeto ainda fica apenas no campo das intenções. Trata-se de esforços que buscam copiar paisagens inteligentes e ecoficientes mas sem integrar qualquer tipo de desenvolvimento urbano orientado ao transporte, por exemplo – base fundamental do acesso e direito à cidade.
O que mobiliza, então, uma smart city “caipira”?
“Se pensarmos nos espaços urbanos como geradores de uma gama diversificada e massiva de dados e informações, então o conceito de smart city torna-se cenário desta disputa”, afirma Teresa Mendes, em artigo de capa publicado pela e-metropolis em setembro de 2021.
Esse é um fenômeno meritório de acompanhamento à medida que também demonstra sua relação direta com processos e disputas geopolíticas. Não se trata de algo pontual, mas global. O caso da Villa XP e de todo o ecossistema em que se insere é exemplo dessa transição.
“Isolar” o escritório, nesses termos, é uma oportunidade razoável de gerir a extração e a manipulação de dados e informações valiosas para prosperar, inovar e manter a competitividade.
Estratégia parecida àquela adotada pelo Googlepex, complexo de edifícios corporativos que formam a sede da empresa. Há diferenças locacionais entre os dois casos aqui abordados, mas ambas se assemelham quanto ao caráter de isolamento.
Enquanto a Villa XP e sua futura Catarina Town estão no interior, o Googleplex fixou-se no ponto nevrálgico de Nova York, o Greenwich Village. O mesmo Village de Jane Jacobs que, nos anos 1960, pleiteava por uma cidade mais conectada, adensada, misturada e caminhável.
Sennett, em Construir e Habitar… faz críticas contundentes ao Googleplex por sua participação no empobrecimento da experiência urbana nova-iorquina. Define o projeto como um tipo de gueto sem vínculo com a cidade, cujos empregados dispõem de qualquer coisa que possam desejar sem que precisem sair dali.
Não obstante a impactante estrutura projetada pelos badalados arquitetos Bjarke Ingels (dinamarquês) e Thomas Heatherwick (britânico), e que é bastante característica do imaginário propagado pelas indústrias criativas e futuristas das quais se inspiram a Villa XP, Sennett questiona até que ponto esses ambientes voltados a si mesmos, que “confinam” pessoas mais ou menos iguais umas às outras, estimulariam a própria criatividade da qual a empresa se vale para impulsionar seu negócio.
Se não estimulam a criatividade orgânica da sua força de trabalho, por outro lado, o “isolamento” pode funcionar como um ambiente favorável à coleta de dados mais granulares sobre padrões de comportamento da força de trabalho pouco detectáveis em ambientes caóticos – o caos como uma virtude das cidades, para Sennett.
Dados, portanto, que enriquecem a tomada de decisão para garantia da competitividade e liderança de mercado. E que também correspondem ao cerne da disputa pela extração ilegal de dados no debate sobre as smart cities.
“Isolar”, assim, é fazer o ativo suar mais eficientemente. Esse é o jargão empregado por Evgeny Morozov e Francesca Bria, autores de A Cidade Inteligente: Tecnologias urbanas e democracia, para explicar a economia política por trás das smart cities.
Inicialmente, fazer o ativo suar numa escala que parece restrita a uma estratégia de maior controle da força produtiva daquela organização. Mas que, a longo prazo, poderá vir a controlar uma cidade inteira construída do zero mediante o poderio de empresas que, ao mesmo tempo em disputa e em parceria, sabem como identificar oportunidades em contextos de crise e perante o empobrecimento de outras.
Nesse sentido, Catarina Town é um topônimo – isto é, nome próprio de lugares – a se firmar no tempo e no espaço e que expressa a relação progressiva criada entre as supermarcas e novos processos de territorialização urbana.
Segundo a jornalista Noemi Klein, autora de Sem Logo – A Tirania Das Marcas Em Um Planeta Vendido, supermarcas definem empresas cuja estratégia de competitividade tem sido priorizar investimentos em iniciativas que as ajudem a construir simbolicamente suas marcas.
Mesmo que, para isso, deixem de investir em seu core business. Isto acontece por meio de patrocínios, embalagens, expansão, publicidade, canais de distribuição e varejo, nomes de logradouros e de estações de transporte público (os chamados naming rights).
Enquanto nomes de cidades (ainda) não são vendidos, Catarina Town é exemplo de que empresas estão na iminência de construir sua própria pólis e nomeá-la como desejarem. Ao direito à cidade, é desafiador imaginar quais (boas) oportunidades uma reestruturação como essa poderia proporcionar, caso vire tendência. O êxodo urbano mascara a efemeridade de um projeto que se pretende soberano, mas que já nasce fracassado (porque antiquado). Romper com a metrópole é fazer gol contra.
*Pedro Bastos é Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. É pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro e analista de transporte público do ITDP Brasil.
**Lançamos hoje no Brasil de Fato a Coluna Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles. Há mais de 20 anos o INCT Observatório das Metrópoles vem trabalhando sobre os desafios metropolitanos colocados ao desenvolvimento nacional através da sua rede de pesquisa, organizada em 16 núcleos regionais. No contexto da atual crise econômica, social e sanitária, suas respectivas consequências presentes e futuras podem ser elementos mobilizadores para a construção de uma contra narrativa progressista e redistributiva para o país. Esta coluna se relaciona com os esforços atuais da nossa rede de reflexão e incidência sobre o tema, a partir do projeto "Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles".
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito