O desafio global provocado pelo alastramento do vírus SARS-CoV-2 demandou a necessidade de elaborar estratégias eficazes e sinérgicas para preservar vidas humanas. O direito humano à saúde e ao bem-estar integra o conjunto de direitos universais que devem nortear a ação política dos Estados-nações no seu dever de efetivar direitos humanos, com isso, dando materialidade aos direitos positivados nos Textos Políticos, resultantes de conquistas que a civilização acumulou ao longo da história da humanidade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, tida como um marco civilizatório instituído em 1948 e que esse ano completa 73 anos enuncia em seu artigo 25.1 que:
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
O texto do mencionado artigo da Declaração Universal é nítido ao apontar necessidades elementares que devem ser asseguradas para que as pessoas desfrutem de um padrão mínimo humanizado da vida em sociedade.
No ordenamento jurídico brasileiro, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que proclama o acesso universal, igualitário e integral da população aos serviços e ações de proteção e recuperação da saúde, tem-se o surgimento de diferentes iniciativas institucionais, legais e comunitárias que foram desenvolvidas com intuito de criar condições de materialização irrestrita desses direitos. O direito a saúde é previsto como um direito humano fundamental que deverá ser garantido pelo Estado. Está inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais no grupamento dos direitos sociais consonante o artigo 6º da Constituição Federal de 1988.
A Constituição Federal de 1988 também prescreve no artigo 196 a direção sobre a saúde como direito:
Art. 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O arcabouço constitucional preconiza o dever do Estado de garantir políticas sociais e econômicas numa conformação de ações que possibilitem a realização integral do direito humano a saúde. E se alinha ao que enuncia-a declaração universal dos direitos humanos no seu dever de impulsionar uma agenda programática em prol dos direitos humanos.
Em meio ao contexto de pandemia, o Estado se ausentou da efetivação de políticas públicas, expondo não só a turbulência de suas crises de ordem ética, política, de funcionamento de sua estrutura, como também a crise de deslegitimação de seus agentes, mais grave, dos poderes da República.
Após a confirmação da primeira morte por covid-19, a cifra de mortalidade alcança mais de meio milhão de vidas de brasileiros e brasileiras que foram ceifadas. Nos termos do levantamento da página do Ministério da Saúde o país acumula mais de 600 mil mortes, desde o início da pandemia.
O contexto de perpetuação da pandemia e o crescente número de mortes, ocorreu por ausência de uma ação integrada e estratégica que atendesse os requisitos precisos também da vigilância em saúde. A caracterização de uma epidemia é muito útil para a elaboração de hipóteses, com vistas à identificação das fontes e modos de transmissão, além de auxiliar na determinação da sua duração (Guia de Vigilância em Saúde, MS, 2019).
No contexto de descaso com a população brasileira e de violações dos direitos humanos e constitucionais duramente conquistados pela sociedade civil popular organizada, tem se travado uma batalha dolorosa e difícil na defesa da manutenção de políticas públicas necessárias para o combate à crise sanitária, porém ainda não suficientes para tão grave colapso sanitário que violou a previsibilidade legais e institucionais da vigilância em saúde na esfera nacional e internacional.
O cenário de tragédia que o Brasil apresenta para o mundo, em razão do modo infausto como o governo federal conduz o enfrentamento da pandemia, poderia ter sido de menor proporção, com letalidade dentro dos prognósticos da ciência nas hipóteses de doenças e ou agravos.
O arcabouço jurídico internacional e nacional apontam uma série de medidas que possibilitam adotar ações integradas para o enfrentamento de crises agravadas num contexto pandêmico de forma a preservar o direito humano a saúde. Nesse aspecto destaca-se a defesa intransigente da vida que necessita ser protegida por meio de um conjunto de estratégias, que visam, num contexto pandêmico, controle de doenças e ou agravos que tragam risco a humanidade.
O Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005, promulgado na versão mais recente no Brasil por meio do decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020 congrega um rol de capacidades a ser aplicada no campo da saúde pública mundial. O supracitado Regulamento Sanitário é reconhecido como instrumento central para adoção de medidas de proteção contra a propagação internacional de doenças.
Atento ao surgimento de novas variantes, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) é um instrumento jurídico internacional vinculativo para 196 países em todo o mundo, que inclui todos os Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Seu objetivo é contribuir com a comunidade internacional para prevenir e responder a graves riscos de saúde pública que têm o potencial de atravessar fronteiras e ameaçar pessoas em todo o mundo. Dentre as exigências para os países, a notificação de certos surtos de doenças e eventos de saúde pública.
No dia 11 de março do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto de coronavírus uma “pandemia global”. O diretor-geral da organização afirmou em entrevista coletiva que o alto número de casos fora da China torna necessário mudar a definição de pandemia.
Tedros Ghebreyesus assinalou: “Estamos preocupados com os níveis alarmantes de propagação e com os níveis alarmantes de inação”. Desde então liderou uma agenda de estudo, alerta e aprofundamento sobre o novo coronavírus em sintonia com Estados-Nações para estabelecer uma atuação sinérgica no combate a pandemia de forma a preservar saúde pública e estabelecer procedimentos que possam contribuir com o trabalho da OMS para defender a segurança pública mundial.
O Brasil não respeitou e nem internalizou as normas sanitárias destacadas conforme posicionamentos e pronunciamento oficial do presidente da república sobre o surto do coronavírus e a gravidade de uma pandemia global. Confronta, até os dias atuais, mesmo com o surgimento da nova variante ômicron que já afeta pessoas no Brasil, as regras epidemiológicas e sanitárias de distanciamento social como medida eficaz não farmacológica para preservação da vida, colocando em risco a vida da população. Continua a recomendar uso de medida farmacológica não comprovada cientificamente para uso clínico preventivo para a covid-19 expondo milhares de pessoas ao risco de contágio e a morte.
E como se não bastasse, contínua produzindo contrainformação sobre a eficácia e importância da vacina para proteção da vida. O que tem motivado o desinteresse de boa parcela da população de se imunizarem,
Com a descoberta da Nova variante do coronavírus, ômicron, detectada em pelo menos 50 países, tem-se a retomada das preocupações e da urgência da necessária adoção de medidas urgentes do governo federal para impedir a propagação da nova variante no Brasil. No entanto, o que temos testemunhado é a morosidade e o desinteresse do governo brasileiro na adoção de medidas que garanta o direito humano à saúde do povo brasileiro.
Portanto lutar pelos direitos humanos inclui a luta pela efetivação de políticas públicas que possibilitem a dignidade e a manutenção da vida na sua integralidade. Isso incluí uma relação dialética denuncia (violações) - efetividade (ação de direitos humanos), uma tarefa necessária para os lutadores e lutadoras de defensores e defensoras de direitos humanos neste marco de os 73 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH.
*Euzamara de Carvalho é Mestra em Direitos Humanos pelo Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – PPGIDH/UFG. Pesquisadora do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais – IPDMS. Membro da Comissão Permanente de Monitoramento e Ações na Implementação das Obrigações Internacionais em Matéria de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH. Membro do coletivo de direitos humanos da via campesina. Integrante da Secretaria de relações internacionais – SRI e Secretaria de Assuntos Acadêmicos – SAA e da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.
**Este artigo é desdobramento da Pesquisa ATUAÇÃO INTERNACIONAL NO DIREITO HUMANO À SAÚDE - OPAS/SMDH.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Anelize Moreira