No Dia Internacional dos Direitos Humanos, trago aqui a lembrança de um outro dia, o seis de maio, que nos chocou com a chacina mais letal da história recente do Rio de Janeiro. Sob o vigor de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe operações do gênero na vigência da pandemia e à luz do alvorecer, mais de 200 homens - sob o comando da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) -, quatro carros blindados e duas aeronaves avançaram sobre a já fragilizada favela do Jacarezinho, Zona Norte da capital fluminense, deixando um rastro de sangue e terror e 28 mortos, entre eles um policial civil.
Mesmo para uma região onde o confronto e a violência são rotineiros, o resultado foi além da revolta. A dor não cessa, balbuciam as famílias ainda enlutadas pela falta de respostas e justificativas para tamanha atrocidade.
O ano de 2021, definitivamente, não deixa boas lembranças quando se trata de preservar a vida e garantir direitos a todos indiscriminadamente. Por isso mesmo, precisamos falar sobre o que nos angustia: a atividade policial, sem tirar o seu mérito e seu caráter essencial numa democracia.
Para o bom desempenho no enfrentamento à violência e à criminalidade, é necessário um adequado treinamento e boas condições de trabalho dos agentes das polícias.
Pela natureza das atividades, em especial o monopólio do uso da força e armamento, submeter os agentes a jornadas exaustivas e à falta de cuidados com a saúde mental significa expor a população, em especial moradores de favelas e periferias, mas não apenas eles, a riscos.
Essa é uma das conclusões do relatório conjunto elaborado pela Comissão de Direitos Humanos e a Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Elaborado a partir da realização de audiências públicas sobre as consequências da Operação Exceptis, como foi batizada a ação coordenada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Entre diversos aspectos relevantes acerca do cenário trágico da referida operação, destacamos dois em especial: as péssimas condições de trabalho dos profissionais da segurança pública e a precariedade do controle externo da atividade policial.
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Sobre o primeiro ponto, estudo desenvolvido pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) intitulado “Vitimização policial no estado do Rio de Janeiro: panorama dos últimos cinco anos (2016-2020)”, lançado em setembro, analisou todas as mortes, por causas violentas, de agentes policiais entre 2016 e 2020, classificando-as, quanto às causas, em quatro categorias: letalidade violenta; acidentes; suicídios e indeterminada. Do total de 506 mortes, 364 (72%) foram por letalidade violenta, sendo 253 em período de folga e 111 durante o serviço.
Essas informações são fundamentais para se perceber a necessidade de cuidados diferenciados com estes profissionais, uma vez que estão expostos a permanente risco, não apenas durante o serviço em si. Tal afirmação encontra eco quando constatamos que 7% destas mortes se deram por suicídio, índice elevadíssimo se comparado com os índices desta causa morte entre a população em geral.
Sobre o controle externo da atividade policial, trata-se de função institucional atribuída ao Ministério Público, o que está determinado na Constituição de 1988. Apesar disso, transcorridos mais de 30 anos desde a promulgação de nossa carta magna, nem mesmo os membros do Ministério Público a entendem como prioritária, como demonstrou pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com membros do MP em diferentes estados.
O estudo apontou que 88% dos promotores e procuradores de justiça não compreendem o controle externo da atividade policial como atuação prioritária do órgão. A mesma pesquisa apontou ainda que, para 42% de seus membros, o controle da atividade policial pelo MP é ruim ou péssimo e 35% avaliaram como regular atuação ministerial na área.
Importante destacarmos que, no que se refere ao exercício do controle externo da atividade policial, é necessária a atuação em duas frentes: a tutela coletiva, que consiste na capacidade de fiscalização e incidência em matérias administrativas e de natureza cível, tais como treinamentos, protocolos e eventuais questões disciplinares; e a capacidade de se incidir criminalmente em casos de suspeitas de abusos.
Em razão da natureza da atividade policial, que possui monopólio do uso da força letal, abusos, quando cometidos, tendem a ter graves consequências, entre as quais assassinatos. Por isso, a atribuição de investigação criminal deve ser entendida como essencial para um efetivo controle externo.
No Rio de Janeiro, o contexto do controle externo da atividade policial é muito peculiar. O Ministério Público estadual criou, apenas em 2015, órgão próprio para desempenhar tal função institucional.
O Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP) surgiu com atribuição de tutela coletiva e de órgão auxiliar para investigações criminais que envolvessem crimes cometidos por agentes policiais. Em outras palavras, a atuação do GAESP em matéria criminal estava limitada àquelas investigações em que o promotor natural da Promotoria de Investigação Penal (PIP) solicitasse auxílio. Mesmo assim, cumpria um papel muito importante no enfrentamento ao calamitoso quadro de violência policial no estado.
Ocorre que, em três de março deste ano, o MPRJ extinguiu o GAESP e, em seu lugar, criou a Coordenadoria de Segurança Pública, que por sua parte não é dotada de atribuição criminal, nem mesmo na condição de órgão auxiliar, tendo sua atuação restrita a matérias cíveis e de improbidade, devolvendo todas as investigações criminais aos promotores naturais das PIPs.
No caso da Operação Exceptis e as 28 mortes, diante da gravidade dos fatos, bem como da sua repercussão internacional, foi criada uma força-tarefa para acompanhar e conduzir as investigações criminais. Apesar de contribuir para a elucidação deste caso, como demonstrado na denúncia apresentada contra dois policiais que participaram da operação no Jacarezinho, esta força tarefa tem sua atribuição limitada a estes fatos enquanto a excessiva violência policial no estado do Rio de Janeiro possui natureza sistêmica, demandando estruturas e órgãos permanentes para o devido controle externo da atividade policial, com monitoramento, avaliação permanente e, principalmente, investigações criminais quanto a eventuais abusos cometidos.
Podemos afirmar, portanto, que junto com a melhoria das condições de trabalho dos profissionais da segurança pública, o fortalecimento da transparência dos órgãos de controle é essencial para o aprimoramento das políticas de segurança, que deve estar pautada na garantia dos direitos de todas e todos. Sem controle e transparência, não se pode avaliar seriamente políticas públicas.
*Dani Monteiro é deputada estadual (Psol/RJ) e presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Jaqueline Deister