Coluna

Não precisamos de ideias contundentes para 2022?

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O perigo de que uma candidatura Alckmin seja uma forma de sinalizar um veto para compromissos a serem assumidos diante dos trabalhadores e da juventude parece real - Maurício Lima/AFP
Um governo de esquerda deve ter como parâmetros reformas estruturais com impulso anticapitalista

Por Marco Pestana e Valerio Arcary

 

Águas passadas não movem moinhos.

Castiga-se a arrogância, dando-lhe as costas.

(Sabedoria popular portuguesa)

A discussão da chapa para uma candidatura de esquerda é incontornável. O perigo de que uma candidatura Alckmin seja uma forma de sinalizar um veto para compromissos a serem assumidos diante dos trabalhadores e da juventude parece real. Mas está na hora de começar, também, um debate público de ideias para um programa de esquerda para as eleições de 2022.

Não deveríamos regredir para uma polêmica entre programa mínimo ou programa máximo. A história já deixou lições que permitem superar os limites do possibilismo e do maximalismo. Precisamos de um programa de transição.

Sabemos que reivindicações muito sentidas pelas amplas massas, como foi a experiência de luta pelo gatilho salarial sempre que a inflação supera os 5%, na origem a escala móvel de salários, ou de luta pela redução da jornada de trabalho sem redução salarial, na origem a escala móvel de horas de trabalho, podem adquirir um sentido transicional.

Não são em si uma ameaça à ordem capitalista, mas, tampouco, são reformas que podem ser aceitas sem lutas com disposição revolucionária. Um governo de esquerda deve ter como parâmetros reformas estruturais com impulso anticapitalista. As linhas que seguem são algumas destas ideias.    

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1. Revisão do teto de gastos! Lei de responsabilidade social! O golpe de 2016, na forma de impeachment de Dilma Rousseff, expressou uma inversão desfavorável das relações de força entre as classes classe no país. As consequências dos últimos cinco anos foram devastadoras.

Por isso, devemos defender a revogação do legado do golpe. A chave deve ser a valorização dos serviços públicos que dão concretude a muitos dos direitos inscritos na Constituição de 1988, como saúde, educação e previdência, entre outros.

Nesse sentido, são prioritárias a revogação do Teto de Gastos, da contrarreforma trabalhista e da contrarreforma previdenciária. Ou seja, o questionamento da Lei de Responsabilidade Fiscal e a Desvinculação das Receitas da União (DRU). As privatizações selvagens também devem ser questionadas.

2. Em defesa do SUS! Saúde pública, universal e gratuita! Apesar do significativo avanço da vacinação no país, a pandemia de covid-19 ainda não terminou. Experiências de outros países mostram que novas ondas de contágio são possíveis, e é preciso enfrentar a política genocida de Bolsonaro, que já levou mais de 600 mil vidas.

A produção de vacinas em território nacional precisa ser acelerada, com a ampliação do investimento em ciência e tecnologia para garantir a internalização da cadeia de produção e para fomentar o desenvolvimento de novas vacinas. No plano internacional, é preciso buscar uma articulação dos países dependentes para atacar as relações de propriedade (quebra de patentes);

3. Direito ao trabalho! Valorização do salário mínimo! Nada é mais importante que a luta contra a desigualdade social. Dezenas de milhões de pessoas estão desempregadas ou presas a trabalhos extremamente precários, com longas jornadas, remuneração baixa ou incerta e ausência de direitos.

Essa realidade é evidenciada claramente por meio da situação dos trabalhadores de plataformas (como Uber, Ifood, etc), que já compõem um dos maiores contingentes do proletariado, e não tem sequer seu vínculo trabalhista reconhecido. A consequência mais dramática dessa situação é o mergulho de multidões de famílias trabalhadoras em situação de pobreza e fome.

É nesse cenário que Bolsonaro tenta sustentar uma oposição entre empregos e direitos que só serve aos empresários. Nossa saída para essa crise passa por gerar empregos com amplos direitos, por meio da adoção de um plano de obras públicas sociais — construção de creches, hospitais, escolas, estrutura de saneamento básico etc.

O salário mínimo deve ser valorizado, com a meta de dobrar seu poder de compra, e tendo como objetivo estratégico chegar ao patamar de referência do Dieese. Defendemos, ainda, a criação de um programa de renda mínima equivalente a um salário mínimo; a regulamentação do trabalho por aplicativos, reconhecendo o vínculo empregatício e garantindo direitos; o combate à repressão aos trabalhadores informais; um programa de empregabilidade para a juventude negra; e o desenvolvimento de programas para informais e MEIs;

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4. Defesa da Amazônia e dos povos indígenas! A devastação ambiental é obra do capitalismo em escala planetária, mas seus impactos não são sentidos da mesma maneira por todos. Países dependentes, como o Brasil, têm mais dificuldades para lidar com eventos climáticos extremos, e a parcela da população negra e pobre é a mais vulnerável: o racismo ambiental.

O Brasil precisa se colocar na linha de frente das articulações internacionais para estruturar uma nova relação com o meio ambiente, que previna o aparecimento de novas cepas da covid-19 e de novas pandemias e garanta as condições de perpetuação da vida, alterando a matriz energética, combatendo a devastação ambiental e enfrentando a crise climática.

Tal transformação não será obtida por meio de soluções de mercado, que perpetuam a lógica capitalista, como os chamados créditos de carbono, mas pelo enfrentamento aos principais agentes poluidores em nível internacional e nacional.

Nesse sentido, no Brasil, é fundamental exercer uma dura fiscalização sobre os setores que dirigem o desmatamento, como mineração, agropecuária e a extração de madeira, com punições que impulsionem a restauração das florestes com espécies nativas.

A produção agropecuária deve ser regulada de modo a potencializar o uso de técnicas agroecológicas e combater os agrotóxicos. A Funai precisa ser fortalecida como um ponto de apoio ao processo de demarcação de terras e respeito às vidas indígenas, ribeirinhas e camponesas.

A Petrobras deve desempenhar papel decisivo no processo de transição da matriz energética do país, sendo democraticamente gerida e investindo em energias renováveis. As empresas de água e esgotos devem ser remunicipalizadas, para baixar as tarifas e acabar com a escassez aos mais pobres.

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5. Imposto sobre as grandes fortunas! Os ricos têm que pagar pela crise. Sob o capitalismo, toda a estrutura econômica funciona para garantir os lucros de poucos ao custo da pobreza e das dificuldades de muitos. Essa lógica precisa ser invertida, colocando em primeiro plano a defesa dos interesses da maioria trabalhadora.

Para que o Estado passe a atuar segundo uma responsabilidade social de garantir serviços públicos de qualidade, é preciso enfrentar a chamada “responsabilidade fiscal” que beneficia os grandes credores da dívida pública. O primeiro passo para isso é suspender o pagamento aos grandes credores dessa dívida e realizar uma completa auditoria.

Indo além, as empresas estatais precisam ser 100% públicas e os serviços públicos devem ser financiados, principalmente, pelos mais ricos, reduzindo o peso da tributação sobre a classe trabalhadora. Quem ganha mais precisa pagar mais. Por isso, defendemos uma reforma tributária com a diminuição de impostos para a classe trabalhadora e os mais pobres, e aumento da carga tributária para os mais ricos, por meio da redução da taxação sobre o consumo e ampliação da taxação sobre o patrimônio, com destaque para a taxação das grandes fortunas e dos lucros das multinacionais.

O mercado financeiro não deve permanecer intocável. Os grandes bancos privados devem ser estatizados e os pequenos negócios das cidades e a pequena produção agrícola no campo precisam ter financiamento público a taxas de juros reduzidas, sendo as verbas atreladas à utilidade social dos negócios e ao desenvolvimento de mecanismos de redução dos danos ambientais.

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6. Fim da guerra às drogas, desmilitarização das polícias militares, reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres. Combater o racismo estrutural, o machismo e LGBTfobia. Em suas muitas dimensões (econômica, sanitária, ambiental e política), a crise capitalista atinge de maneira desigual as distintas camadas da população, sendo os principais afetados aqueles mais oprimidos, como mulheres, negros/as e população LGBTT.

Essas camadas pobres ocupam as posições mais subalternas no mercado de trabalho – sendo, portanto, mais expostos à covid-19 – e são alvos das mais variadas formas de violência, como a doméstica, só crimes de ódio e o extermínio da juventude negra por meio da política de guerra às drogas.

Em resposta a esse cenário, defendemos uma política de defesa da vida e das condições de autoafirmação dos oprimidos. Somos favoráveis ao fim imediato da guerra às “drogas”, à revogação da Lei de Drogas de 2006, e à descriminalização das drogas ilícitas. As PMs precisam ser desmilitarizadas e o encarceramento em massa da juventude negra deve ser revertido.

As políticas de cotas raciais, sociais e para PCDs devem ser reforçadas e aprofundadas. A laicidade do Estado deve ser preservada, e os currículos escolares devem incorporar a fundo o ensino das culturas e temáticas afrobrasileiras e indígenas. Defendemos, ainda, a legalização do aborto e o avanço nas políticas de acolhimento e apoio às pessoas vítimas de violência.

No âmbito do mercado de trabalho, é indispensável reforçar o combate a todas as formas de discriminação na contratação e na remuneração. Outro ponto fundamental é a socialização crescente do trabalho doméstico, por meio da abertura de lavanderias e restaurantes populares, reduzindo o peso das jornadas duplas e triplas que recaem sobre as mulheres.

7. Reformas urbana e agrária. Nas cidades e campos brasileiros impera a organização do espaço segundo o princípio intocável da propriedade privada. Decorrem daí diversos elementos da crise social (milhares de famílias sem-teto e sem-terra, por exemplo) e da emergência ambiental (uso de agrotóxicos, ênfase no transporte individual poluente, dentre outros).

Inversamente, nosso programa deve partir da defesa dos princípios da moradia digna e da segurança alimentar para todos, priorizando formas coletivas de organização da vida e do espaço, que articulem produção agroecológica, transporte público de massa e não poluente e efetivação do uso social de toda propriedade.

Nesse sentido, é urgente avançar com as políticas de aluguel social e desapropriação dos imóveis abandonados e com dívidas com o Estado, bem como instituir um IPTU progressivo.

A reforma agrária precisa ser retomada, com a desapropriação dos latifúndios e fomento à produção agroecológica de alimentos saudáveis e baratos para a população, garantindo, também as terras das comunidades quilombolas e ribeirinhas. No campo, é preciso ampliar o incentivo à agricultura familiar e aos pequenos produtores cooperativados, em paralelo ao fomento às hortas urbanas.

8. Poder popular. A democracia não pode continuar restrita ao voto em cada eleição. O peso do dinheiro não pode continuar desequilibrando a balança em favor dos ricos nas próprias eleições e na determinação das ações de governo. A democracia precisa ser permanente, direta e ampla.

Um governo de esquerda deve rejeitar as alianças com a burguesia, e construir sua força pela mobilização e organização da maioria trabalhadora do povo. A voz dessa maioria precisa ser constantemente ouvida nas principais decisões de governo, por meio de plebiscitos, referendos e instâncias permanentes de deliberação de políticas públicas pelos movimentos sociais.

Além disso, é preciso democratizar verdadeiramente o sistema político e as instituições que o sustentam. A mídia precisa ser efetivamente regulada, combatendo o poder monopolista dos grandes conglomerados empresariais. As leis antiterrorismo e de segurança nacional devem ser imediatamente revogadas, e as polícias militares, abolidas.

Defendemos, ainda, a responsabilização dos militares que cometeram crimes na Ditadura e uma reforma geral das Forças Armadas, com a mudança do seu comando, estrutura e doutrina, colocando-as a serviço da soberania nacional e dos interesses da maioria trabalhadora do povo

9. Anti-imperialismo e internacionalismo. O lugar do Brasil no mundo determina muito do que podemos e, principalmente, do que precisamos fazer para transformar o país. Nesse sentido, não é possível pensar em qualquer tipo de mudança estrutural sem romper com a dominação econômica e política exercida pelas grandes potências imperialistas, em especial os EUA.

Devemos estar alertas para garantir a total soberania, inclusive as instalações militares, como a base de Alcântara. Entretanto, na medida em que essa tarefa não pode ser realizada isoladamente, é preciso, também, ter uma política externa ativamente independente e internacionalista, privilegiando relações econômicas e políticas com governos independentes, como Cuba e Venezuela, e o mundo periférico.

O comércio exterior deve ser controlado pelo Estado, e gerido de acordo com os interesses da classe trabalhadora. A solidariedade em relação às lutas anti-imperialistas deve ser um horizonte fundamental.

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSOL e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito