Não basta o braço para se vacinar contra a Covid no Quilombo Conceição de Salinas, no Recôncavo Baiano – é preciso coragem. A vacinação na comunidade começou com a polícia na porta do centro de imunização, ameaças de processo contra quem se vacinasse e intimidações do tipo: “Ah, agora você é quilombola?”. E esse tratamento, oferecido pela prefeitura de Salinas da Margarida (BA), não foi um caso isolado.
Embora tenham vencido ação no STF (Supremo Tribunal Federal) que os garante como grupo prioritário, essas comunidades continuam no final da fila de vacinação. Apenas 49% dos quilombolas adultos receberam a 1ª dose e 48%, as duas, segundo levantamento publicado em dezembro pela Conaq (Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas). No país, 88% já estão com a vacinação completa, segundo o consórcio de imprensa.
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As comunidades formadas por descendentes dos negros que resistiram à escravização no Brasil continuam enfrentando dificuldades para se vacinar contra o coronavírus. A maior delas, segundo lideranças ouvidas pela Repórter Brasil, é o racismo estrutural, que faz com que prefeituras e agentes públicos não reconheçam as pessoas como quilombolas – negando, portanto, o direito à vacinação prioritária.
A ausência de censo confiável sobre esses povos originários também prejudica a imunização: as doses chegam em número insuficiente para as comunidades, de acordo com o boletim 3º Vacinômetro Quilombola. Tudo isso em um cenário de cortes orçamentários e de políticas públicas feitos pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
A preocupação atual dos quilombolas ouvidos pela reportagem refere-se à vacinação dos adolescentes, que começou no Brasil em junho. O Ministério da Saúde vem distribuindo as doses aos Estados, mas sem indicar o quantitativo que deve ser destinado aos quilombolas. Apenas 10 dos 204 quilombos mapeados indicaram que a faixa etária entre 12 e 17 anos está sendo vacinada.
“O coronavírus acirrou os problemas que já tínhamos, com a falta de estrutura, equipamentos e material humano”, diz Magno Nascimento, do Quilombo África, em Moju (PA), e membro da Malungu, entidade que reúne as associações quilombolas do Pará.
“Achávamos que o alívio chegaria quando o STF decidiu, há quase um ano, que os quilombolas tinham prioridade na vacinação”, diz ele, frustrado. Não foi o que aconteceu.
No dia 24 de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal determinou ao Ministério da Saúde que elaborasse um plano de enfrentamento à Covid específico para as comunidades e garantisse a vacinação prioritária dos quilombolas.
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A corte também proibiu ações de despejo durante a pandemia e obrigou a criação de um grupo de trabalho para estabelecer o diálogo entre o governo federal e os quilombolas, por meio da Conaq, a fim de que se monitorasse a implementação dos planos.
Já ocorreram 16 reuniões até o momento, mas sem grandes avanços, diz a professora Givânia Maria da Silva, do Quilombo Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE), e membro da Conaq. “É lamentável termos esse diagnóstico. Se o plano não funcionou até agora, as chances de avançar são mínimas”.
Em nova decisão, emitida na última sexta-feira (17), o ministro do STF Edson Fachin determinou que o Ministério da Saúde garanta a vacinação dos adolescentes quilombolas e a aplicação da dose de reforço de forma prioritária. Na visão do ministro, isso não vem ocorrendo.
O ministério se defendeu na ação dizendo que distribui as doses com “indicação expressa aos gestores locais de priorização da população adolescente quilombola”. Para a Conaq, Fachin e até para a PGR (Procuradoria-Geral da República), no entanto, o governo precisa se empenhar mais.
“Passados mais de 21 meses do início da pandemia, a União ainda está articulando reuniões para ‘rediscutir’ uma campanha de vacinação. Infelizmente, o ente federativo age como se a pandemia fosse uma hipótese a acontecer e não um fato grave e urgente que já ceifou milhares de vidas”, disse a PGR ao Supremo.
“Foi montado um plano interessante de combate à Covid com a participação da Conaq, mas ele é inviabilizado porque o governo não destina orçamento para esse público”, diz Carmela Zigoni, antropóloga e assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), que tem participado das reuniões a convite da Conaq.
“O racismo estrutura nossas relações no Brasil, inclusive as políticas públicas, e é por isso que os povos racializados são os que menos acessam a direitos”, diz Givânia Maria da Silva, do Quilombo Conceição das Crioulas (PE).
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O Ministério da Saúde informou que já enviou doses suficientes para todos os quilombolas, estimados em 2,2 milhões de pessoas, e que usa “diversas ferramentas” para orientar gestores e profissionais a registrá-los nos sistemas de saúde. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informou que 51% estão com a 1ª dose e 45%, com a 2ª, e que os dados não são atualizados desde o dia 9, em razão dos problemas com o site da Saúde (confira os posicionamentos completos).
Negação
As dificuldades para vacinar os quilombolas passam também por um problema histórico: “Nunca houve um censo da população quilombola, só temos estimativas. Por isso, foi comum chegar às comunidades vacinas em quantidade inferior ao necessário”, diz Givânia da Silva.
Para enviar as doses a estados e municípios, o Ministério da Saúde se baseia no censo demográfico de 2010, quando os quilombolas não foram considerados, e em um mapeamento feito pelo IBGE em 2019 – até hoje os levantamentos não permitem que os entrevistados se declarem quilombolas. Caso seja realizado no ano que vem, o censo demográfico será o primeiro em que haverá esta opção.
“Como fazer política pública se você não sabe quem são e onde estão as pessoas?”, diz a advogada Vercilene Francisco Dias, do Quilombo Kalunga, de Cavalcante (GO). Primeira mulher quilombola com mestrado em Direito, ela foi a representante da Conaq na ação junto ao Supremo, a primeira de uma entidade quilombola na corte máxima.
Outra queixa histórica das comunidades quilombolas é o fato de não haver uma estrutura específica para cuidar de assuntos de saúde – tal qual os indígenas, que possuem um sistema próprio inserido no SUS, com orçamento. A demanda tem sido feita nas reuniões com o governo, mas o argumento é sempre o mesmo: falta de recursos.
“O racismo não é somente estutural, porque se não a gente já teria resolvido. O racismo é dinâmico e se reinventa”, alerta Danilo Sodré, do Quilombo Conceição de Salinas (BA), citando a promotora de justiça Lívia Vaz
Outro problema que emperra a vacinação e impacta esses povos tradicionais tem a digital do governo Bolsonaro: o sufocamento das políticas voltadas aos quilombolas. O governo excluiu os quilombolas do Plano Plurianual 2020-2023, que planeja o orçamento do período. No quadriênio anterior, havia 11 programas que citavam políticas para os públicos negros e quilombolas, segundo análise do Inesc, e, entre 2012 e 2015, eram 18.
“Todos os programas para populações quilombolas estão praticamente extintos. Mesmo antes da pandemia a gente vinha tentando estabelecer diálogo com o governo, mas não conseguimos. Foi somente com a ação no Supremo que surgiu essa possibilidade [de diálogo]”, diz Vercilene Dias.
O tradicional tratamento dado aos quilombolas chegou ao extremo em Salinas da Margarida, na Bahia. Em postagem no Facebook, a prefeitura disse que não reconhecia o quilombo, mas que, por determinação do Ministério da Saúde, aplicaria as 416 doses recebidas na “suposta comunidade quilombola”.
O texto, posteriormente apagado, determinava um termo de responsabilidade, ameaçando aqueles que pudessem “falsear” a autodeclaração com as “medidas cabíveis, inclusive de cunho criminal”.
A vacinação foi iniciada na manhã seguinte na escola da comunidade com duas viaturas na porta. Havia ainda um servidor municipal intimidando as pessoas que entravam e insinuando que estavam se passando por quilombolas para receber a vacina. A prefeitura foi procurada, mas não se manifestou.
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“O primeiro dia de vacinação acontece com toda essa violência intimidatória do estado, e algumas pessoas não se vacinaram por conta disso”, diz Danilo Sodré, um dos coordenadores da associação de pescadores e quilombolas.
Para Elionice Conceição Sacramento, pescadora e liderança do quilombo, a presença da polícia em um lugar “para garantir a vida” causou um impacto grande na comunidade e atrapalhou a vacinação. “Na história da Bahia e do Brasil, a gente não conhece outra comunidade quilombola em que o prefeito prefere que a população adoeça e morra”.