Coluna

A feroz determinação de pessoas comuns para construir um mundo extraordinário

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O que explica a hostilidade dos EUA em relação a Cuba e Haiti? A audácia desses países em defender sua soberania - Mwamba Chikwemba (Zâmbia), Poder, 2019 - Reprodução
Nós ousamos ser livres. Sejamos assim por nós próprios e para nós próprios

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, subornou 111 países para que participem de sua Cúpula pela Democracia de 9 a 10 de dezembro, este último, o Dia dos Direitos Humanos. “Damos as boas-vindas a todos os países, organizações e indivíduos para apoiar os objetivos da Cúpula”, escreveu o Departamento de Estado dos EUA. No entanto, 82 países não foram convidados, incluindo dois grandes países membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (República Popular da China e Rússia) e dois pequenos países caribenhos (Cuba e Haiti). Em nome da democracia, o governo dos Estados Unidos está promovendo sua própria agenda para consolidar o poder e promover seus interesses nacionais. Essa não é uma cúpula para a democracia, mas sim uma cúpula para reunir um grupo para renovar a imagem manchada dos Estados Unidos.

Manchada como? O Índice de Democracia da Unidade de Inteligência da The Economist  considera os Estados Unidos uma “democracia falha”, o que é surpreendente se considerarmos a fonte. O que a torna “defeituosa”? Três pontos oferecem uma ilustração adequada: (1) o processo eleitoral nos Estados Unidos é afetado pela influência corrupta do dinheiro e do lobby, enquanto a destruição da Lei de Direitos de Voto pressionou adversamente as minorias sociais para acessar as urnas; (2) os EUA têm a maior taxa de encarceramento do mundo, com um claro preconceito contra as minorias sociais – principalmente na aplicação da pena de morte; (3) os Estados Unidos usaram seu controle sobre o sistema financeiro global e suas imensas força militar para afligir países ao redor do mundo, violando a Carta das Nações Unidas.

O objetivo da Cúpula não é apenas sugerir – contra todas as evidências – que os EUA são uma democracia florescente, mas também usar a ideia sublime de democracia para alimentar a guerra híbrida imposta pelos EUA contra seus adversários (notadamente, China e Rússia, mas também CubaIrã e Venezuela). Este é um mau uso grosseiro e cínico dos ideais democráticos, que deveria ser mobilizado para aumentar toda a gama do potencial humano, em vez de ser transformado em um instrumento de guerra.


Gazbia Sirry (Egito), Uma família egípcia, 1955 / Reprodução

O mundo já tem uma cúpula regular de democracias. É chamada de Assembleia Geral das Nações Unidas. Ela abre sua sessão todos os anos em setembro, onde chefes de governo vêm oferecer sua perspectiva sobre os dilemas enfrentados pela humanidade. O que une a Assembleia Geral da ONU não é o capricho dessa ou daquela nação poderosa, mas um dos documentos mais fundamentais da história da humanidade: a Carta da ONU, adotada em junho de 1945 pelos 51 países que a fundaram. Hoje, são 193 membros da ONU, cada um deles signatário da Carta. Cada Estado do sistema ONU é obrigado a seguir a Carta, o que a torna o maior documento de consenso do planeta. O Artigo 2 é claro em dois pontos: (1) que a ONU se baseia na “igualdade soberana de todos os seus membros”; e (2) que os membros da ONU devem “resolver suas disputas internacionais por meios pacíficos”. Os meios são especificados nos Capítulos VI e VII da Carta, com a determinação precisa de que nenhum país deve prejudicar outro a menos que haja uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para agir; nenhuma ação pode ocorrer sem a autorização da ONU.

Enquanto isso, os Estados Unidos impõem um bloqueio prejudicial ao povo soberano de Cuba desde 1961. Esse bloqueio é ilegal e tem sido desde o início, pois não está autorizado pela Carta das Nações Unidas. É por isso que os membros da Assembleia Geral da ONU votaram em números esmagadores para que os EUA acabassem com seu bloqueio ilegal nos últimos trinta anos. Este ano, 184 países votaram contra os EUA. “O bloqueio asfixia e mata”, disse o ministro das Relações Exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez Parrilla. “Precisa acabar”.


Morn Chear (Cambodia), Hand in Hand, 2021 / Reprodução

Cuba, uma pequena nação insular de 11 milhões de habitantes, nunca ameaçou a segurança dos EUA. O governo cubano nunca tentou invadi-los. Na verdade, a sugestão é absurda, já que os EUA têm o exército mais letal do mundo e destruiriam qualquer um que tentasse atacá-lo (como fez com o Japão depois de 1941 e como fez com a Al-Qaeda depois de 2001). Dado que Cuba não é uma ameaça para os Estados Unidos, por que levam a cabo esse bloqueio ilegal a Cuba?

Como consequência da triste história do colonialismo e da escravidão, a economia cubana pré-Revolução foi sufocada pela produção de açúcar e pelo turismo. Não é fácil construir o socialismo em um país pobre com uma economia que foi configurada para ser um playground para os imperialistas. Existem poucos metais e minerais preciosos em Cuba, o que de outra forma chamaria a atenção dos capitalistas em países como os EUA. Portanto, visto que Cuba não possui um grande suprimento de recursos naturais, por que os Estados Unidos realizam o bloqueio ilegal a Cuba?

O paralelo mais próximo de Cuba é outra ilha caribenha, o Haiti, também com uma população de 11 milhões de pessoas, também com poucos recursos naturais úteis para os capitalistas e sem ameaça à segurança dos Estados Unidos. No entanto, desde a Revolução de 1804, o Haiti foi sufocado, sua riqueza drenada, seu povo forçado a pagar pelo menos 21 bilhões de dólares em “indenizações” pela propriedade – incluindo seres humanos – que eles libertaram em seus esforços para derrubar a plantação de escravos sistema. Foi imposto ao Haiti um regime de violência que continua até hoje, um terrível sistema de ditadura e caos político, tudo em benefício dos Estados Unidos.


Hulda Guzmán (República Dominicana), Seja gentil com seus demônios (Istanbul Cats), 2018 / Reprodução

O que explica essa hostilidade em relação a Cuba e Haiti? A audácia desses países em defender sua soberania e sua promessa de construir uma sociedade que não esteja voltada para as necessidades das potências imperialistas. O povo do Haiti disse não à escravidão quando as economias dos EUA e da Europa baseavam-se na gratuidade do trabalho dos povos escravizados do Caribe. Esse ato de liberdade do povo haitiano foi imperdoável, por isso o Haiti teve que ser punido, sua experiência de democracia sufocada. Se tivesse sucesso, os quilombolas do Haiti dariam ideias a outros oprimidos e, portanto, esse exemplo teve que ser extinto.

Cuba, como o Haiti, eliminou os tentáculos do imperialismo e suas máfias. O governo revolucionário estava – e continua – empenhado em construir um projeto soberano. Criou um sistema de regras que colocava os interesses de seu povo antes do lucro, garantiu que a nutrição, a alfabetização, a saúde e a cultura do povo viessem acima de tudo e construiu um modelo de socialismo em um país muito pobre. O exemplo da Revolução Cubana também teve que ser apagado pelos imperialistas, que não podiam tolerar seu sucesso, nem podiam tolerar a determinação feroz das pessoas comuns de construir um mundo extraordinário.


Declaração da independência do Haiti, 1804 / Reprodução

Na Declaração de Independência do Haiti de 1804, os bravos revolucionários escreveram: “Nós ousamos ser livres. Sejamos assim por nós próprios e para nós próprios”. São os haitianos que são livres, escreveram eles, mas não os franceses. Os franceses “conquistaram, mas não são mais livres”, porque eles – como as elites dominantes dos Estados Unidos – estão presos nas fantasias do imperialismo e por sua fome de acumulação de capital. Não há liberdade nesse sonho, nem democracia.

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Vivian Virissimo