Conforme a vacinação contra a covid-19 avança, os números de mortes caem e as restrições sociais abrandam, a forma com que os brasileiros lidam com a pandemia tem se transformado. A impressão é de que bares lotados, salas de aula cheias e encontros sem máscara têm se tornado comuns novamente. A poucos dias de completar dois anos desde a descoberta do novo coronavírus (Sars-CoV-2), em 31 de dezembro de 2019, dá para considerar que ultrapassamos o pior? Já podemos sair para curtir a noite sem culpa? Essas são questões que a população mais precavida pondera enquanto o mundo corre para “voltar ao normal”.
Faz pouco tempo que o recifense Henrique Black, estudante de TI de 25 anos, tem se permitido frequentar bares e estabelecimentos fechados novamente. O jovem deu início à quarentena antes mesmo de ser decretada oficialmente em Pernambuco. “Isso mostrou para mim mesmo como eu iria agir até a chegada da vacina. Porque foi isso que eu fiz, fiquei em casa o tempo todo”, conta.
:: Ômicron força países europeus a implementar políticas de fechamento novamente ::
De maneira geral, Henrique cumpriu o isolamento social praticamente à risca. Só durante os meses de setembro e outubro de 2020, quando os números de casos baixaram um pouco e os estados permitiram a reabertura de certos serviços, ele chegou a sair de casa para pedalar ou passear em ambientes abertos. Fora isso, as exceções foram idas à farmácia, supermercados e unidades de saúde. “Não fiz mais nada. Restaurante, bar... não tive coragem”, revela.
O período rendeu uma piora da saúde mental do jovem, que precisou retomar o tratamento para ansiedade. Sua forma inicial de lidar com a pandemia foi focando intensamente nos estudos, passando mais de 10 horas por dia sobre os livros, o que eventualmente desencadeou num quadro de exaustão mental no fim de 2020.
Leia também: Como e onde surgiu a variante ômicron do coronavírus?
“Uma coisa muito louca foi o momento em que comecei a sair, depois da minha segunda dose [da vacina], na metade de agosto [de 2021]. De lá até metade de novembro eu senti de novo o que é viver, podendo sair, podendo ver gente, conviver com a sociedade. Foi quando relembrei que a vida pode ser boa, pode ser muito gostosa e como não é bom ficar trancado em casa sem ter pelo menos um momento de descompressão, fazendo algo que você gosta”, afirma.
A primeira saída depois de tomar as duas doses foi para cortar o cabelo. “Foi muito estranho, eu tive uma crise de ansiedade no cabeleireiro, eu quis chorar na hora. Era um misto de: ‘eu não deveria estar aqui, isso é muito errado’ e ao mesmo tempo ‘como é prazeroso estar aqui, cuidando de mim, fazendo algo tão banal que eu não fazia há 1 ano e meio”, recorda. “Lembro que fui o primeiro dos meus amigos a tomar vacina e o último a começar a sair”.
Henrique considera estar bem mais tranquilo e aberto, principalmente por ter os pais vacinados com as três doses. Mas isso não foi suficiente para abandonar os cuidados. “A ansiedade ainda está aqui, porque a pandemia não acabou. Foi o isolamento que acabou”. Até hoje ele mantém sua preferência por lugares abertos na hora de sair – e sempre munido de álcool em gel. “Estou bem mais tranquilo, mais aberto, estou conseguindo ir para locais que tenham certa quantidade de gente. Os meus pais estão vacinados com as três doses e isso foi uma grande coisa”, comemora.
:: Brasileiro que identificou a ômicron é destaque da "Nature" ::
As notícias recentes da variante ômicron voltaram a assustar Henrique, especialmente pelo medo de enfrentar outro confinamento. “Eu sinto que aguentei muito bem esses quase dois anos trancados. Mas agora que relembrei como é viver em sociedade, a ideia de voltar ao isolamento é desesperadora”, fala.
A nova cepa do coronavírus também preocupa Priscilla Gonzaga, maquiadora de 30 anos que mora em Petrolina, Sertão de Pernambuco. No entanto, ao contrário do estudante, ela não flexibilizou as restrições. Grupo de risco por ter obesidade e com um filho com autismo e epilepsia, Priscilla ainda vive em isolamento social. “Não me sinto segura. Passo longe de quem não faz o mínimo que é usar máscara”, conta.
Como as crianças ainda não podem se vacinar, o fato de seu filho de 8 anos ainda não ter recebido o imunizante é mais um fator que pesa para continuar os cuidados. “Ele ainda não voltou para a escola. Só volta quando tiver as duas doses. Meu filho está pagando um preço muito caro, sem ir às terapias e ou à escola, que é fundamental para o desenvolvimento dele”, lamenta a mãe.
:: Baixa testagem impede Brasil de mensurar exata transmissibilidade da ômicron, diz pesquisador ::
Apesar de tudo, Priscilla comemora o fato de o menino ter evoluído na fala. “Ele pôde conviver mais com o pai, que pediu demissão assim que a pandemia começou. Mas acredito que vai ser muito ruim quando ele voltar para a escola, até porque o conteúdo que ele vê já é adaptado”, revela.
A pandemia também afetou severamente a sua rotina profissional. Finalmente imunizada por completo (a terceira dose foi tomada no último dia 17), Priscilla aos poucos está voltando a trabalhar. “Está tendo bastante evento, mas como fui das últimas a voltar a atender, as pessoas pararam de me procurar. Trabalho à domicílio, mas agora estou atendendo na minha casa porque consigo higienizar melhor minhas coisas e não corro tanto risco em transporte público”, diz ela.
Com tudo isso, o sentimento que predomina ao ver as aglomerações acontecerem novamente é o de que ela é “trouxa”. “Eu realmente não consigo entender como as pessoas viraram essa chave do medo de pegar covid para ir para lugar lotado. Sensação de que vai fechar tudo e eu vou perder todo investimento que fiz pra voltar a trabalhar”.
O que diz a ciência?
O médico infectologia Filipe Prohaska lembra que os riscos da pandemia ainda existem, sim, e a grande questão no momento são os cuidados para impedir a transmissão do vírus – uso de máscara, distanciamento social e a vacina. Se for sair de casa, que seja cumprindo essas medidas de segurança e consciente de que, mesmo assim, ainda existe o risco de se contaminar. “É um perigo recorrente. Você sabe que ali existe uma situação, mas está tomando as medidas para minimizar o risco”, diz o médico, que trabalha no Hospital Universitário Oswaldo Cruz da Universidade de Pernambuco (Huoc/UPE).
Quanto à ômicron, Prohaska explica que os cuidados que devem ser tomados são semelhantes em relação às outras cepas. “É mais um alerta para mostrar que as variantes vão surgir porque não temos a população do mundo totalmente vacinada. Enquanto houver bolsões de baixos índices de vacinação, infelizmente virão novas variantes”, afirma.
A população não imunizada tem mais risco de transmitir a covid-19 e de morrer em decorrência do vírus, reforça o infectologista. É neste contexto que ele aponta o “passaporte da vacina”, que vem sendo exigido em Pernambuco, como uma iniciativa positiva. “Hoje, nos hospitais como um todo, a gente praticamente só tem pacientes que não estão vacinados. Nos Estados Unidos, [dados divulgados] mostraram que 99% dos pacientes internados na UTI não tinham se vacinado”, pontua.
Para Prohaska, o fator que explica porque alguns brasileiros ainda resistem à imunização são as notícias falsas. “Nosso grande problema tem sido posicionamentos e discussões baseadas em dados falsos, fakes news, que desencadeiam uma onda de insegurança num grupo específico de pessoas”, defende.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vinícius Sobreira