“A água vinha até aqui, ó”, indica o pescador Tonis Souza de Oliveira, de 42 anos. O ponto em que sua mão está, encostada numa enorme pilastra, fica mais ou menos na altura de sua cabeça, a cerca de 1,70 metro do chão. Ele está debaixo de uma ponte para veículos, no caminho entre Barreiras e o povoado de Jupaguá, na cidade de Cotegipe, no oeste do estado da Bahia. Ali, onde ele pisa em terra seca, costumava passar um corpo d’água, conhecido na região como Aguapiranga. Nesse “braço” do rio Grande – um dos principais afluentes do rio São Francisco –, onde a água era abundante o suficiente para que pescadores lançassem suas redes, resta apenas uma ou outra poça, que só estão ali porque nas noites anteriores a chuva veio forte — pela primeira vez em meses.
No trajeto para a pequena vila de pescadores em Jupaguá, a ponte sem rio não é a única contradição. Na picape 4×4, além de repórter, fotógrafo, equipamentos e Tonis, que nos guiou até a comunidade, levamos uma pequena caixa de isopor com alguns peixes, que nos serviriam de almoço. Levar o próprio peixe para comer em uma comunidade de pescadores se tornou uma necessidade diante da diminuição da vazão do rio Grande e o secamento de corpos hídricos ligados a ele, que costumavam servir de “berçário” para a reprodução e desova dos peixes.
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Por lá, onde alguns homens vivem à beira do rio, em acampamentos improvisados e com pouca estrutura, a pescaria virou complemento da renda, que muitas vezes depende do recebimento de aposentadoria ou outro benefício social. “Antigamente, meu pai pegava peixe aí… Não tinha gelo, não tinha nada, era sal, botava de carga para ir vender e comprar café e açúcar, desde eu molequinho”, conta o pescador Rubenildo dos Santos, de 66 anos.
“Hoje, até para vender um peixe é dificuldade. As colônias não dão condições para nós, vamos no banco e não pode fazer um empréstimo, vamos fazer o quê?”, questiona Josiel Ferreira Borges, 55. Naquele dia, a pescaria de Josiel no rio Grande não rendeu o suficiente para pagar os litros de gasolina que ele utilizou no motor de seu pequeno barco.
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A algumas centenas de quilômetros dali, à beira do rio Branco, um dos afluentes do Grande, a água não secou completamente como na ponte entre Cotegipe e Jupaguá, mas seu nível está baixo. “Tem uma base do rio que nunca passava. Do ano passado pra esse ano, o rio abaixou muito, muito. Dá pra ver. Tinha lugar [do rio] que a gente não atravessava não, só no nado mesmo. Esse ano eu atravesso com a água no peito”, conta o agricultor e também pescador Roberto Rodrigues Batista, de 37 anos.
Morador do Assentamento Rio Branco, em Riachão das Neves, ele tem o fundo de sua propriedade, onde vive com a esposa e duas filhas pequenas, banhado pelo rio que dá nome à comunidade. Nascido e criado no local, “pegando na enxada” desde menino, ele chegou a tentar a vida em grandes cidades, mas voltou em 2015 após a morte do pai.
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Nos últimos anos, os cultivos que lhe servem de sustento não têm vingado por falta de água e ele tem dedicado boa parte de seu tempo a cuidar da companheira, que enfrenta um quadro de depressão. Sua família sobrevivia dos R$ 330 que recebia do programa Bolsa Família (recentemente encerrado), de pequenos bicos e da ajuda de vizinhos. A perspectiva de o rio secar de vez lhe tira o sono. A situação o obrigaria a deixar novamente a região. “Eu sonhei que eu fui pegar água no rio e chegou lá e só tinha uma poça. Sonhei duas vezes e foi um sonho repetido. Se ele chega a secar, aí um bocado de gente passa necessidade e morre de sede, porque o nosso abastecimento de água é só isso aqui”, diz.
Ao longo dos nove dias de outubro deste ano em que a equipe da Agência Pública esteve em diferentes cidades do Cerrado baiano, o cenário relatado acima se repetiu diariamente: as passagens por pontes que antes estavam sobre rios, ribeirões, córregos, lagoas e outros corpos hídricos que hoje não existem mais como antes; os relatos da diminuição do nível ou do secamento total de cursos d’água, assim como das consequências que isso tem causado na vida desses ribeirinhos, pescadores e agricultores.
Na conta do agro
Entre os moradores das comunidades tradicionais do oeste baiano com quem a reportagem conversou, há um consenso: os recursos hídricos da região começaram a diminuir a partir do avanço da ocupação do agronegócio, iniciada entre as décadas de 1970 e 1980 e aprofundada nos últimos anos.
“No final dos anos 80, a gente já percebia que as águas estavam secando, o pessoal já falava nisso. Hoje a gente faz uma ligação de que tem a ver com o agronegócio, devido à instalação deles no chapadão, nas áreas de recarga [do aquífero Urucuia], com o desmatamento das nascentes”, explica o agricultor Jamilton Santos de Magalhães, de 39 anos. Conhecido como “Carreirinha”, ele vive na comunidade de fundo e fecho de pasto do Buriti, no Vale do Arrojado, em Correntina.
Na entrevista à Pública, ele estava de pé dentro de um córrego que costumava abastecer as pequenas plantações locais – completamente seco naquele dia. Segundo o agricultor, a quantidade de famílias que habitam a região diminuiu nos últimos anos em decorrência do secamento da fonte de água. A situação ainda pode piorar, caso o vultoso projeto de irrigação da fazenda Conquista seja colocado em prática. Ligada ao empresário Fernando Schettino, que obteve do estado a maior quantidade de água outorgada a qualquer pessoa, empresa ou grupo familiar no Cerrado baiano, a propriedade localizada logo acima do Buriti tem autorização para captar mais de 320 milhões de litros de água por dia só do rio Arrojado.
Na comunidade de São Manoel, mais abaixo geograficamente em relação ao curso do mesmo rio, a percepção é semelhante. “De dez anos pra cá começou a piorar, já depois que esses grandes empresários aí em cima começaram a plantar roça grande, botar muitos pivôs, abrir poço. Aí foi secando nossas águas aqui”, afirma o agricultor Adolfo Batista de Oliveira, de 58 anos.
Para regar suas plantações de gêneros como milho, mandioca, maxixe, quiabo e abóbora, ele e os demais moradores da comunidade utilizam uma forma tradicional de irrigação, conhecida como “canal”. No caso da comunidade São Manoel, o canal percorre uma extensão de mais de 17 quilômetros a partir do rio Arrojado, passando por diversas pequenas propriedades. Para quem está mais distante do rio – caso de seu Adolfo e sua família –, a diminuição da vazão tem feito com que a água não chegue durante os períodos mais secos.
Sem outra alternativa para irrigar suas roças, vários dos moradores estão sendo obrigados a deixar a região em direção à zona urbana dos municípios locais ou rumo a capitais como Goiânia e Brasília. Seu Adolfo também teme essa possibilidade: “Eu não tenho outra profissão, não tenho estudo, não tenho nada. Eu ia sofrer lá, porque aqui já tô acostumado na lida do dia a dia”, diz.
Especialistas consultados pela reportagem avaliam que é mesmo o agronegócio o principal responsável pelas mudanças relatadas pelos moradores do oeste baiano. Na visão desses pesquisadores, as mudanças climáticas não explicam o cenário sozinhas, já que a redução da vazão dos rios se tornou mais drástica que a do volume de chuvas nas últimas décadas.
“Quando você quebra o sistema [de abastecimento dos lençóis freáticos] com a ocupação agropecuária intensa, especialmente nas áreas de recarga das bacias hidrográficas, você acaba indisponibilizando água durante os períodos secos, porque os aquíferos vão aos pouquinhos diminuindo a sua capacidade de disponibilizar água”, explica o pesquisador Yuri Salmona, doutorando em ciências florestais pela Universidade de Brasília (UnB).
Também pesquisadora do assunto, Lorena Ferraz, mestranda em desenvolvimento regional e meio ambiente na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), explica que a variação na disponibilidade hídrica na região é especialmente associada aos impactos ligados ao agronegócio, tendo se aprofundado a partir dos anos 2000. “Foi quando a agricultura irrigada teve um avanço mais intenso. Quando os pivôs centrais começaram a crescer, essa mudança foi mais brusca. É o que na estatística a gente chama de ponto de ruptura, de mudança na série histórica”, aponta.
Como revelado nesta série especial, somente entre os diretores e conselheiros das duas principais associações do agronegócio no oeste baiano, há cerca de 1,8 bilhão de litros de água por dia autorizados para captação nos rios e nos lençóis freáticos da região. Todo esse volume de recursos hídricos, retirado gratuitamente e concedido pelo estado, serve para abastecer grandes plantações de soja, algodão, milho e outras commodities voltadas para a exportação.
Os que não mais existem
Na fala de pescadores, agricultores e ribeirinhos do oeste da Bahia, transparece uma nostalgia dos velhos tempos. Não que a vida fosse fácil, eles dizem. Mas o que motiva essa saudade é o secamento dos rios.
“Conheci córrego que quando menino a gente pegava peixe, e hoje eles não existem mais”, conta Juscelino Brito, que vive na comunidade de Brejo Verde, em Correntina, desde que nasceu, há 64 anos. Agricultor e fecheiro, ele relata que o único córrego que permanece com água na região, ligado ao rio Arrojado, é o da sua comunidade.
“Seu Celino”, como é conhecido, é uma liderança entre os moradores locais que vêm resistindo à pressão territorial do agronegócio e travando batalha pela preservação do corpo d’água do qual são dependentes. Recentemente, eles fizeram mais de 20 quilômetros de cerca para proteger o córrego local. “A gente faz por amor, sabe, porque estamos enxergando a necessidade, que a natureza precisa de pessoas empenhadas para que ela permaneça em pé”, diz.
Segundo levantamento feito pelo pesquisador Tássio Barreto Cunha, pelo menos 29 corpos d’água da região oeste da Bahia estão mortos, sendo que 17 se encontram na bacia hidrográfica do rio Corrente, onde fica Brejo Verde. A lista, apresentada na tese de doutorado de Cunha, defendida na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2017, foi feita com base em trabalho de campo e em reportagem do programa Globo Rural, de 2000. Em uma nota de rodapé do texto, o pesquisador faz questão de frisar que acredita que o número seja ainda maior, já que as limitações do campo o impediram de alcançar toda a região.
Os que, em tese, ainda existem
Se há dezenas de corpos hídricos que já não existem, há outros tantos que permanecem correndo no oeste baiano. Na comunidade de Couro de Porco, à beira do rio Arrojado, num trecho em que é necessário atravessar em uma canoa improvisada para alcançar a roça dos geraizeiros, alguém que não conheça o contexto da região pode ter a falsa impressão de que não há crise hídrica. Afinal, o rio segue correndo. Mas, para o professor e ativista Iremar Barbosa, de 52 anos, que há 16 vive na comunidade geraizeira, desde quando começou a ensinar alunos do ensino fundamental na escola local, “não basta ter água para ser um rio”.
Em 2020, ele concorreu à prefeitura de Correntina pelo Psol, recebendo 2,67% dos votos. “A piora tá contínua. Pode ter um caldo aqui, mas pode não ser um rio. A quantidade de venenos que tem nele hoje é muito maior. O volume de água dele é muito menor”, diz.
Para ele, caso a tendência atual se mantenha, com desmatamentos e grandes captações de água para irrigação, os rios do oeste baiano passarão a ser intermitentes, correndo apenas no período chuvoso. “Nesses 16 anos, eu vi riachos que tinham água secarem. Vi pequenos regos [forma de irrigação tradicional] que o pessoal sempre fez desses riachos secarem. Vi os peixes sumirem do rio. E vi as pessoas desaparecerem desses locais. É uma situação bastante triste”, lamenta.
A percepção de Iremar é reforçada pelos dados disponíveis das estações fluviométricas da região, que indicam que o volume de água dos corpos hídricos locais tem diminuído continuamente. “Na bacia do rio Corrente, em 1978, a vazão dos rios era mais ou menos 280, 290 m³/s. Hoje, está próximo de 100. Foi uma redução muito significativa, quase 70% da vazão média anual. E a bacia do Rio Grande, mais acima, também está na mesma tendência”, explica a pesquisadora Lorena Ferraz.
O cenário encontrado no oeste baiano é uma constante em praticamente todo o Cerrado, segundo Yuri Salmona, da UnB. “A gente chegou à conclusão de que a maioria, mais de 80% das bacias, tem uma diminuição da vazão. Se for colocar uma mensagem simples, é que o Cerrado de fato está secando, que está diminuindo a disponibilidade de água nos seus rios”, explica o geógrafo, que vai publicar nos próximos meses um estudo com base na análise de mais de 30 anos de dados de quase 100 estações pluviométricas do Cerrado.
Com uma camiseta que resume a sua luta: “Cerrado em pé: a vida brota das águas!”, a fecheira Aliene Barbosa, de 41 anos, conta sua relação com o rio Arrojado, que fica a poucos metros de sua casa, na comunidade do Grilo. Na infância, sem água encanada em casa, ela lavava roupas e louças, tomava banho e fazia café com a água do rio. “Eu gosto de viver aqui, gosto do trabalho da roça, de lidar com os animais, com o rio. É uma ligação muito forte que eu tenho com a terra, com a água, com tudo”, diz. Na visão dela, o desenvolvimento alardeado pelo agro atinge negativamente os pequenos agricultores e demais moradores do oeste baiano, já que diminui a disponibilidade de água.
Para seu Celino, da comunidade de Brejo Verde, também no Arrojado, é necessário resistir a esse modelo de desenvolvimento que devasta a natureza. “O meu intuito, e eu brigo até o fim, é pra esse Cerrado continuar em pé. Eu não fiz estudo nenhum comprovado, mas eu tenho conhecimento que esse Cerrado em pé é o berço das águas. Por isso que a gente vem resistindo, resistindo com briga mesmo, não é passando a mão na cabeça, não.”
Vídeo: Água. Poucos com tudo. Muitos sem.
No oeste da Bahia, região do Cerrado brasileiro que é uma das últimas fronteiras agrícolas do país, nas últimas duas décadas, o agronegócio tem avançado sobre as águas que servem de fonte de renda, lazer e vida para os ribeirinhos, agricultores e pescadores que vivem nos Gerais da Bahia. O objetivo é expandir suas plantações para áreas onde as chuvas são menos abundantes, e os cultivos demandam irrigação, quase sempre feita por meio de pivôs centrais — situação que tem causado conflitos socioambientais. Confira abaixo a vídeo-reportagem: